ARTIGOS ORIGINAIS

 

Corpo e enfermagem: (ainda) uma relação tão delicada!


Maria de Fátima de Araújo Silveira1, Dulce Maria Rosa Gualda 2, Vera R. S. Sobral3

1Universidade do Estado da Paraíba
2Universidade do Estado de São Paulo
3Universidade Salgado de Oliveira

 


RESUMO
O artigo apresenta as concepções sobre corpo que se forjaram no transcurso da história da humanidade, para responder às questões: que corpo a enfermagem moderna encontrou? Que discurso estabeleceu sobre ele e como vem se ocupando dele no cuidado? A construção da profissão ocorre, paralelamente, ao silenciamento sobre os corpos das enfermeiras e dos clientes, como forma de neutralizar o erotismo da relação. O cuidar se constituiu na heteronomia do cuidar, e o corpo a ser cuidado foi, habilmente, enquadrado como um “segundo corpo”. Refletir e analisar a relação estabelecida na enfermagem sobre os corpos cuidados pode beneficiar uma prática criativa e sensível, compartilhada com o sujeito do cuidado e o reencantamento de volta ao “primeiro corpo”.
Descritores: Corpo humano; Cuidados de enfermagem; Enfermeiras.



CORPO: UM LABIRINTO ENCARNADO
Sabe um labirinto? Aquele clássico construído por Dédalo, um edifício composto por inúmeros corredores tortuosos dando um para o outro, como se não tivesse início nem fim? Dentro do labirinto, encontra-se Minotauro, monstro com corpo de homem e cabeça de touro, a devorar, todos os anos, sete jovens e sete donzelas.

Quando o olhamos de cima, é possível perceber que aberturas conduzem aos demais segmentos. Se o iluminamos, observamos um jogo de luz e sombras que se espraia nos espaços, dando-lhes contiguidade. Para que isso não ocorra, é necessário fechar as comunicações. Com isso, perdemos a chance de circulação e de encontrar uma saída, perdemos o encanto do labirinto. Por que não correr o risco, se outros heróis, como informa CAMPBELL (1990), já o enfrentaram? Lá, diz o autor, onde se pensa encontrar um monstro, encontra-se um deus. 

Ao tentar situar o corpo enquanto lugar de saberes, crenças e práticas, deparamo-nos com um labirinto de compreensões e abordagens – uma matriz de significados (VICTORA, 1997), constituída culturalmente e atingida pelas mais variadas esferas de poder, passível de leituras diferenciadas, mas complementares, por diferentes agentes sociais e diversas áreas de conhecimentos, em que entrelaçamentos tecem múltiplas facetas que se matizam em dobras e transitoriedades.

Entretanto, o que se pode perceber, é que a representação sobre corpo vem sofrendo transformações permeadas por mecanismos de abstração, funcionalização e insignificação, conforme VILLAÇA; GÓES (1999), atravessando caminhos que vão da imagem de microcosmos a carne decaída, com perda de simbolismo.

Neste contexto, transitou-se, até a atualidade, da mentalidade arcaica “primitiva”, em que o Universo estava povoado de deuses que o criaram, impregnando-o de sacralidade e transformando-o em Cosmos, no interior do qual o sagrado se manifestou, e em cuja  “lógica”, o corpo era visto como microcosmo, estava em comunicação com os deuses e participava da santidade do mundo. Cosmos e Corpos constituídos da mesma matéria, sagrados, porque atos da Criação Divina. Sagrado aqui entendido na concepção eliadiana, como o que é pleno de significado, foi fundado por um mito exemplar, é união, mundo organizado, em relação ao profano, não em oposição. Profano é aquilo privado, ainda, de significação, porque não tem modelo exemplar – mito fundante; é fragmentação, separação, alienação, mas nada o impede de ser transfigurado em sagrado; é terreno fértil, o único, para a transição até o sagrado (ELIADE, 1998, 1999).

Para COLLIÈRE (1989, p. 47), os cuidados realizados, nesse período, além de representar um conjunto de respostas às necessidades vitais indispensáveis à sobrevivência, exprimiam “uma forma de relação com o mundo”, fundada “na experiência interiorizada e vivida no próprio corpo” – o cuidado como ajuste da vida cotidiana aos ritmos cósmicos.  Cuidava-se de corpos próximos, dos “meus”, de um “primeiro corpo” – o corpo do afeto.

