ARTIGOS ORIGINAIS

 

Cuidado aos filhos no contexto de vida de mães enfermeiras – estudo exploratório

 

Bruna Caroline Rodrigues1, Ieda Harumi Higarashi2

1Prefeitura Municipal de Maringá
2Universidade Estadual de Maringá

 


RESUMO
Objetivo: Compreender o processo de realização do cuidado com os filhos no contexto de vida de mães enfermeiras.
Método: Estudo descritivo-exploratório com abordagem qualitativa e técnica metodológica de bola de neve para seleção de 10 mães enfermeiras. A coleta de dados ocorreu no período de novembro de 2011 a janeiro de 2012 por meio de entrevistas semiestruturadas e análise de conteúdo.
Resultados: Emanaram duas categorias: Ώ] vivências da maternidade e maternagem de enfermeiras; ΐ] exercício profissional e o processo de criação dos filhos.
Discussão: A pessoalidade do ato de cuidar, oriunda da experiência de ser mãe, foi evidenciada pela manifestação da angústia em delegar a criação do filho para se dedicar aos pacientes.
Conclusão: As mulheres sofrem com pressões internas relacionadas à profissão e ao cuidado adequado, nem sempre passível de implementação em suas vidas e no zelo com os próprios filhos.
Descritores: Enfermagem Materno-Infantil; Mães; Cuidado da Criança; Trabalho.


 

INTRODUÇÃO

A criação dos filhos é um processo que está inserido no contexto familiar, permeado por valores e crenças peculiares a cada família, além de percepções sobre a criança e o papel da mulher e do homem nessa condição(1).

Filhos requerem zelo, atenção e afeto para que cresçam saudáveis e protegidos. Para tanto, a presença dos pais constitui-se em fator primordial ao estabelecimento das relações afetuosas, bem como no processo de educação. Além disso, compõem membros importantes na rede social de apoio e como provedores do cuidado infantil(2,3).

Apesar de esse ideal representar quase um consenso na sociedade, percebe-se uma transformação nas relações entre pais e filhos, que vêm modificando a atribuição de papéis na atualidade. A família tradicionalmente estruturada com mãe, pai e filhos está dando lugar a uma diversidade de configurações, refletindo o processo de transformação por que passa a sociedade contemporânea.

Se no passado ter uma família grande e feliz era considerado sinônimo de status, hoje depende, na maioria das vezes, da vida profissional e ganho financeiro dos mantenedores dessa estrutura(4). Assim, percebe-se uma transformação da sociedade, com a desconstrução de diversos paradigmas e conceitos previamente estabelecidos(5).

Em decorrência das demandas financeiras, os pais passam grande parte do dia fora de casa e deixam seus filhos sob os cuidados de avós, babás ou centros de educação infantil. Essa “ausência” mostra-se cada vez mais comum e reflete, de modo variado, no âmbito comportamental e educacional das crianças(6).

Não raramente, a alteração da dinâmica familiar da criação acaba gerando um sentimento de frustração nas mães no que diz respeito ao pleno exercício do papel materno. A mulher vivencia o dilema de ter que trabalhar fora ao mesmo tempo em que, na condição de mãe, não deseja deixar de dar atenção aos filhos, independentemente da sua idade.

Tiba (2010)(7) afirma que trabalhar fora é um problema entre as mulheres que se tornam mães, mas a sobrevivência acaba falando mais alto do que a educação de seus filhos. Desse modo, restam três opções para essas mães: as avós, as babás e as instituições de educação infantil.

Configura-se atualmente um cenário diversificado de influências que resultam num processo cada vez mais complexo de educação e formação dos indivíduos em sociedade. O contexto familiar, as vivências e as práticas educacionais na infância estão diretamente vinculadas às habilidades sociais que estas irão desenvolver mais tarde(6).

Historicamente a profissão de enfermagem sempre esteve atrelada à figura feminina, seja em função de suas raízes (ligadas às ações de religiosas no amparo das populações fragilizadas pela pobreza e doença), seja pela associação quase imediata entre o conceito de cuidar e o exercício do papel feminino e, principalmente, materno. Esse fato está diretamente ligado ao papel socialmente atribuído à mulher: de mãe, que cria, nutre e educa.

