ARTIGOS ORIGINAIS

 

O convívio do adolescente com HIV/AIDS e o autocuidado: estudo descritivo

 

Francisco Jucier da Luz Sampaio Filho1, Fabiane do Amaral Gubert1, Patrícia Neyva da Costa Pinheiro1, Alissan Karine Lima Martins1, Neiva Francenely Cunha Vieira1, Maria de Fátima Bastos Nóbrega2

1Universidade Federal do Ceará
2Hospital Universitário Walter Cantídio

 


RESUMO
Objetivo: descrever o enfrentamento de adolescentes que convivem com o Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV) por meio de ações de autocuidado. Método: Estudo descritivo, baseado na Teoria Geral do Autocuidado de Orem, realizado junto a nove adolescentes, pacientes no ambulatório de Doenças Sexualmente Transmissíveis de um hospital de Fortaleza-CE. A interpretação baseou-se na análise de conteúdo. Resultados: O apoio da família, profissionais de saúde e amigos, meios de comunicação, motivação intrínseca foram entendidos como estimuladores do autocuidado. Quanto às barreiras são apontados o preconceito e vergonha, a adaptação ineficaz e a falta de conhecimento. Discussão: Por meio da educação em saúde como prática assistencial, neste contexto, é possível promover estratégias de autocuidado específicas ao contexto sociocultural dos adolescentes. Conclusão: Compete aos profissionais de saúde, especialmente aos enfermeiros, unirem esforços no aprimoramento das estratégias que visem ao engajamento de adolescentes portadores de HIV no autocuidado.
Palavras-chaves: Adolescente; HIV; Autocuidado; Cuidados de Enfermagem.


 

INTRODUÇÃO

A Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (Aids) constitui um dos grandes problemas de saúde pública no plano mundial. A Organização das Nações Unidas (ONU) aponta que em 2009, houve um aumento de 2,7 milhões de novos casos da doença no mundo, e das pessoas infectadas, cerca de 430.000 são indivíduos com menos de 15 anos de idade(1).

Em relação ao cenário do Brasil, segundo relatórios divulgados pelo Ministério da Saúde foram registrados 66.698 casos de Aids entre jovens de 15 a 24 anos até junho de 2011. Isso representa 10,9% dos casos notificados de Aids no país. Na mesma faixa etária, a transmissão sexual representa 68% dos casos notificados e a via sanguínea responde por 23%(2)

Diante dessa realidade, percebe-se que os adolescentes representam parcela importante no cenário da infecção, e por isso é fundamental que os serviços e os profissionais de saúde aprimorem as políticas de atendimento a fim de considerar as particularidades e necessidades específicas desta fase de desenvolvimento, acrescidas das complexas situações impostas pela condição de soropositividade(3).

Em relação ao jovem soropositivo, o autocuidado se configura como uma estratégia assistencial capaz de atender essas necessidades. Para Orem(4), o autocuidado é a prática de atividades que o indivíduo inicia e executa em seu próprio benefício, na manutenção da vida, da saúde e do bem-estar. Tem como propósito, as ações, que, seguindo um modelo, contribui de maneira específica, na integridade, nas funções e no desenvolvimento humano. 

O autocuidado vem sendo compreendido na literatura na área da saúde, especificamente no que se refere a estudos sobre sua aplicação ao paciente com HIV/Aids, de forma fragmentada e limitada, estando restrito à adesão ao tratamento antirretroviral ou com o cunho preventivo da adesão ao uso de preservativos. A definição de autocuidado abordada nesse trabalho pauta-se numa consciência ampla do indivíduo, que engloba a preservação de si mesmo e seu reconhecimento como sujeito de direito.

Em relação aos adolescentes, a dimensão ampliada do autocuidado incorpora aspectos relacionados à adesão adequada à terapia medicamentosa, uso de preservativos nas relações com os parceiros (sendo eles, soropositivos ou não), cuidados com a alimentação, moradia, busca ativa de um espaço de escuta e informação, preservação de sua autoimagem, entre outros(5).