Nesse contexto, ainda para a autora, o cuidar era conciliação com as forças geradoras da vida, dirigindo-se ao corpo global e ligado a todo o Universo. Uma compreensão, portanto, integradora e holística, que pressupunha solidariedade humana e cósmica e que possuía significado simbólico e valor social, em que as crenças e as práticas “visavam à captura de forças vitais, envolvendo tudo pelo sagrado, colocando o Cosmos inteiro no pontual” (RODRIGUES, 1999, p. 46).

As concepções que se forjaram, posteriormente, na esteira das religiões monoteístas históricas – islamismo, judaísmo e cristianismo - reduziram o sagrado a conceitos e práticas relacionados à adoração do Deus único e que se desenvolvem num contexto de sacrifício, abnegação, renúncia ao que é material, físico, prazeroso, em flagrante oposição, em mais um dualismo excludente, ao profano, aquilo que é feio, sujo, pecaminoso, impuro, refere-se ao que é mundano, aos prazeres da carne, às festas, ao trabalho, ao corpo e à sexualidade (SILVEIRA; SOBRAL; JUNQUEIRA, 1999).

 Atualmente, as representações sobre o corpo agrupam-se em duas matizes que se antagonizam e se mesclam, conforme classificação de RODRIGUES (1999): de um lado, um depreciamento do corpo, ainda que sob a capa ilusória de “culto ao corpo”, que tem como cerne o distanciamento do ser humano em relação ao seu corpo - o corpo como objeto exterior que se pode vender ou comprar; no outro extremo, a insistência severa sobre a demarcação dos limites e fronteiras do corpo, impedindo excessos, transbordamentos, ousadias, via limpeza rigorosa, dietas, cirurgias.

Que corpo a Enfermagem profissional encontrou, que discurso estabeleceu sobre ele e como vem se ocupando dele no cuidado? O corpo com o qual a Enfermagem Moderna se deparou foi um labirinto com espaços fechados ou interditados. A demarcação se deu por meio do corte e do rompimento entre os conceitos de sagrado e profano estabelecidos pelo Cristianismo, interditando o acesso a áreas “proibidas” (como os órgãos sexuais, por exemplo), o que só era possível quando da realização de procedimentos técnicos sobre o corpo, utilizando-se instrumentais para isso, como forma de manter a impessoalidade e distância necessárias para a não-contaminação com o corpo profano e pecaminoso.

Se para Eva havia uma interdição clara e coerente – não tocar ou comer do fruto proibido para que pudesse permanecer no paraíso –, para a enfermeira que estava sendo gestada em fins do século XIX, a interdição era ambígua e contraditória – tinha que tocar e cuidar de um corpo profano para ser sagrada. 


ADENTRANDO EM TERRENO PROIBIDO
A Enfermagem Moderna é instruída pelo modelo cartesiano-biomédico e pela herança cristã que lhe outorgaram os dualismos corpo e espírito, sagrado e profano (cristão) e que fixaram a enfermeira entre a cruz do Cristianismo e a espada do poder médico, no (des)encontro com o corpo (SILVEIRA; SOBRAL; JUNQUEIRA, 1999).

A formação da enfermeira, também, não poderia deixar de ser dualista, pois, na fase imediatamente anterior à entrada de Florence Nightingale no cenário da Enfermagem, os cuidados dispensados aos doentes, nos espaços públicos, eram realizados por dois grupos principais de mulheres. Um grupo era constituído por mulheres leigas, bêbadas, analfabetas e prostitutas (profanas/cristãs), cuja prática assistencial dava-se para a obtenção de dinheiro. Profissionais da carne, aliavam à prostituição o cuidado, uma vez que, afinal, ambos envolviam o corpo, e  foram retratadas na figura da personagem Sarey Gamp, no romance de Charles Dickens (MIRANDA ,1996).

Por outro lado, as religiosas e senhoras de caridade se dedicavam a atividades filantrópicas, com a finalidade de barganhar a salvação através das práticas de cuidar. A concepção de corpo que orientava a prática realizada pelas irmãs de caridade situava o corpo como carne desprezível, fonte de corrupção e fornicação e que só não devia ser afastado totalmente porque era suporte para os cuidados espirituais.

Dessa forma, era-se promíscua, mercenária, incompetente, subornável, fácil, ou irmã de caridade, devotada, bondosa, caridosa, assexuada e virgem. Uma divisão, portanto, formatada nos conceitos de sagrado e profano do Cristianismo, determinando uma linha divisória entre as mulheres cuidadoras do período demarcada pela conduta.

A influência eclesiástica e masculina representada pelos Doutores da Igreja, estabeleceram as bases da doutrina cristã que determinaram a obrigação dos votos de castidade para os religiosos e religiosas, alterando todo o simbolismo da relação com o corpo sexuado, transformando, progressivamente, “a concepção do conjunto de práticas de cuidados e o seu significado profundo” (COLLIÈRE, 1989, p.34).