Nesse cenário, surgem alguns questionamentos relacionados às mães enfermeiras: elas se sentem culpadas por não estarem com seus filhos? Quantas horas do dia passam com eles? Como conciliam os papéis sociais que desempenham? Como se avaliam nesse processo? Quais sentimentos vivenciam ao delegar as atribuições de cuidado a terceiros? Como percebem a participação do marido/companheiro na formação? Como a enfermagem influencia na maternidade?

Este estudo tem o intuito de ajudar a esclarecer o tema e oferecer subsídios para a reflexão sobre a prática profissional da enfermeira e seus impactos sobre a qualidade de vida de sua família, em especial no que tange à dedicação aos filhos menores. Também objetiva compreender o processo de realização do cuidado infantil no contexto de vida de mães enfermeiras.

 

MÉTODO

Esta análise é parte integrante da pesquisa: “Mães enfermeiras: o processo de cuidado dos filhos no contexto de vida e trabalho”, que teve como proposta geral compreender o processo de criação no contexto de vida de mães enfermeiras. Trata-se de um estudo descritivo-exploratório com abordagem qualitativa.

Esse estilo de abordagem está ligado a investigações de grupos e segmentos delimitados e focalizados, de histórias sociais sob a ótica dos atores, de relações e para análises de discursos e de documentos(8). Embora os sujeitos possibilitem um melhor entendimento de um fenômeno pouco conhecido, os dados encontrados não podem ser generalizados a outras populações diferentes da avaliada.

O local de coleta de dados foi o município de Maringá, localizado na região Noroeste do Estado do Paraná, com área total de 488 Km2 e população de 357.007 habitantes(9). Os sujeitos foram 10 mães enfermeiras atuantes e com filhos únicos com idade entre seis meses e seis anos. Optou-se por mães com apenas um filho para expor a primeira experiência das participantes na conciliação dos papéis sociais de mãe e profissional enfermeira e nas adaptações implementadas aos cuidados de maternagem nesse contexto. A seleção do limite etário foi determinada com a finalidade de resgatar memórias mais recentes, permitindo a inclusão de uma descrição mais detalhada da vivência no processo de criar, desde o nascimento até a situação atual.

Por tratar-se de estudo qualitativo optou-se, por conveniência, pela utilização da amostra intencional, de modo a selecionar os casos “ricos” em informações sobre o tema e com maior probabilidade de responder a questão central. A amostra intencional utilizada foi a amostragem com critérios, isto é, selecionaram-se indivíduos com maior probabilidade de oferecer informações pertinentes à temática e de acordo com os critérios já citados, considerados importantes para o entendimento do assunto(10).

O processo de seleção das mulheres se deu pela técnica metodológica de pesquisa de cadeias ou de “bola de neve”(11), de tal modo que cada participante foi convidada a indicar alguém de seu convívio profissional ou social para integrar a pesquisa. Segundo essa estratégia de busca, os primeiros entrevistados indicam outros, que por sua vez indicam outros, e assim sucessivamente.

Foi considerado sujeito primário aquele que primeiramente foi contactado e abordado quanto ao interesse de participação. Conforme previamente apontado, ele foi escolhido pelos critérios de conveniência. A partir deste, os demais contatos foram efetuados por meio telefônico ou pessoalmente por indicação do sujeito primário.

A coleta de dados ocorreu no período de novembro de 2011 a janeiro de 2012 e se deu por meio da realização de entrevistas utilizando um roteiro semiestruturado. As informações foram recolhidas sem predeterminação do número de sujeitos participantes, pois a quantidade de indivíduos foi definida pela saturação dos dados e, principalmente, na medida do alcance dos objetivos previamente estabelecidos.

Registraram-se os relatos pertinentes ao desenvolvimento temático com o uso de um gravador digital e, posteriormente, foram transcritos na íntegra, no sentido de preservar a fidedignidade das informações.

Os dados passaram por processo analítico e descritivo a partir da técnica de análise de conteúdo, na modalidade análise temática(12). Os dados encontrados percorreram três etapas básicas:

1. Pré-análise: correspondente à organização propriamente dita e tem o objetivo de sistematizar as ideias iniciais e torná-las operacionais;
2. Exploração do material: administração sistemática das decisões tomadas, seja por codificação, desconto ou enumeração;
3. Tratamento dos resultados: objetiva estabelecer relações entre a realidade vivenciada e a intuição e reflexão, aprofundando conexões de ideias e formulando propostas básicas de transformações nos limites das estruturas específicas e gerais(13).

