IMPLICAÇÕES DOCENTES NAS TRANSFORMAÇÕES CURRICULARES DA ÁREA DA SAÚDE: UMA ANÁLISE SÓCIO-HISTÓRICA

 

Lucia Cardoso Mourão[1], Solange L'Abbate[2]

 

 

1 Departamento de Planejamento em Saúde, Instituto de Saúde da Comunidade, Universidade Federal Fluminense-UFF, RJ, Brasil

2 Departamento de Saúde Coletiva, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas-UNICAMP, SP, Brasil

 

 

 

RESUMO

Apresentamos aqui uma reflexão sobre a participação dos docentes nas mudanças curriculares dos cursos de medicina e enfermagem de uma universidade. Com o objetivo de compreender como se dá a institucionalização desses currículos como projetos coletivos de produção selecionamos professores que participam dessas implementações para através dos dispositivos do método socio-histórico, da análise institucional, fazer falar a instituição formação em saúde. A principal discussão que se faz é a de que a prática social docente se realiza numa relação dialética entre os momentos instituído, instituinte e o de institucionalização. Como conclusão tem-se que os processos recentes de reformas curriculares abordados são inovadores, pois propõem opções pedagógicas que buscam uma maior integração entre teoria e prática no entanto para potencializar o processo coletivo de produção de subjetividade, competências e habilidades na formação dos futuros profissionais de saúde é importante considerar os atravessamentos que perpassam a atividade docente no campo da saúde.

Descritores: Saúde coletiva; educação médica; educação em enfermagem; Currículo

 

 

INTRODUÇÃO

 

A universidade brasileira, nascida no início do século XX, carrega os desvios e problemas das suas precursoras como a falta de definição de um princípio educativo que atenda à necessidade de formação de um cidadão crítico e transformador.(1) Embora sejam bastante visíveis os sinais dessa crise, há uma letargia na sua ação como se nada estivesse ocorrendo(2). Discutem-se questões de reestruturação interna, sem se aprofundar no papel desta organização no Estado.

As mudanças curriculares se sucedem e pouco se reflete sobre o papel do docente nessas transformações do processo de profissionalização, sobretudo na área da saúde. O docente ou professor é um intelectual que cumpre uma função na produção e transmissão de conhecimentos que conformam uma dada compreensão de mundo e uma dada organização de sociedade.(3)

Para Lourau (5) todo intelectual está implicado e, portanto, todo docente, envolvido nos processos de Reforma Curricular, produz subjetividades que devem ser analisadas em ato.

O homem, ao planificar sua ação, age conscientemente, mantendo uma autonomia maior ou menor, dependendo do grau de objetivação do processo de trabalho em que está envolvido. Na atividade fabril tradicional o processo de trabalho é altamente objetivado, de autonomia limitada, restringindo-se o operário à execução de sua tarefa. No caso do docente essa produção é mais autônoma, posto que da interação com os seus alunos surge a necessidade de uma avaliação e planejamentos contínuos do trabalho, orientando modificações, aprofundamentos e adequações do conteúdo e metodologias a partir da situação pedagógica concreta e imediata.

Aponta-se como exigência dos novos tempos que os educadores adquiram competências de longo prazo, o domínio de métodos analíticos, de múltiplos códigos e linguagens para uma qualificação intelectual de natureza suficientemente ampla e abstrata. Essas habilidades são imprescindíveis para a aquisição contínua e eficiente de conhecimentos específicos que atendam às exigências de formação de profissionais sempre novas e mais elevadas.

Nesse sentido desenvolvemos essa pesquisa com a intenção de compreender como se dá a institucionalização dos novos currículos dos cursos de nível universitário da área de saúde, aqui entendidos como projetos coletivos, a partir da análise da participação do docente que desempenha uma prática individualizada/singularizada.

É imperativo que essa prática social seja orientada para produções de subjetividade múltiplas e provisórias, por meio de mecanismos inconscientes ou não que produzam singularidades criativas, tanto quanto as possibilidades desejantes, no espaço social da formação em geral e da saúde, especificamente, descristalizando as territorializações duras que negam as importantes diferenças que emancipam os sujeitos.(4)

 

 

Os processos de transformação curricular dos cursos de medicina e de enfermagem

Diante das transformações no mundo do trabalho e das políticas educacionais, rapidamente tornam-se anacrônicos os conhecimentos específicos gerados pelo puro treinamento técnico-operacional, quase totalmente hegemônica nos cursos da área de saúde.