As práticas profissionais destinadas ao autocuidado objetivam o empoderamento do adolescente com HIV e configura-se como uma estratégia fundamental para a promoção da saúde, tendo em vista que incentiva o indivíduo a adotar hábitos saudáveis e autônomos para estabelecer e manter a própria saúde(6).

O enfermeiro, como integrante da equipe multidisciplinar, por meio da consulta de enfermagem(5) propicia condições para melhoria da qualidade de vida na medida em que proporciona uma abordagem contextualizada e participativa junto ao adolescente. A consulta oportuniza um trabalho voltado para a promoção da saúde e responde pela preparação do cliente para o autocuidado(7).

A importância de desenvolver um trabalho que englobe o autocuidado na população adolescente está relacionada à identificação das ações envolvidas neste contexto e que oportunizem compreender, a partir das reflexões dos próprios adolescentes, aspectos que dificultam/facilitam a adesão, contribuindo dessa forma com conhecimentos acerca do comportamento do jovem portador de HIV/Aids. Assim, o objetivo deste estudo é descrever o enfrentamento do HIV/Aids do adolescente portador por meio das ações de autocuidado.

 

MÉTODO

Estudo descritivo com abordagem qualitativa, utilizando a Teoria Geral do Autocuidado de Orem(4) como referencial teórico principal, visto que seu modelo conceitual possibilita uma grande aplicabilidade à assistência de enfermagem à adolescentes portadores de HIV/Aids, na identificação das demandas de autocuidado, permitindo que o adolescente e o familiar tenham um papel ativo na condução do autocuidado. O princípio básico da teoria do autocuidado de Dorothea E. Orem é de que o ser humano possui habilidades inatas para cuidar de si mesmo. A autora defende o ponto de vista de que as pessoas possuem capacidades para regular fatores internos e externos que afetam seu funcionamento e desenvolvimento.

Tais ações e capacidades reguladoras constituem o autocuidado.

A pesquisa foi realizada no ambulatório de Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST) de um hospital da cidade de Fortaleza. Participaram do estudo nove adolescentes (cinco do sexo masculino e quatro do sexo feminino) com idades entre 16 e 19 anos, portadores de HIV que compareceram ao ambulatório no período de 31 de março a 30 de abril de 2010.

Desses adolescentes, cinco contraíram o vírus por Transmissão Materno-Infantil (TMI) e quatro por transmissão sexual, sendo todos conhecedores do diagnóstico. Como critérios de inclusão delimitaram-se: adolescentes de 12 a 19 anos, de ambos o sexos, que comparecessem ao ambulatório no período de estudo; que no momento da entrevista tivessem condições psicológicas para participar e que contassem com a anuência dos pais e/ou responsáveis.

Durante o estudo, 13 adolescentes compareceram, e destes, quatro não puderam participar, pois não contavam com anuência da família.

Para a coleta de dados foi utilizada a observação livre e a entrevista individual e semiestruturada, procedimentos esses que foram realizados em uma sala privativa, nas dependências do local, a fim de garantir o sigilo e confidencialidade. Neste momento, apresentou-se o Termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE), o qual era preenchido no local, caso os pais/responsáveis estivessem presentes, ou agendado momento posterior para coleta de informações e entrega do TCLE.

O instrumento de coleta contava com cinco questões abertas: a primeira questão buscava conhecer a concepção dos adolescentes sobre autocuidado; a segunda vertia acerca das informações relacionadas às ações de autocuidado praticadas pelos pacientes; a terceira e quarta investigavam as facilidades e barreiras para o exercício do autocuidado e por último, uma questão direcionada a sugestões de estratégias que poderiam ser realizadas pelos profissionais de saúde no sentido de estimular o autocuidado.

A Análise das informações, foi realizada mediante análise de conteúdo(8) utilizando  procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens. Esta análise apresenta três fases fundamentais: a pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados. A análise dos dados permitiu a identificação das categorias conceituais: Autocuidado na visão do adolescente e Fatores que promovem ou dificultam o autocuidado.

O desenvolvimento do estudo seguiu os preceitos éticos da Resolução n.° 196/96 do Conselho Nacional de Saúde(9), sendo o projeto aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição onde se deu a pesquisa (Parecer 03/2010).