A pesquisa foi apreciada e aprovada pelo Comitê Permanente de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos da Universidade Estadual de Maringá (COPEP/UEM), sob parecer nº 263/2011. Para assegurar o anonimato, os participantes foram identificados com a letra E de ‘entrevista’ e com números arábicos, de acordo com a sequência de realização das entrevistas.

 

RESULTADOS

A idade atual das mães (no ato da coleta) variou entre 29 e 46 anos; e a idade das mães no momento do nascimento do filho variou entre 25 e 39 anos. A maioria das participantes era casada; duas mães possuíam união estável; uma mãe era solteira e outra, divorciada.

A renda familiar mensal foi de R$1.800 a R$15.000. Cinco famílias possuíam renda menor que R$5.000, e quatro apresentavam ganho superior a R$ 10.000.

Quanto à idade e ao sexo dos filhos, a faixa etária ficou entre oito meses e seis anos, 50% de cada sexo. A idade dos pais variou entre 29 e 46 anos.

A prática do aleitamento materno exclusivo (AME) variou de quatro a seis meses e do aleitamento aterno (AM), de quatro a 28 meses. Apenas três mães referiram ter amamentado exclusivamente seus filhos até o sexto mês, conforme preconizado pelo Ministério da Saúde. Quando questionadas sobre o motivo que as levaram à introdução precoce de alimentos, a maioria referenciou a necessidade de retorno ao trabalho e escassez de produção láctea.

No que diz respeito ao objetivo específico do presente trabalho, os relatos das participantes, uma vez analisados, levaram à configuração das seguintes categorias temáticas principais:

1. Vivências da maternidade e maternagem de mães enfermeiras;
2. Exercício profissional e o processo de criação dos filhos.

Vivências da maternidade e maternagem de mães enfermeiras
A categoria tem como escopo de discussão as vivências da maternidade sob a ótica de profissionais enfermeiras. Nessa perspectiva, a maioria das mães referiu uma participação bastante ativa do casal no processo de cuidado e educação dos filhos.

Eu escuto muito minha filha. Ela tem bastante espaço aqui dentro de casa pra falar o que ela está sentindo, o que ela acha que é importante, e a gente procura atender as necessidades dela, tanto eu quanto meu marido. (E1)

Eu tento sempre fazer o melhor [...] tanto eu como meu marido, assim como a minha família toda, sempre pensando no melhor pra ele. Depois que ele nasceu, a gente vive em função dele [...] tudo o que a gente faz é pensando nele. (E7)

Em todos os relatos pode-se observar a vontade que as mães e os pais têm de contribuir para a formação de indivíduos com bom caráter, dignos e de princípios voltados para a família e a sociedade. Além disso, no exercício de seus papéis de provedores, depreende-se o sentimento de responsabilidade e preocupação de modo a fazer o possível para oferecer uma melhor qualidade de vida e bem-estar para as crianças.

Nesse processo de educação, as mães citaram a importância da imposição de limites aos filhos como uma função inalienável da família:

A gente faz tudo pra participar ativamente, estabelece regras em casa, tem os limites e é a gente que educa, não é a escola [...]. (E1)

É total a minha participação. Tem mãe que fica “ah, porque eu trabalho e não posso chamar a atenção, não posso pôr de castigo”. Eu acho que a gente tem que disciplinar, eu sei do meu papel enquanto mãe; tive uma filha e eu sei que é com ela que tenho que me preocupar. (E9)

Como não posso ficar muito tempo com ela, procuro ter qualidade no tempo que a gente fica junto. Procuro ensinar, muitas vezes falar ‘não’, que é difícil... O pai não consegue falar ‘não’. (E10)

A questão dos limites surge nos relatos como algo inerente ao papel da mãe e ao exercício da responsabilidade de criar os filhos.

Com relação ao período dedicado aos filhos, a maioria das mães relatou sentir falta de um tempo maior com as crianças.

Eu me cobro bastante, porque eu gostaria de estar acompanhando ele, poder participar mais da educação. Porque só à noite não é a mesma coisa igual quando eu fico sábado e domingo com ele (E2)

Eu avalio positivamente a minha participação, mas eu acho que se eu trabalhasse menos, se pudesse ficar mais tempo com ela, com certeza isso seria muito melhor pra ela. A presença também é importante. (E4)

Mesmo ponderando sobre a necessidade de um maior tempo de disponibilidade e dedicação aos filhos, as mães relataram que a qualidade do tempo passado com os filhos constitui-se em aspecto mais importante do que a quantidade de horas.