Durante muitos anos, a qualificação exigida para atuar na formação de profissionais de saúde baseava-se na experiência prática, adquirida nos sanatórios e/ou hospitais, sem considerar os aspectos pedagógicos que esta atividade requeria.

Mais recentemente, com os avanços no campo da educação em saúde em nível mundial e, com a crescente preocupação com a qualidade da formação realizada, vários programas de capacitação docente foram se desenvolvendo e contemplando, além da competência profissional e dos aspectos metodológicos, maior exigência no campo da ética profissional e pessoal, requisitos de todas as profissões do mundo contemporâneo.

Do docente da área de saúde, especialmente dos cursos de medicina e enfermagem, objeto desse estudo, espera-se uma orientação sistemática com reflexão e análise a partir das percepções iniciais dos educandos, estimulando-os a realizar a observação, a indagação e a busca de respostas, avaliando seus avanços e dificuldades, respeitando o ritmo de aprendizagem de quem aprende. (5)

Para o desempenho deste papel tão complexo, que envolve a formação de cuidadores da vida de seus semelhantes, sobretudo para atuação nos serviços que atualmente compõem o Sistema Único de Saúde (SUS), à competência técnica precisa estar aliada a ética pessoal e profissional.

No Plano Nacional de Educação estão instituídas as diretrizes curriculares para o ensino universitário como estratégia de superação dos currículos mínimos que engessavam a formação visando garantir nesses novos currículos “a indissociabilidade de ensino, pesquisa e extensão, a flexibilidade curricular, a formação integral do cidadão, a interdisciplinaridade e a articulação entre teoria e prática.” (5)

Um currículo está perpassado por relações de poder, portanto a formulação e a implantação dos currículos não são neutras, nem são o produto de um processo asséptico de elaboração e instrumentalização de técnicas. Representam, muitas vezes, o resultado sintético de um processo de debate ou, muitas vezes, uma silenciada e oculta luta entre posicionamentos, interesses e projetos sociais, políticos, culturais e pedagógicos opostos, ou até antagônicos. O processo de definição das políticas curriculares não é unívoco nem isento de contradições e tensões.

Desde a década de 50 está em andamento na América Latina o movimento de reformulação curricular dos profissionais de saúde na perspectiva de capacitação de profissionais capazes de superar os problemas do sistema no qual trabalham e proporcionar melhores serviços à população.

Os novos cursos de graduação em medicina, implementado desde 1994 e, de graduação em enfermagem, implementado a partir de 1996, estão submetidos aos atravessamentos de várias instituições que configuram uma formação em saúde que, processualmente, vai se transformando, embora guarde ainda muitos resquícios das antigas orientações como o especialismo, a prática docente individualizada, o conteudismo, entre outros.

 

 

MÉTODO

Para analisar as implicações dos docentes selecionados lançamos mão do método da análise institucional no papel, de caráter sociohistórico que visa, indiretamente, a mudança social enquanto crítica à ordem estabelecida. Esta análise pode ser realizada através de estudo de documentos e/ou pesquisas de campo e desvelam as relações que os homens mantêm com as instituições.(6)

Segundo Rodrigues, Leitão e Barros(7) esse tipo de estudo pode ser útil do ponto de vista descritivo, mas também pode ser restritivo quando contrapomos, numa captura das forças instituídas, teoria (análise institucional no papel) e prática (análise institucional sobre o terreno).

As nuances do processo de institucionalização da formação em saúde que ocorreram nos cursos de medicina e enfermagem da UFF, ao longo dos anos, foram inicialmente abordadas através da descrição do histórico de suas construções curriculares e da análise dos relatórios, atas e estudos produzidos sobre as propostas de reformulações curriculares e utilizamos também as observações registradas em um diário institucional da primeira autora que é docente dos dois cursos e atua tanto no âmbito da sala de aula como nos fóruns político administrativos da Universidade em estudo.