 

RESULTADOS

A análise dos dados permitiu a identificação das categorias conceituais: Autocuidado na visão do adolescente e Fatores que promovem ou dificultam o autocuidado. Tais categorias serão apresentadas e ilustradas com exemplos extraídos das entrevistas com os pacientes do serviço.

O autocuidado na visão dos adolescentes
O conceito de autocuidado construído pela maioria dos pacientes abrange aspectos relacionados à qualidade de vida, nutrição, prevenção e atividades típicas da adolescência como ler, estudar ou namorar.

Autocuidado é fazer coisas que mantenham minha saúde [...]. Tomo meus remédios na hora certa, bebo bastante líquido, me alimento bem, uso camisinha, não fumo. (P6)

 

A percepção de autocuidado foi permeada por aspectos relacionados à valorização pessoal, à consciência da própria existência e de seu valor no mundo. Evidenciou-se o sentimento de satisfação ao conseguir vivenciar o controle do seu corpo, da sua própria vida.
É uma forma de viver da melhor forma possível, mesmo tendo minha doença. Porque mesmo sendo HIV positivo isso não quer dizer que num tô mais nem aí pra mim que não tenho mais que me cuidar. Penso em mim e no outro. (P4)

Autocuidado pra mim, é tudo o que eu tenho que fazer pra proteger minha saúde, e além de cuidar de mim, tenho que cuidar das outras pessoas também, por exemplo, não deixarem as pessoas tocarem em mim quando eu tiver algum sangramento, alertar sobre minha doença pra parceiros. (P1)Por outro lado, o entendimento do que seria autocuidado para dois dos adolescentes, foi baseado em uma noção restrita ligada ao medicamento.

Quando penso em autocuidado, vem logo na minha cabeça a imagem dos meus coquetéis. Pra mim é fundamental. (P8)

Fatores que promovem ou dificultam o autocuidado

Família e profissionais de saúde
Os adolescentes do estudo comentam que tem como apoio fundamental para o autocuidado a presença da família, dos profissionais de saúde e de outras pessoas próximas, como amigos. O apoio familiar se expressa especialmente pela presença constante do cônjuge, nos adolescentes que já experienciam essa situação. No caso dos adolescentes que ainda moravam com os pais, esses se mostraram parceiros no processo de cuidado do filho com HIV, pois o problema de saúde parece ter sido um elemento de aproximação. Em todos os casos, as mães eram as “âncoras” nesse cuidado, elas que acompanhavam os filhos nas consultas.

Minha mãe sabe que tenho HIV, [...] ela não vem para as consultas comigo, mas só o fato dela não ter deixado de falar comigo ou ter me expulsado de casa, é o maior apoio que ela pode me dar. Não estaria vindo aqui, se ela não tivesse dado o primeiro passo. (P3)

Os profissionais de saúde são referidos como apoio no processo de desenvolver o autocuidado, oferecendo além de informações e conhecimentos, também suporte emocional.
O pessoal daqui ouve a gente, tira todas as dúvidas. Mas quando tem que puxar orelha, eles puxam também. Sempre lembram a gente dos cuidados que a gente tem que ter. (P7)

Em relação ao apoio dos profissionais de saúde, é preciso dizer que o profissional mais citado pelos jovens foi o médico, o que desperta certa dúvida quanto ao papel desempenhado pelo enfermeiro no acompanhamento desses indivíduos.

Meios de comunicação
Para os integrantes do estudo, ter informações sobre o HIV/Aids, suas complicações e tratamentos, influencia positivamente o autocuidado. Segundo eles, as fontes de informação são focalizadas especialmente na internet e na televisão. Nas falas encontramos a crença de que a internet fornece informações sobre a necessidade do autocuidado, incentivando a busca de orientação profissional.
... outra coisa que acho também importante é que quando você tem alguma dúvida sobre a doença, o que você pode ou não fazer, tem a internet. Além de perguntar aos médicos mesmo, claro. (P7)