Eu acho que eu sou muito mais presente na vida da minha filha do que muita mãe que fica em casa todos os dias, limpando, cozinhando e o filho fica na frente da TV. Acho que vale muito mais a presença de qualidade do que a quantidade. (E4)

Eu acho que tempo é uma coisa que vale a qualidade de quando você está junto. Tenho amigas que ficam em casa o dia inteiro e que não estimulam tanto as crianças [...] ele (meu filho) tem uma percepção das coisas que muitas crianças na idade dele não têm, resultado de toda a atenção que mãe e pai oferecem. (E8)

As mães dizem ainda que a atenção oferecida aos filhos pelos pais constitui-se um aspecto essencial para estimular suas funções cognitivas, contribuindo para o processo de crescimento e desenvolvimento pleno da criança.

Sobre a escolha da pessoa ou instituição para delegar a criação do filho enquanto exercem seu papel profissional, observou-se uma crise de sentimentos, incluindo o medo e insegurança, pela pressão de “terceirizar” essa tarefa:

A gente acha que ninguém vai saber cuidar que nem a gente; nem a escola, nem a mãe, nem a sogra, porque você não confia...Você quer estar perto, você quer estar vendo. É difícil sair para trabalhar e deixar meu filho com outras pessoas sendo que a mãe sou eu, eu quem devo cuidar.  (E3)

Senti insegurança, medo de machucar, medo de cair, medo de eu não estar perto, medo dela sentir medo, medo, falta da mãe, se sentir acuada, de não tratarem ela bem, de machucarem ela, de maus tratos, de os outros coleguinhas machucarem, vários medos. Eu ligava o dia todo pra escolinha, eu deixei uma lista de telefones, planos de saúde. (E4)

Quando dirijo para o trabalho e deixo minha filha com a babá fico pensando... se ela vai tratá-la bem, fazer as coisinhas que ela gosta. Fica um sentimento de perda, de abandono, de não estar sendo mãe.  Eu me sinto culpada. Quando a gente tem um filho, a gente é quem tem que cuidar. (E6)

Tal contexto faz com que os filhos tornem-se vítimas da sobrecarga de trabalho assumida pela mãe, tanto em função do nível de dependência física e psicoativa que carregam em relação a esta quanto em decorrência das altas demandas de atenção e afeto necessários para que possam crescer saudáveis e protegidos.

O processo de reflexão acerca da transferência do zelo materno e as implicações desse fenômeno dentro da sociedade se estendem a toda a população feminina que compartilha com as mães enfermeiras os mesmos dilemas sobre o exercício ideal de cuidar e educar os filhos. Nesse sentido, a delegação de responsabilidades deve proceder-se de tal forma que obedeça a critérios de necessidade muito específicos e não seja banalizada a ponto de comprometer um vínculo tão precioso como o de mães e filhos. 

Exercício profissional e o processo de criação dos filhos
Foi possível perceber as representações e o significado da dedicação pela enfermeira-mãe, além das influências de sua formação sobre o exercício do papel materno, principalmente no que tange à ação educativa e cuidativa que as mulheres protagonizam no seio familiar.

Observou-se a influência do conhecimento apreendido na formação profissional das participantes sobre algumas concepções que as mesmas manifestaram acerca do ato de tomar conta e educar, ainda que no âmbito pessoal. Tal influência aparecia de forma ambígua entre as participantes: com um lado positivo, relacionado a um sentimento de maior segurança, conferida por um corpo de conhecimentos acerca do processo saúde-doença; e outro negativo, tendo em vista a maior cobrança em relação ao fato de se tratarem de mães com uma formação específica e voltada a tratar:

A mãe enfermeira tem como cuidar da criança com um pouco mais de qualidade: você acaba usando vários conhecimentos que você tem na enfermagem pra fazer um cuidado. É um ganho para o filho. (E5)

Tem mais cobranças ainda em cima da gente, porque “ah, mas você é enfermeira, então tem que dar conta do recado”.Quando fui dar vacina no meu filho, chorei do outro lado. Mesmo sendo enfermeira, a gente quer que o outro cuide também. (E2)

Surgiram, também, relatos relacionados a sentimentos de apreensão por trabalhar em ambientes marcados pelo contato direto com doenças que redundavam num maior risco à saúde e integridade de sua família e, especialmente, de seu filho.