Organizamos debates com grupos de docentes de ambos os cursos, utilizando a técnica de grupo focal com o objetivo de discutir as experiências vivenciadas em comum e/ou aprofundar reflexões. Esses encontros foram gravados e filmados mediante consentimento dos participantes. Estes registros se constituíram em recursos importantes para a análise realizada, bem como em documentos para guardar a memória do processo de institucionalização vivido.(8,9)

Visando aprofundar ou esclarecer pontos que mereciam uma investigação mais minuciosa e/ou individualizada e obter informações que não foram possíveis com a realização do grupo focal, a primeira autora realizou entrevistas com alguns atores específicos. A entrevista semi-estruturada foi a que melhor se adequou a este estudo.

Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa, da Faculdade de Ciências Médicas, da Unicamp/SP, sob o número 713/2004.

 

 

RESULTADOS

 

Os docentes selecionados fizeram uma retrospectiva de sua vida pessoal e profissional, revelando seus engajamentos positivos ou negativos com a formação desses profissionais no período de reforma curricular. Seus relatos começam com a sua localização na estrutura da universidade, partindo, em seguida, para a formação profissional e breve histórico do como foi se construindo sua identidade docente.

É marcante, na maioria dessas trajetórias, o exercício das atividades docentes sem um adequado preparo para exercer essa profissão. A concepção de que sendo um bom técnico estaria qualificado para ser um bom professor causou alguns transtornos nas atividades pedagógicas deixando-os inseguros e duvidosos de que estavam realizando um processo de aprendizagem satisfatório.

Há uma diversidade de participações no processo de reforma que vai desde o engajamento na época da graduação, passando pelos que, na época, ainda eram técnicos no Hospital Universitário, até aqueles que já tendo o status profissional de professor participa dos primórdios desse debate internamente ou nele se insere, trazendo uma leitura externa da necessidade de uma formação mais humanizada. Pressupõem-se que, numa profissão que baseia a sua produção de conhecimentos na ampla comunicação entre os atores envolvidos, haveria mais disponibilidade para a construção coletiva do projeto de reforma dos currículos, mas não é esse o comportamento observado. A maioria dos entrevistados participou ativamente do debate estabelecido nas reuniões de construção dos novos currículos, mas muitos deles relatam sempre a dificuldade de sensibilizar os demais colegas para contribuir com as suas reflexões sobre a sua prática social.

A trajetória daqueles que tiveram uma formação dentro da própria universidade é perpassada de frustrações por não terem sido aprovados de imediato nos concursos que fizeram e, até mesmo por não terem a divulgação do resultado das suas pesquisas, por críticas à administração antidemocrática de algumas unidades.

Os docentes que são graduados em enfermagem procuraram qualificar-se mais para ser professor, em decorrência de uma política interna da Unidade que os congrega que tinha e continua tendo um projeto para conquistar respeitabilidade no meio acadêmico através de um melhor preparo acadêmico do seu corpo docente. Essa política era também endossada pelos órgãos de classe dessa categoria.

 

 

DISCUSSÃO

 

Mudanças na vida humana que alteram conteúdos e significações, valores e comportamentos, ritmos e sentido, sujeitos e objetivos desafiam dia-a-dia a ação docente. Do professor repassador de conhecimento há que se evoluir até ao professor que seja incentivador da aprendizagem de uns com os outros, que estimule o trabalho em equipe, que seja um motivador para o aluno realizar suas pesquisas e seus relatórios, que crie condições contínuas de diálogo entre aluno, professor e a sociedade.

A interdisciplinaridade como princípio dinamizador da universidade e como aprimorador das estruturas do Estado e da sociedade requer uma prática docente individual e coletiva que se vive e se compartilha. O reconhecimento das limitações individuais e a abertura para construir com os outros se dá quando o trabalho em equipe interdisciplinar pode ser exercido.

Em geral, o docente da área de saúde que é recrutado a exercer essa atividade por reconhecimento de sua capacidade técnica compreende que deve tornar o aluno tão bom profissional como ele. Como exercem suas atividades técnicas predominantemente em organizações hospitalares têm grande dificuldade de ampliar sua visão de saúde para além do tratamento da doença.

A docência no nível universitário exige também um domínio dos conteúdos da área pedagógica. Para ser um docente competente na universidade requisitos mínimos são recomendados, como: conhecimento do processo de aprendizagem, de sua responsabilidade com a gestão do currículo, da importância da interrrelação professor-aluno-sociedade e da teoria e prática básicas da tecnologia educacional, que estão além do voluntarismo. Geralmente os professores da área da saúde consideram essa aproximação como algo supérfluo e exercem uma prática isolada sem conhecimento da relação da sua disciplina com totalidade da formação que estão realizando.