A televisão também apresenta forte influência cultural na apreensão de conhecimentos sobre o HIV/Aids. Ao que parece, existe uma relação de transferência de conhecimentos específicos da televisão com relação à prática do autocuidado e na sua influência exercida ao adolescente portador de HIV/Aids como descrito na fala seguinte:

Eu procuro ler livros, revistas, ver notícias, e novidades na TV. Procuro saber de tudo sobre a Aids. (P9)

 

Motivação intrínseca
Acreditar na possibilidade de ter uma vida melhor, ou até mesmo encontrar a cura é um fator que contribui para o autocuidado, e essa consciência esteve presente no discurso de três integrantes do estudo. Os adolescentes mantêm a esperança de um futuro melhor como fonte de sua motivação e acreditam que, com fé, tempo e paciência, alcançarão melhor qualidade de vida.

uma facilidade também que eu acho, é minha própria vontade de viver melhor. Tenho uma vida inteira pela frente, e tenho que tentar fazer tudo pra que ela seja o melhor possível. (P4)

 

Outro aspecto que emergiu de forma favorável para a prática do autocuidado foi a manifestação da espiritualidade. Talvez ela seja utilizada pelo paciente como meio de sentir-se amparado em um ambiente desconhecido e em um momento de extrema fragilidade, quando a crença, a fé e a proteção podem significar cura, conforto e salvação. Evidencia-se a busca pela espiritualidade em frases como:

minha força de vontade, porque se fosse outro que tivesse passado pela barra que eu tinha passado, tinha desistido da vida. Mas eu creio em Deus, e graças a Deus, assim, que eu nunca senti nada por causa da doença. (P6)

 

Preconceito e vergonha
O conhecimento da doença por pessoas da família ou do meio social ainda é motivo de discriminação, conforme foi apontado pela adolescente a seguir:

É muito ruim esconder e minha família me isolou, eles não falam mais comigo. (P3)

O convívio do familiar com o adolescente portador do HIV, fez com que muitas vezes fossem adotadas atitudes que visavam à proteção do jovem, bem como da própria família contra o preconceito e as representações que a Aids suscita na sociedade. O familiar julgava que o melhor a fazer era esconder das outras pessoas o diagnóstico do adolescente, no entanto, nem sempre essa atitude refletia uma vontade do jovem.

Eu não ter que revelar que sou portador também é muito difícil pra mim. Por mim eu falaria a quem quisesse saber, não falo por respeito à minha mãe, que não quer que as outras pessoas saibam. (A4)

A vergonha foi um sentimento citado por dois adolescentes e percebido como uma barreira para a adoção ou continuidade de práticas de autocuidado. A ida ao hospital para as consultas periódicas se configura como um risco potencial de ter sua condição descoberta por outros, optam então, pelo ocultamento da verdade como forma de proteger-se desse sentimento.

Preconceito, eu nunca sofri, porque ninguém sabe que eu tenho isso, sabe?! Se alguém souber, sei lá [...] não sei como eu reagiria [...] acho que teria vergonha, não sei. (P2).

Eu sinto muita vergonha de ter essa doença, de, por exemplo, quando eu me corto, fico sem jeito de explicar porque não devem tocar em mim [...] pra vir para o hospital também, venho quase que escondido, mas claro que não deixo de vir [...] mas isso é ruim. (P1)

 

Autoaceitação, adaptação a novo estilo de vida
Durante as entrevistas, ficou evidente que o processo deficiente de autoaceitação e adaptação ao novo estilo de vida que o HIV exige, constitui uma dificuldade para o engajamento efetivo nas atividades de autocuidado. Os relatos dos adolescentes sugeriram que não há uma aceitação plena da doença. Há momentos em que compreendem a situação, parecendo que a aceitam, mas isso é cíclico, pois, em outros momentos, manifestam que não conseguem lidar bem com o fato de serem portadores do vírus.
O mais difícil foi aceitar a doença, chorava escondida, direto [...] pensava sempre no pior [...] não queria me cuidar [...]. (A8)

Essa não aceitação ou adaptação ineficaz, muitas vezes, não é da doença em si, mas especialmente dos cuidados necessários. Principalmente quando esses cuidados exigem que o jovem se abstenha de comportamentos ditos comuns nessa fase.