] questão de você estar em contato direto com microrganismos, a gente acaba ficando resistente, mas acaba levando pra casa e as crianças estão susceptíveis. (E2)

] aquele direito que a gente tem de 15 minutos (para amamentar) não valia a pena, porque eu estava dentro de um hospital, infecção hospitalar; até eu chegar em casa, tomar um banho pra poder amamentá-la já tinha passado uma hora (E6)

Além disso, foram pontuados nos discursos os distintos sentimentos apresentados frente ao cuidar, contrapondo o lado profissional (com o paciente) ao pessoal (filho com enfermidade):

Quando eu me tornei mãe, me tornei a pessoa mais neurótica do mundo e eu acho que é porque eu sou enfermeira. Tudo o que acontecia com ela eu pensava que ia ser a desgraça, o pior caso que eu já tinha lido, que eu já tinha visto. (E1)

Quando ela estava doente e eu a deixava com o pai ou com a minha mãe e ia cuidar de outras crianças, isso em algum momento me fez refletir que eu tenho que cuidar de outro enquanto o meu precisa ser cuidado, mas também por outro lado eu tenho uma profissão que é o cuidar. Quando eu trabalho com doação de órgãos e tecidos eu não deixo de cuidar de outras pessoas; quando eu intermedio uma doação de órgãos eu estou cuidando daquele que está na fila, estou vigiando pra que tudo ocorra bem. É do cuidar que a gente está falando, e isso é ser enfermeiro. (E4)

A compreensão da profissão como atividade centrada no cuidar e no exercício de abnegação atenua, de certa forma, o sentimento eventual de culpa vivenciado pelas participantes e serve de justificativa para priorizar a preocupação com o outro.

Em seus discursos, as participantes revelaram que o fato de serem enfermeiras não se traduz em indicativo de melhor preparo para a atenção com os filhos, tampouco as isenta de viver as angústias e dúvidas que pontuam a experiência da maternidade:

Eu não podia amamentar a minha filha, tive que voltar bem antes a trabalhar. Eu estava lá cuidando das mães, falando para não darem mamadeira para a criança, enquanto eu estava fazendo a mesma coisa em casa. Não avalio muito bem meu papel enquanto enfermeira/enquanto mãe, porque eu deixo minha filha na escola pra eu poder me aperfeiçoar enquanto profissional do cuidado [...] não estou cuidando dela como eu deveria cuidar. (E6)

Quando ele nasceu eu era só mãe, eu não era enfermeira mais, porque no primeiro filho a experiência que a gente tem não serve pra nada. (E8)

No tocante às mães que tiveram dificuldade no processo da amamentação, evidenciou-se a frustração decorrente do insucesso da prática do AM, principalmente perante a sua profissão, a qual enfatiza o AM em livre demanda e como fator indispensável para melhor saúde.

] ainda mais a gente que é da área. Você cria toda aquela questão da amamentação, toda aquela expectativa. Durante a gestação, eu fiz o preparo da mama, do bico [...] eu tive rachadura, tive tudo o que eu não podia ter. (E9)

Para que o leite materno fosse oferecido exclusivamente à criança até o sexto mês de vida, houve um grande apoio familiar na prática do AM na vida de uma das mães enfermeiras.

] nos horários de mamar, por exemplo, meu marido saia do serviço dele, pegava o meu filho, ele e a babá, e levava lá no meu serviço pra eu dar de mamar. À noite também: ele saia mais cedo da aula, ia buscá-lo, daí a minha sogra ficava com ele lá e daí trazia pra mamar, eu dava mamá (sic) e ele levava de volta. (E7)

O fato de a mãe ser enfermeira pode contribuir de forma positiva no processo de efetivação do AM graças aos conhecimentos adquiridos com o curso. Nesse caso pode-se observar que a família, como rede social de apoio, mostrou-se como fator essencial na continuidade e sucesso do AM.

 

DISCUSSÃO

A participação efetiva do casal na vida do filho constitui um elemento importante para o crescimento e desenvolvimento de tal modo que sua ausência pode ocasionar reflexos variados tanto no âmbito comportamental quanto educacional. Nessa perspectiva, os relatos das mães retratam preocupações de ambos relativas ao processo de construção e manutenção desse vínculo e às interações cotidianas que o sustentam.