O professor tem uma visão de mundo, de sociedade, de cultura e de educação que orienta consciente ou inconscientemente a natureza da sua prática educacional. É fundamental que a universidade contemporânea esteja permanentemente aberta ao debate entre todas as formas de expressão das diversas filosofias que orientam a prática dos docentes para que o agir individualizado, individualizante e corporativista possa ser confrontado permanentemente com o como se pratica e se vive a cidadania nos tempos atuais.

Analisar as implicações dos sujeitos como afirma René Lourau teria o objetivo de aproximar o observador dos observados de romper com os debates acadêmicos e dizer o que fazemos e o que não fazemos, sem a conotação religiosa da confissão. (10).

O engajamento pessoal e coletivo do professor num projeto educativo se faz em função de sua história familiar e libidinal, de suas posições passadas e atuais nas relações de produção e de classe e de seu projeto sociopolítico em ato (11).

A análise das implicações dos docentes com os novos currículos propostos, na instituição universidade, começa pela equipe de docentes, na encomenda e nas demandas da sociedade brasileira por um novo tipo de profissional, na epistemologia do campo da educação e saúde e nos textos produzidos sobre essa prática.

O desejo de ser docente mobiliza alguns profissionais que procuram se inserir nessa profissão mesmo antes de concluir sua formação universitária. Alguns docentes despertam para a docência também pela indução que a organização acadêmica faz para realimentar os seus quadros docentes como o Programa de Monitoria.

A convivência íntima que alguns profissionais têm com os meios acadêmicos moldam sua percepção de mundo para parâmetros de comportamentos que não encontra correspondência no mundo do trabalho. Dadas as dificuldades conjunturais e a própria organização do trabalho em saúde, é pouco comum observar os médicos e enfermeiros refletindo, debatendo e divulgando os resultados de sua prática cotidiana, sistematicamente. Essa situação dá uma falsa impressão de que são incapazes de fazê-lo e valorizam mais as análises que são feitas nos meios acadêmicos.

Aspectos de ordem íntima como familiares e afetivos influenciam muito no rumo profissional que se traça previamente. As implicações afetivo-libidinais somadas às historico-profissionais redimensionam também o cotidiano desses professores. A dimensão que o trabalho social do professor tem na nossa sociedade assusta, mas seduz ao mesmo tempo aos que desejam exercer essa profissão. Os valores formados e compartilhados dentro dos grupos sociais, religiosos, e na vida familiar configuram a visão de mundo e também a maneira de agir profissionalmente dos docentes.(11)

A dupla inserção no ensino e no serviço gera práticas docentes mais críticas e em sintonia tanto com os objetivos do ensino como com o atendimento das necessidades de saúde da população.

Ao professor do ensino universitário cabe mais do que boa vontade de mostrar na prática como se exerce uma boa atividade profissional. Exigem-se competências específicas além do diploma de bacharel, mestrado e doutorado. A prática docente envolve, o desenvolvimento de um saber que integre os conhecimentos de uma área específica com os de outras áreas, de forma interdisciplinar, voltada para os compromissos sociais e comunitários, a capacidade de lidar com seus aspectos afetivo-emocionais, a habilidade de aprender a trabalhar em equipe, comunicar-se com as pessoas de dentro e de fora do seu ambiente de trabalho, a adoção de valores éticos, políticos e sociais, o que nem sempre é trabalhado somente na sua formação pela universidade.(12)

O preparo para ser docente na área de saúde é algo que, além das competências acima citadas, requer perícia no preparo do campo para atender aos objetivos educacionais sem se descuidar dos objetivos da atenção à saúde da população que interage nos cenários de aprendizagem com a comunidade acadêmica.

Esse processo de reflexão da prática educativa em saúde deve ser ampliado. Começa com a auto-avaliação e continua com uma avaliação feita por toda a comunidade acadêmica e pela sociedade em geral. Algumas iniciativas nesse sentido já são realizadas nos congressos específicos de educação em saúde, mas ainda num formato muito acadêmico. As recomendações sugeridas têm produzido resultados ainda tímidos no cotidiano dessa formação.