O desinteresse para com o corpo encarnado punha em xeque os cuidados tradicionais que se fundavam na unidade corpo-espírito e em relação com o Universo, instalando a supremacia do espírito pregada pela doutrina agostiniana, para a qual o corpo devia conhecer o sofrimento e a dor para se libertar.

Ao ser encarado assim, o corpo dissociava-se do espírito e os cuidados não se dirigiam ao corpo global e expressão total do sujeito, mas à sua alma, através do discurso e das orações, que não exigiam o contato direto das mãos, cujo instrumento principal não era o toque, mas a palavra. O sofrimento era, então, um mal necessário, a mortificação do corpo adquiria valor positivo para salvar a alma e os cuidados eram a compensação pela infelicidade (COLLIÈRE, 1989).

A absorção do modelo religioso na prática de enfermagem baseava-se em valores religiosos e morais cristãos que, além de definirem o lugar da mulher como submissa em relação a Deus e seus representantes, subvertiam os valores veiculados ao corpo concreto, lugar de prazer e desprazer, satisfação e desconforto, bem-estar e dor. Essa visão influenciou o modelo vocacional impresso por Florence no surgimento da Enfermagem Moderna ou Profissional e no sistema de ensino nightingaliano.

O corpo que estava sendo preparado para os cuidados e sobre o qual Florence centraria a formação das enfermeiras era um corpo que “se tornava alvo de novos mecanismos de poder (...) um corpo que se sujeitasse às regras de conduta rígidas e exigentes, formadoras do espírito de caridade cristã” (PADILHA, 1998a, p.436).

E Florence parece ter aprendido bem a lição!


CONFORMANDO A PROFISSÃO DO SILÊNCIO
O silêncio referente ao corpo constitui uma sub-área no campo dos emudecimentos que se desenvolveram a formação da profissão, representados na figura da enfermeira com um dedo em riste sobre a boca, indicando silêncio, e que se tornou a “marca distintiva da enfermagem no imaginário social” (PADILHA, 1998b, p. 25).

O silêncio se iniciou quando as enfermeiras, mestras da arte da escuta, foram queimadas como bruxas, mágicas, feiticeiras e charlatãs, na Idade Média; e as parteiras, curandeiras, artistas – sábias em tecnologias do cuidado – foram sendo morto-silenciadas e o saber de enfermagem, amortecido-silenciado. Para CECCIM (1998), se Florence retomou a voz da Enfermagem, propondo-a enquanto ciência e arte, as tecnologias de saúde por ela desenvolvidas foram continuamente silenciadas.

O texto clássico que inaugura a Enfermagem Moderna é o livro Notas sobre a Enfermagem, escrito por Florence, em 1859. Na obra, a indecência dos vestuários era apontada pela autora como uma das causas de rejeição da enfermeira por parte do enfermo, principalmente as que utilizavam peças ruidosas, já que roupa e mulher deviam ser silenciosas. Alguns tecidos, então, eram danosos, não apenas pelo barulho que provocavam, mas pela imagem que evocavam: “uma senhora idosa e respeitável vestida com crinolina expõe ao paciente, em seu leito, quase o mesmo espetáculo que uma dançarina de ópera apresenta no palco” (NIGHTINGALE, 1989, p. 56). Daí o uniforme escolhido por Florence para ser usado pelas enfermeiras seculares seguir normas rígidas: “capa cinza de lã grossa, casaco de lã, também escuro, capas, um lenço marrom na cabeça com a legenda em vermelho escrito Scuttari” (MIRANDA, 1996, p.142). Era proibido o uso de adornos, como flores no cabelo e fitas nas capas.

Sobre o corpo, Florence focaliza-o, no livro, como o local no qual Deus situou a mente, destacando que o relacionamento deste com o mundo estava conformado pelas leis divinas, e reconheceu, em outro momento, os efeitos da mente sobre o corpo e vice-versa, e a influência de fatores como ansiedade, preocupações, monotonia, na piora do quadro dos enfermos.

Ao iniciar a profissão e criar em seguida a primeira escola para enfermeiras, Florence teve por objetivo afastar a imagem das enfermeiras leigas, preocupando-se, sobretudo, com a origem sócio-econômica e conduta moral das aspirantes, propondo soluções corretivas para o comportamento moral das alunas, apoiadas em mecanismos de controle. Fazia parte de tal estratégia o silenciar/deserotizar o corpo da enfermeira.