Cabe salientar a importância da presença paterna, citada pela maioria das mulheres deste estudo. Tal achado nos leva a pensar que o comportamento masculino atrelado apenas ao provimento financeiro da família vem dando lugar a um pai mais participativo na vida familiar(5,13).

As interações saudáveis contínuas entre crianças e seus cuidadores levam a um melhor preparo emocional e biológico para aprender e se desenvolver(4).

No que diz respeito à imposição de limites, embora percebam comportamentos mais condescendentes (justificados pelo eventual sentimento de culpa em relação ao trabalho e ao fato de não permanecerem em casa), as entrevistadas referiram plena consciência acerca da importância de seu papel e protagonismo na educação dos filhos. Tal percepção é corroborada por outros estudos que apontam que a falta de limites da criança de hoje é resultado das inúmeras atividades que seus pais realizam (dois ou mais vínculos empregatícios, pós-graduação), pois estes sentem remorso por não darem a atenção adequada ou desejável e não conseguem dizer “não”(6).

Há de se observar que fazer todas as vontades da criança e deixá-la satisfeita o tempo todo não é sinônimo de cuidar bem, pois essa atitude pode gerar a ilusão de que o mundo será sempre bom e isso fará com que ela se machuque ao enfrentar suas frustações(14).

Identificaram-se sentimentos conflitantes e de insegurança sobre a escolha da pessoa ou estabelecimento para delegação de cuidado do filho.

A ‘terceirização’ diz respeito à transferência de responsabilidades dos pais para outras pessoas ou instituições(6). Nesse sentido, forma-se uma lacuna no que tange à educação, formação, imposição de limites e atenção com a criança. Esse cenário configura-se, sobretudo, em função do intenso ciclo de atividades dos pais e principalmente da mãe, quando esta assume jornadas múltiplas e acumula os papéis materno, matrimonial e profissional(5,15).

Os dados levantados mostraram que a mulher se vê dividida entre ser mãe integralmente ou não; no entanto, os sentimentos positivos ligados à maternidade se sobrepõem a outros papéis, o que corrobora com outro estudo realizado no Rio Grande do Sul(16). Esse dilema reflete uma conjuntura da atualidade, em que a conquista de um posto de trabalho constitui-se, ao mesmo tempo, em um grande desafio pessoal e em um problema social, pois há mais profissionais formados do que vagas disponíveis no mercado.

A enfermagem vem sendo reconhecida como uma profissão essencial na sociedade, mas a questão financeira ainda deixa a desejar para os profissionais da área. Por esse motivo, a busca por especializações e a aquisição de vários vínculos empregatícios tornam ainda mais atribulada a vida dessa parcela da população, influenciando diretamente em sua disponibilidade de tempo e dedicação ao processo de criação dos filhos.

Com relação às influências da profissão sobre a criação dos filhos, as mães apresentam percepções ambíguas, ora considerando que os conhecimentos advindos da profissão se configuram como facilitadores, ora se frustrando ao perceberem que nem tudo que consideram ideal se torna aplicável à sua realidade.

A pessoalidade do ato de cuidar, oriunda da experiência de ser mãe somada às implicações dessa conjunção de papéis, foi evidenciada pela manifestação dos sentimentos de angústia em ter que delegar a responsabilidade do filho nos momentos de doença para cumprir com os compromissos de atividade profissional, assumindo o zelo pelos pacientes.

Desse modo fica evidenciada a sobrecarga que acomete boa parte das mulheres trabalhadoras na conciliação de seus papéis de mãe, esposa e profissional. Quando a dedicação se traduz em objeto de trabalho e, mais do que isso, em filosofia que norteia este “ser pessoal e profissional” (como é o caso da enfermagem), é natural que o ônus seja cada vez maior.

 

CONCLUSÃO

Evidenciaram-se as dificuldades vivenciadas na junção de suas atribuições sociais, sobretudo no processo de educar os filhos. Não obstante a participação efetiva do casal na criação relatada pelas mães participantes, existe a necessidade de uma maior quantidade de tempo dedicado aos filhos.

Essas mulheres sofrem ainda com pressões internas relacionadas ao fato de serem enfermeiras e de valorizarem o cuidado adequado e qualificado; no entanto, nem sempre é passível de implementação no âmbito pessoal. Assim, preceitos altamente priorizados na prática dessas profissionais, como a orientação do incentivo ao AME, nem sempre são concretizados fora dos hospitais.