Minha maior dificuldade sou eu mesmo, porque sabe como é adolescente, às vezes faz extravagâncias, às vezes eu quero beber, sabe?, sair com o pessoal. Esse é o meu medo que, por causa disso, possam vir as complicações. (A7)

Além disso, identificou-se a falta de conhecimento ou a necessidade de orientação dos integrantes do estudo, relacionada às formas de infecção pelo HIV. Foi verificado que a desinformação acarretava uma restrição na prática efetiva do autocuidado ou a adoção de proteção de forma excessiva motivada por crenças acerca das formas de infecção do HIV (infecção de terceiros apenas pelo contato da pele com o sangue, por exemplo).

Tomar o máximo cuidado pra não me cortar e não deixar as pessoas tocarem nesse sangramento. (A1)

A falta de conhecimento do parceiro também foi pontuada por uma jovem, que expressou certa tristeza com o fato, ao direcionar seu olhar para o chão e deixar os ombros caídos.

Ele (o cônjuge) me dá muita força, mas sinto que ele não é 100% esclarecido, sabe? Muitas coisas ele teria que ouvir do médico mesmo. (A5)

 

DISCUSSÃO

Um aspecto que emergiu dos discursos é a visão ampliada do conceito de promoção da saúde, a qual diz respeito à percepção do autocuidado dentro de um sentido relacional, ou seja, transcendendo o sentido do “auto” cuidado ou do cuidado “a si mesmo”, pois para eles o conceito englobava também o cuidado com quem convive.

A visão sistêmica do autocuidado, relatada pelos adolescentes, em confluência à teoria proposta neste estudo remete que as experiências prévias somadas às crenças e valores influenciaram a percepção de um autocuidado pleno, voltado não apenas para a tomada dos medicamentos, mas à prática de ações que contribuem para a manutenção de sua saúde(10).

Por outro lado, o entendimento do que seria autocuidado para dois dos adolescentes, foi baseado em uma noção restrita, direcionada à tomada do medicamento. Essa ação mobilizava um comprometimento e esforço efetivo do jovem, que via na medicação a razão única e fundamental de continuar com saúde(11). Esta mentalidade pode promover a propagação da doença.

O autocuidado percebido quase que exclusivamente como a tomada de medicamentos constitui uma visão reduzida do mesmo. A medicação representa a possibilidade de se construir um projeto de vida no futuro: o poder se formar, trabalhar e constituir uma família. Erdmann(12) reporta que o projeto de vida é um sintoma da “normalidade”, ou seja, para se viver de maneira “normal”, é preciso fazer projetos e para tanto, negar a morte, que no caso dos adolescentes desse estudo, tem-se o HIV como o sentido da morte.

A integração e o desenvolvimento do indivíduo enquanto sujeito está condicionado à presença de pessoas significativas que facilitem esse processo (12). Nesse sentido, a visão relacional do autocuidado, como extensão da percepção sistêmica do mesmo, se configura mais como um benefício do que um prejuízo ao adolescente.

Diante das falas e importância do profissional de enfermagem na assistência ao adolescente com HIV, é preocupante sua forma coadjuvante de atuação, a qual não foi citada pelos integrantes do estudo. O profissional de saúde é quem deve orientar a respeito das práticas de autocuidado que possam garantir a eficácia da adesão ao tratamento, e dentre eles, o enfermeiro é o mais indicado devido à familiaridade com a condução de estratégias de promoção da saúde, adquiridas durante sua formação acadêmica(3). A relação entre o enfermeiro e paciente tem um terreno fértil para o desenvolvimento de ações educativas transformadoras, visto ser o cuidado um grande alicerce da prática da enfermagem(13).

Sabe-se que a educação em saúde é um dos pontos fundamentais no atendimento ao portador de HIV, pois contribui para o desenvolvimento das habilidades nas mudanças de hábitos e para a motivação do indivíduo para uma melhor apreensão dos novos conhecimentos acerca do autocuidado, de forma crítica e reflexiva(11). Ainda maior importância é acrescida quando o portador do vírus se encontra na adolescência. Supõe-se que o processo de educação que os profissionais de saúde devem ter desenvolvido com os integrantes do estudo contribuíram para a formação da visão sistêmica do autocuidado, sendo também influenciado pelas crenças e valores intrínsecos a esses jovens.