A prática educativa é um fenômeno social e universal, não restrita às salas de aula. Ela é mediada entre os atores que compõem uma dada sociedade. A natureza da comunicação e da interrelação entre os sujeitos que realizam uma prática pedagógica pode favorecer a construção contínua dos conhecimentos interdisciplinares que promove uma formação social mais crítica e solidária ou podem manter os traços autoritários, elitistas e individualistas internalizados no cotidiano dos países ocidentais. O interrelacionamento entre as pessoas inclui o conflito, a disputa de posições ideológicas, a negociação. Tentar negá-lo ou escapar dos confrontos na área educativa é apostar numa formação incompleta, fictícia, que não prepara para o exercício pleno da cidadania que deve ser a tônica mesmo nas áreas mais tecnológicas.

A necessidade de estar atento ao que se passa no mundo do trabalho e nos problemas que advém dessas transformações exige do docente universitário uma tomada de posição diante dos novos currículos que propõem perfis profissionais que conciliem o técnico com o ético. A transmissão neutra dos conteúdos científicos faz parte de uma consciência ingênua que não encontra mais lugar no mundo contemporâneo. Todo docente tem uma visão de homem, de mundo, de sociedade, de cultura e de educação que orienta as suas opções e ações conscientemente ou não na construção da história.

As diferentes formas de engajamento ou não engajamento com as mudanças curriculares dos cursos de medicina e enfermagem da UFF explicitam a diversidade de projetos de sociedade engendrados por cada docente.

A reforma curricular da medicina sempre enfrentou a pouca participação dos docentes e dos técnicos envolvidos nos seus fóruns deliberativos, por diversas razões. Para a maioria dos docentes do curso de medicina, o curso tinha se desqualificado porque os alunos tinham saído dos muros do Hospital para fazer a formação em outros cenários. Hoje há outra compreensão dos objetivos dessa reforma e até uma identificação desses docentes que criticavam negativamente essa reformulação.

A UFF é uma organização endógena, como a maioria das universidades brasileiras. Praticamente todos os docentes entrevistados foram formados por essa universidade. Em geral recebiam convites de seus antigos professores para permanecer como docentes e em geral eram extremamente dedicados no exercício de suas funções. Atuavam longo tempo somente com o título obtido na graduação.

Para a maioria dos docentes entrevistados era uma conseqüência natural e até um desejo continuar suas atividades profissionais no próprio local de formação para outros houve a necessidade de se oxigenar em outras universidades.

A consciência de ser resistente ao instituinte outorga a alguns professores o lugar de exigir a contraprova, ou seja, de que o novo currículo é mais adequado do que o antigo, aos que defendem o novo currículo de medicina.

A mudança na postura pedagógica de um professor transmissor para um co-construtor do conhecimento expõe mais os docentes que trabalham com um grupo menor de alunos. Os mecanismos de dissimulação ou ocultação das fraquezas de cada um perde a eficácia, gerando um medo de perder o poder, sobretudo naqueles que não estão preparados para lidar reflexivamente com seus próprios limites.

A prática docente vem se transformando, sobretudo com aqueles que frequentaram cursos de pós-graduação recentemente. Mas isso não acontece de uma maneira uniforme. O professor da área hospitalar ainda está muito concentrado na transmissão da técnica do que os da área de saúde coletiva. Entretanto a concomitante mudança da postura do aluno leva a uma maior crítica sobre o processo de aprendizagem e uma conseqüente cobrança de mudança pedagógica dos docentes.

O conteudismo, concepção que embasa a escola tradicional que se organiza com base na centralidade no professor ainda é a tônica da prática desses docentes. Estes detém o saber e a autoridade na transmissão do conhecimento, sendo o aluno o receptor da tradição cultural. O currículo é compreendido como rígido e os alunos são considerados como um grupo homogêneo, não havendo preocupação com características individuais, interesses ou vontades dos mesmos. A avaliação valoriza os aspectos cognitivos, ou seja, a aquisição dos conhecimentos transmitidos, supervalorizando a memória, e as provas adquirem um papel central e um fim em si mesmo. As normas são rigidamente estipuladas, visando garantir a disciplina e a ordem, sendo a obediência considerada uma virtude.

A relação professor-aluno evidenciada é vertical, suprimindo-se qualquer afeto ou emoção que são considerados como impeditivos de um bom aprendizado. O resultado esperado da ação educacional é a aquisição de um modelo de educação já estabelecido, com pouca preocupação com o processo, num claro exemplo de “educação bancária” (12).