Tendo em vista a opção pelo estudo qualitativo, não foi pretensão generalizar as conclusões desta pesquisa para outras realidades; contudo, espera-se que estimule outras investigações voltadas à discussão dos contextos de trabalho do enfermeiro, elucidando os limites e possibilidades de integrar o exercício das diversas funções sociais desempenhadas por esse profissional, sem perder de vista sua qualidade de vida e satisfação pessoal. Tendo em vista a escassez de estudos que enfatizem os aspectos da  vida desse grupo, remete-se à importância de buscar novos espaços para refletir sobre o assunto.

Por fim, esta análise nos induz a uma reflexão sobre a função materna e sua relação com o trabalho e a vida das mulheres enfermeiras, destacando as dificuldades vivenciadas pelas mesmas para a concretização de ser mãe, em contraposição às próprias exigências e ao ideal de cuidar inerente à enfermagem.

 

REFERÊNCIAS

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4. Capelatto I, Martins Filho J. Cuidado, afeto e limites: uma combinação possível. 2ªed. Campinas: Papirus;2010.

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6. Martins Filho J. A criança terceirizada: Os descaminhos das relações familiares no mundo contemporâneo. 4.ed. Campinas: Papirus;2010.

7. Tiba I. Adolescentes: Quem ama, educa! 39 ed. São Paulo: Integrare;2010.

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9 - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (Brasil). Cidades – Sistema de Informações – Maringá – PR. [ internet ] [ cited 2011 Oct 05 ] Available from: http://www.ibge.gov.br 

10. Soares CB, Hoga LAK, Peduzzi M, Sangaleti C, Yonekura T, Silva DRAD. Revisão integrativa: conceitos e métodos utilizados na enfermagem. Rev Esc Enferm USP. 2014; 48(2):335-45.

11. Nappo SA, Sanchez ZVDM, Oliveira LG. Crack, AIDS, and women in São Paulo, Brazil. Subst Use Misuse. 2011; 46(4):476-85.

12. Bardin L. Análise de conteúdo. 1. ed. Lisboa: Edições 70;2011.

13. Oliveira EMF, Brito RS. Ações de cuidado desempenhadas pelo pai no puerpério. Esc Anna Nery Rev Enferm. 2009;13(3):595-601.

14. Capelatto I. Diálogos sobre a afetividade. 4ª ed. Campinas: Papirus, 2009.

15. Kalinowski L, Favero L, Carraro T, Wall M, Lacerda M. Postpartum primipara at home and associated nursing care: Grounded Theory. Online Braz J Nurs [ internet ]. 2012. 11(3):701-19. [ Cited 2013 ago 01 ] Available from: http://www.objnursing.uff.br/index.php/nursing/article/view/3852

16. Soares JSF, Lopes MJM. Biographies of pregnancy and motherhood in adolescence within rural settlements in Rio Grande do Sul. Rev. esc. enferm. USP. 2011;45(4):802-10.

 


Todos os autores participaram das fases dessa publicação em uma ou mais etapas a seguir, de acordo com as recomendações do International Committe of Medical Journal Editors (ICMJE, 2013): (a) participação substancial na concepção ou confecção do manuscrito ou da coleta, análise ou interpretação dos dados; (b) elaboração do trabalho ou realização de revisão crítica do conteúdo intelectual; (c) aprovação da versão submetida. Todos os autores declaram para os devidos fins que são de suas responsabilidades o conteúdo relacionado a todos os aspectos do manuscrito submetido ao OBJN. Garantem que as questões relacionadas com a exatidão ou integridade de qualquer parte do artigo foram devidamente investigadas e resolvidas. Eximindo, portanto o OBJN de qualquer participação solidária em eventuais imbróglios sobre a materia em apreço. Todos os autores declaram que não possuem conflito de interesses, seja de ordem financeira ou de relacionamento, que influencie a redação e/ou interpretação dos achados. Essa declaração foi assinada digitalmente por todos os autores conforme recomendação do ICMJE, cujo modelo está disponível em http://www.objnursing.uff.br/normas/DUDE_final_13-06-2013.pdf

 

 

Recebido: 01/08/2013
Revisado:10/09/2014
Aprovado: 10/09/2014