O processo educativo deve promover a ideia de que o uso de novas tecnologias deve ser utilizado, pois são elementos fundamentais para o autocuidado. Autores reforçam que o conhecimento sobre o HIV/Aids e outras doenças crônicas, bem como as formas de controlá-las, são aspectos importantes para o tratamento, prevenção e manutenção deste. A mídia, atualmente, é uma das principais formas de acesso à informação(14). No entanto, as informações precisam de um refinamento para se tornar um conhecimento que permita às pessoas tomarem decisões que sejam favoráveis à sua saúde e ao seu bem-estar, a fim de que possam assumir o autocuidado.

O profissional de saúde, por meio da educação em saúde, deve estar atento às informações veiculadas pela mídia para que seja capaz de desenvolver esse processo seletivo entre o que é útil ou não para o paciente. Mais uma vez, ressalta-se a importância do enfermeiro dentro desse contexto, que pode fazer uso de momentos pedagógicos e educativos no próprio hospital como forma de facilitar o acesso à informação sobre a condição de saúde do adolescente.

A informação quando é transmitida de maneira correta e adequada às necessidades culturais e sociais, promove o desenvolvimento de habilidades e favorece a autoconfiança da família e dos adolescentes com HIV na prática do autocuidado. Percebe-se então, que os meios de comunicação são capazes de influenciar a prática de autocuidado dos sujeitos, ao utilizar informações que de alguma forma se dirigem à “educação” das pessoas, ensinando-lhes modos de perceber a realidade em que vivem(13).

Reforça-se, então, a ideia de que as crenças e valores são fatores que influenciam a percepção de saúde e de autocuidado que se desenvolverá na vida dos indivíduos. A formação dessas crenças é influenciada fortemente pelo contexto familiar no qual o indivíduo se desenvolve.

Percebe-se que a esperança como reflexo da motivação intrínseca, a qual contribui para a melhora dos indivíduos, também favorece a procura de alternativas para vencer as adversidades, permitindo uma expectativa positiva para suas vidas(14). É um componente que deve ser visto como relevante, pois mobiliza o adolescente a buscar um autocuidado pleno, mesmo diante das circunstâncias impostas pelo HIV.

Há também por parte dos integrantes do estudo o reconhecimento da espiritualidade como fator motivador do autocuidado. Culturalmente, o povo brasileiro é permeado pela espiritualidade, independentemente da religiosidade, e nos momentos difíceis a maioria recorre à fé. É compreensível que em situação de enfermidade grave, o paciente resgate seus valores morais e espirituais como meio de pedir a Deus por sua saúde, por sua cura(14).

Refletindo sobre a palavra preconceito, podemos observar que se refere à opinião ou crença admitida sem ser discutida ou examinada, internalizada pelos indivíduos sem se darem conta disso, e influenciando o seu modo de agir e de considerar a realidade observada. É constituído por uma visão de mundo ingênua que se transmite culturalmente e reflete crenças, valores e interesses de uma sociedade ou grupo social(15).

A revelação do diagnóstico do HIV no círculo familiar e social também é apontada, implicitamente, nos relatos, como discriminatória, pois se supõe não haver na família, nem no meio social, a compreensão da Aids como uma enfermidade crônica passível de convivência sem medo, mas uma doença que, em virtude de sua história, ainda imprime as marcas do preconceito, como a vergonha e o isolamento social, que são estendidos à rede familiar quando um de seus componentes é portador de HIV(16).

Em se tratando de HIV/Aids, percebe-se a vergonha como outro sentimento entre os portadores que, por meio de suas manifestações comportamentais, demonstram-se frágeis frente à doença e suas imposições. Semelhante ao que ocorreu com o medo do preconceito, o ocultamento da doença pelos adolescentes é motivado pela vergonha de ser portador. O silêncio, mesmo sendo permeado de dilemas, é entendido pelos jovens como uma necessidade de proteger-se, criando uma aura de normalidade em torno de si.