Trata-se de uma visão mecanicista de mundo, onde a neutralidade e a quantificação tomaram dimensões preponderantes baseados nos ditames da ciência moderna. O predomínio da razão instrumental sobre as demais dimensões do conhecimento humano tomou proporções intensas e baniu do mundo acadêmico a possibilidade de trabalhar com as subjetividades e de privilegiar a condição ética, trazendo prejuízos para a formação de uma visão mais ampla, abrangente e integrada de sociedade.

A questão da remuneração do trabalho docente sempre foi polêmica desde a antigüidade grega. Com o deslocamento da importância desse ator social humanista para os da área econômica teve-se concomitantemente uma queda da sua remuneração, sobretudo no Brasil.

Estratégias como a busca de uma inserção técnica, no mercado de trabalho que alguns docentes da área de saúde realizam para fazer face as suas despesas não acontecem sem uma queda de qualidade nas suas práticas educativas e de pesquisa.

O dinheiro ocupa lugar preponderante no conjunto das atividades humanas e segundo Solange L´Abbate, “... é impossível pensar o mundo atual sem a existência do dinheiro, ainda que muitas vezes ele passe imperceptível, discreto, ou mesmo estranhamente abstrato...”.(13). Ele constitui-se num analisador natural e segundo René Lourau é um dos mais sensíveis na socianálise para fazer falar as instituições.(14)

A concepção prevalente de que conhecer significa dividir e classificar e de que o conhecimento científico é separado do conhecimento vindo do senso comum fortalece a fragmentação do pensamento e a unilateralidade da visão de mundo na universidade.

O conhecimento torna-se propriedade privada de um docente que exerce total controle nas relações com os alunos exacerbando o individualismo que também é reforçado pelas estruturas da universidade e pelas organizações curriculares baseadas na idéia de coleção desses conhecimentos.

Com a revisão recente do papel do docente que passa a ser tomado como um dos integrantes do processo de aprendizagem e, portanto um mediador entre saberes, estabelece uma horizontalidade que incomoda aqueles acostumados ao antigo status de ser reconhecido por todos os lugares onde passa como único depositário do saber.

A necessidade de engajar-se para o sucesso do processo de reformulação curricular do curso de medicina gerou um sobretrabalho que dificultou o estabelecimento de parcerias e provocou desgastes políticos e pessoais nos docentes que se sobreimplicaram.

A mudança de perfil do aluno que hoje é mais participante no processo de aprendizagem gera um medo no docente em se relacionar e conseqüentemente uma insegurança em mudar sua postura para a de co-responsável no processo de aprendizagem.

Não se observa entre os docentes entrevistados uma participação orgânica nas discussões que propunham transformar os currículos da enfermagem e da medicina, apesar dos fóruns serem abertos e divulgados.

A extinção das cátedras, existentes no período da ditadura militar, visava integrar as unidades e estabelecer, entre outros, o princípio da co-responsabilidade de todos os membros do departamento pelo ensino, pesquisa e extensão. Entretanto, observa-se que a integração entre os docentes dos vários departamentos se depara com a grande dificuldade de negociação de carga horária das disciplinas em ambas as reformas curriculares e os objetivos pessoais do docente responsável por cada disciplina são mais valorizados que a interdisciplinaridade.

Ao longo dos anos, as reduções dos recursos financeiros para o setor da saúde e da educação afetaram as condições de trabalho nos hospitais públicos com significativa perda de profissionais e de recursos materiais. Aliado a isso, a gradativa perda salarial dos docentes das universidades federais provocaram um êxodo desses docentes das enfermarias que passam a restringir suas atividades ao ensino da teoria.

O papel tradicional de professor transmissor não se adequa ao atual processo de aprendizagem que se quer co-gerido. Um professor motivador e incentivador do desenvolvimento do aluno precisa estabelecer uma relação de proximidade, considerando este como capaz de se responsabilizar também pela sua formação profissional.

 

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Em geral o ato de pesquisa se completa, segundo René Lourau, no processamento do texto codificado pelas expectativas, prescrições e tolerâncias da instituição cultural-científica-editorial, deixando de lado a análise das implicações, pois só o resultado conta(10). O vergonhoso extratexto é desconsiderado, pois leva a análise da situação de pesquisa que ocorre num plano irreal e se distancia da realidade sócio-histórica, do senso comum.

Debruçamo-nos aqui sobre essa análise pois, o lugar ideológico por onde circulam os professores não é suficientemente conhecido e consciente, trazendo como conseqüência uma suposta neutralidade na ação dissonante com a pluralidade que comporta a condição humana.(15)

Os professores não são deuses, nem máquinas e, portanto, não são homogêneos nas suas atitudes. Segundo Mourão(15), “reformas curriculares prescritivas que não pressupõem espaços de constantes debates são inócuas no alcance dos objetivos propostos para a formação dos novos perfis profissionais e tendem a se esvaziar no cotidiano dos atores sociais nelas envolvidos” como observamos nas propostas analisadas.

Esse tema da reformulação curricular em saúde é muito delicado e, ainda hoje, muito difícil de ser discutido pelos docentes envolvidos, principalmente se não há uma noção prévia de quem participa do debate. Nele estão envolvidas disputas internas de poder, de crítica ao desempenho de seus pares, que não são muito debatidas, ou não são explicitadas verdadeiramente.

A falta de espaços de avaliação pedagógica evidenciados entre os professores de um mesmo departamento ou dos vários departamentos deixa transparecer a contradição entre o que está contido nos propósitos curriculares de formação interdisciplinar e, portanto, de construção coletiva que é o fazer individualizado de cada docente no seu dia-a-dia com os seus alunos.

A incorporação do modo de fazer em grupo que os novos currículos requerem, exige uma compreensão do processo de subjetivação inerente a todos os sujeitos que participam dessa formação. Sejam eles docentes, discentes, técnicos ou técnico-administrativos. A compreensão de que todos são co-construtores do conhecimento ainda escapa ao conjunto da comunidade responsável pela formação dos profissionais de saúde e isto gera muitos incômodos. Há disputas entre os subgrupos docentes e cada qual quer ser dominante na sua forma de gerir a formação negando essa necessária produção de subjetividade coletiva.

A recusa de alguns docentes, por vários motivos, ao nosso convite de fazer uma reflexão sobre a sua prática nos leva a refletir sobre o sofrimento embutido nessa ação que alguns corajosos tentam ultrapassar.

A participação dos docentes favoráveis e contrários às propostas curriculares aprovadas, defensores de pedagogias mais tradicionais ou mais participativas, nessa pesquisa, revela a importância de se manter o debate constante, visto que, apesar dos posicionamentos divergentes, há um engajamento com o aprimoramento da universidade pública.

Essa disponibilidade de participação revela de alguma forma, uma tendência, pois recai, principalmente, sobre aqueles que dirigiram os processos de reformas dos dois currículos aqui analisados.

A resistência, tomada como um analisador natural dessa instituição, no início desse estudo, é identificada em todos os seguimentos e deixa antever a noção separatista que a rege. O medo do poder de destruição que se atribui ao outro confirma a dissolução dos arcabouços curriculares que não contemplam essa necessária oxigenação que o outro pode proporcionar nas visões herméticas, homogêneas.

A experiência vivida por muitos docentes, durante a ditadura militar se tornou um marco de referência para construção de uma sociedade diferente, mesmo entre aqueles que não eram politizados.

Os profissionais de ensino em saúde dominam a matéria dos seus respectivos campos disciplinares, mas nem sempre dominam os processos e as condições da abordagem pedagógica da matéria a ensinar. Não são preparados para a docência e nem se exigem tais habilidades na sua contratação. Atualmente valoriza-se mais o seu desempenho como pesquisador individual do que o de construtor de conhecimentos em parceria com os demais membros da academia e da sociedade em geral.

No processo de aprendizagem há dificuldades de aproximar a teoria da prática, prevalecendo à transmissão dos conteúdos já consolidados, ao invés de serem trabalhados a partir de atividades de pesquisa de professores e alunos.

Os processos recentes de reformas curriculares aqui abordados, no entanto, são, de forma geral, inovadores, na medida em que propõem opções pedagógicas que buscam a maior integração entre teoria e prática, a atuação da interdisciplinaridade e a criação de maior vínculo dos alunos com a prática dos serviços.