Aceitar é encarar as circunstâncias da vida e para haver aceitação, é necessário que a pessoa admita a realidade dos fatos, avalie os acontecimentos e promova mudanças, pois, só assim, será capaz de alcançar os objetivos(14,15). Portanto, é necessário estimular suas capacidades para adaptação ao novo estilo de vida e fazer com que se envolvam com o autocuidado que essa condição de saúde requer, para que possam assumir o controle de seu tratamento por períodos prolongados.

Ressalta-se a importância da equipe multiprofissional na promoção da autoaceitação do adolescente com HIV, especialmente do enfermeiro que atua identificando as limitações e buscando com o adolescente, meios de realizar o autocuidado e estratégias de adaptação à condição crônica de saúde(16).

O autocuidado requer mais do que simplesmente a apreensão do conhecimento técnico e normativo. Esta compreensão da dimensão do autocuidado aborda questões mais complexas e necessita de uma construção de competências por parte dos profissionais(7).


Desse modo, aprender coisas novas e adquirir mais conhecimentos e experiências faz com que o indivíduo comece a recuperar os aspectos negativos da mudança e passe a adaptar-se com maior segurança ao novo meio de vida, valorizando seus limites, para desempenhar sozinho, os procedimentos de autocuidado, essenciais para sua sobrevivência(17).

 

CONCLUSÃO

Faz-se necessário destacar o significado de realizar um estudo com a abordagem de um tema ainda tão desafiante como o HIV/Aids, tendo como pressupostos as bases conceituais da Teoria do Autocuidado de Orem. Na área de prevenção às DST/HIV esta vivência com a doença continua cercada de estigmas e preconceitos que insistem em demonstrar o quão ainda é preciso aprofundar o conhecimento.

A Teoria do Autocuidado de Orem permitiu identificar as situações vivenciadas pelos adolescentes e confirmar seus pressupostos e aplicabilidade na prática assistencial, na medida em que permite identificar as demandas de autocuidado especificas, bem como as limitações semelhantes para inserção em autocuidado ou cuidado dependente no contexto do estudo.

Na pesquisa foi possível compreender melhor o universo dos adolescentes portadores de HIV/Aids de Fortaleza, na perspectiva do autocuidado, identificando e compreendendo a percepção de saúde e de autocuidado desses jovens, os fatores que contribuem para o seu engajamento e os que constituem barreiras. Apesar dos resultados, não podemos fazer generalizações, visto que os adolescentes de outros cenários socioculturais, podem se comportar de forma diferente, no entanto, podemos com este estudo elucidar uma pequena realidade que ocorre em uma capital do nordeste brasileiro, o qual concentra grande número de casos nesta faixa-etária.

Compete aos profissionais de saúde, especialmente aos enfermeiros, unirem esforços na obtenção de melhores estratégias para o engajamento de adolescentes portadores de HIV/Aids no autocuidado, sendo vital reconhecer aspectos culturais e individuais de seus clientes, rever conceitos, condutas e perceber as barreiras de autocuidado de cada indivíduo.

A assistência de enfermagem aos adolescentes que convivem com o HIV/Aids, é imprescindível e deve, também, atuar no sentido de ajudá-los a trabalhar seus medos, dúvidas e preocupações futuras. Este trabalho pode e deve ocorrer dentro da instituição hospitalar, e para isso o enfermeiro conta com um arsenal de estratégias de promoção da saúde que pode vir a fazer uso dentro deste ambiente, sendo a educação em saúde apenas uma delas.

A partir do momento que o enfermeiro incorporar essa ideia à realização do seu cuidado, especialmente no ambiente hospitalar, estará contribuindo para uma melhor qualidade de vida desses adolescentes. É preciso entender que educar é uma forma de cuidar e de promover saúde, pois é através da educação que se pode habilitar o cliente para exercer o seu próprio cuidado, como expressão de sua autonomia.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido: 05/03/2012
Aprovado: 23/01/2013