Os docentes, principais implementadores dos processos de reforma se posicionaram, dividindo-se em vários grupos. Os docentes que estão engajados com as inovações curriculares, em geral, são os docentes insatisfeitos com o currículo anterior, ou principalmente, insatisfeitos com os métodos de aprendizagem mais tradicionais. Há também aqueles que aderem às mudanças curriculares propostas por posicionamento político alinhado com as lideranças que estão implementando a reforma. Por outro lado, há docentes que não aderem, seja pela resistência às mudanças, o que pode revelar uma atitude, às vezes até bem sincera, de acreditar que o currículo que estava instituído era melhor, mais adequado, seja por estarem habituados aos métodos de ensino mais tradicionais, e sentirem medo ou insegurança em mudar. Tal incerteza tende a se acentuar, na medida em que a reforma propõe a integração de conteúdos e até de disciplinas, o que significa, muitas vezes, perda ou diminuição de espaço e carga horária. Há também docentes que decidem não aderir, por pertencerem a algum grupo, politicamente contrário, à direção que está propondo a reforma. Tais sujeitos, dependendo da força como atuam, podem prejudicar e dificultar o processo de reforma, uma vez que pela autonomia de que goza o professor, sobretudo na universidade pública, ele é ainda o senhor quase absoluto na sala de aula.

Evidente que esses dois grupos polares de docentes vão atuar em interação com outros docentes em posições intermediárias ou quase totalmente desinteressados. Assim como os docentes, os demais sujeitos, também envolvidos em todo processo de reforma curricular, tais como os que ocupam postos nas direções das faculdades, nos colegiados de curso, nos colegiados superiores da Universidade e, logicamente, o corpo discente, técnico e técnico-administrativo também estão envolvidos positiva ou negativamente com todo o processo.

Ao explicitar esses vários posicionamentos, qualquer proposta de reforma curricular torna-se um forte analisador, pois acaba por revelar aspectos que, sem sua ocorrência, permaneceriam ocultos, ou, de certa forma, disfarçados. Revelam-se assim as contradições e resistências que, embora presentes, e, às vezes, bem consolidadas na organização, não se revelavam ou não apareciam tão claramente ao conjunto dos sujeitos envolvidos. Além disso, tais propostas de mudanças podem atuar como analisadores de dimensões mais amplas e complexas da política universitária em relação à dotação de verbas para recursos humanos e materiais ou às novas diretrizes para o ensino superior, revelando dimensões da política universitária de um determinado governo.

Os docentes sobreimplicados com as propostas das reformas curriculares, em geral, são acometidos de uma cegueira, considerando que tudo o que a reforma propõe é excelente, e que se deve negar o passado. Por aderir e acreditar na reforma, tais professores poderão, sobrecarregar-se de trabalho. Essa forma plena de adesão dificulta também que as lacunas sejam percebidas quando assumem o papel daqueles que se recusam a trabalhar interdisciplinarmente ou se desdobram para atender diversos grupos de alunos, ao mesmo tempo, pois não há quantitativo suficiente de contratações de professores como recomendam os novos currículos aprovados.

É sabido que trabalhar na perspectiva da interdisciplinaridade e da utilização de métodos inovadores e participativos de ensino-aprendizagem exige bastante esforço, tempo, paciência e às vezes traz a necessidade de recorrer a outros cursos e seminários de formação, nem sempre disponibilizados pela política da organização universitária.

Em última análise, a reforma curricular é muito mais do que um rearranjo de disciplinas, conteúdos e técnicas pedagógicas e é fundamental para a melhoria do atendimento à saúde da população.

É certo afirmar que os docentes entrevistados, apesar de seus diferentes posicionamentos diante da reforma, são muito implicados com a defesa da universidade pública, o que, em minha opinião, é essencial para a construção de uma sociedade mais justa e solidária.

 

 

REFERÊNCIAS

 

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9.    Westphal MF, Bógus CM, Faria MM. Grupos focais: experiências precursoras do uso da técnica em programas educativos em saúde no Brasil, Boletin de la Oficina Sanitaria Panamericana 1996. Washington: 120(6):472-82.

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CONTRIBUIÇÃO DOS AUTORES

Concepção e desenho: Lucia Cardoso Mourão, Solange L'Abbate. Pesquisa bibliográfica: Lucia Cardoso Mourão, Solange L'Abbate. Coleta dos dados: Lucia Cardoso Mourão, Solange L'Abbate. Análise e interpretação: Lucia Cardoso Mourão, Solange L'Abbate.Revisão crítica e aprovação final do artigo: Lucia Cardoso Mourão, Solange L'Abbate.