Neste sentido, uma das preocupações iniciais de Florence foi instituir um Boletim Moral, para controlar o comportamento das alunas, estabelecendo a imagem de enfermeira como anjo branco, abnegada, submissa, intocável (as alunas deveriam ser solteiras, sinonímia de virgens, à época), e sagrada-cristã, poderíamos dizer.

Um dos caminhos que a Enfermagem trilhou, apontado por SOBRAL (1994), para alienar os corpos das enfermeiras de seu conteúdo erótico, enquanto ritual de neutralização, foi o ensino e a realização perfeccionista e contínua das técnicas de enfermagem – a catequese da impessoalidade, como coloca a autora.

As técnicas de enfermagem permitiriam, assim, a manipulação asséptica do corpo cuidado (profano), não somente transformando o toque feminino e sensual num detalhe frio e repetitivo da técnica em si, como também transfigurando a emoção perigosa da realidade erótica (extremamente profana), muitas vezes desconhecida, em realidade deserotizada e conhecida e, por isso mesmo, mais fácil de ser controlada e experimentada, afastando da enfermeira a imagem da prostituta.

A impossibilidade dos sentidos era representada pelo “controle emocional” que devia marcar o comportamento da enfermeira em sua prática profissional. Esse processo, que SOBRAL (1994) descreveu como “processo conter”, apresentava um movimento interno, onde havia controle do próprio corpo para um “desligamento” das emoções, e um externo, onde havia um controle da dinâmica dos corpos dos sujeitos no espaço institucional do cuidar. Assim, o cuidar se constituiu na heteronomia da relação com o outro e o corpo a ser cuidado, foi habilmente enquadrado como “um segundo corpo”.

A doutrina religiosa cristã permeou todo o processo educativo e histórico da Enfermagem, demarcando limites (sagrado/profano cristão) no comportamento que não podia ser/acontecer/aparecer. O controle emocional foi o grande aliado da interdição, impedindo a vivência do sentimento, calando o riso da alegria e o soluço do choro, diz SOBRAL (1994, p.47).

MIRANDA (1994) conclui que essa repressão era fruto da interdição absoluta de se adicionar a discussão sobre sexualidade às questões de enfermagem no sistema “nithingaliano”. E, embora seja a profissional com maior autorização social para tocar o corpo do outro, inclusive o corpo nu e no espaço público, como bem definiram SOBRAL et al. (1997), a enfermeira, historicamente, foi desencorajada a abordar a sexualidade dos pacientes, embora tenha, em tempos de AIDS, sido “obrigada” a ouvir e a falar de sexualidade e parceiros sexuais, entre outros. Assim, a autorização social do toque também atuaria como agente formador dualista da enfermeira como irmã de caridade ou prostituta e tudo que essas concepções comportam na nossa cultura.

Dessa forma, o dualismo sagrado e profano tem perpassado a Enfermagem, o que pode ser constatado na afirmação de SOBRAL et al (1997, p.14) de que “as práticas de cuidar do corpo do outro têm criado imaginários simbólicos (sagrados e profanos cristãos) que guardamos, principalmente, quando desenvolvemos rituais sobre o corpo”.

Essa ambivalência tem amarrado e contido a identidade profissional das mulheres enfermeiras, oscilando entre a caricatura do anjo branco -o lado sagrado cristão - e a prostituta - o lado profano (FIGUEIREDO (1998). Ainda assim, a enfermeira permanece com uma imagem moralmente frágil, que tem sido “ameaçada” pelas piadas e fofocas do senso comum ou da publicidade, como o que aconteceu com o comercial da Duloren, cuja repercussão para as enfermeiras foi analisada por SOBRAL et al. (1996), ou pela  edição da revista VIP que trouxe, na capa e no ensaio fotográfico,  a enfermeira do funk.

Em sua tese de doutorado, FIGUEIREDO (1994) relata a dificuldade de as enfermeiras perceberem a importância do seu corpo como instrumento do cuidado de enfermagem, cuja conseqüência é a ausência de consciência corporal nas próprias enfermeiras. Portanto, não é difícil, também, imaginar por que a Enfermagem pouco tem discutido questões como sexualidade, nudez, pudor e corpo do sujeito do cuidado, uma vez que, tendo dificuldade em perceber a si própria, como perceber o outro?

Para FIGUEIREDO et al. (1997), na universidade, durante a formação profissional da enfermeira, não apenas não se fala da própria sexualidade, como também se aprende a cuidar de um corpo doente que não é sensual nem sexual, afirmando-se, sempre, que isso não é necessário para poder cuidar dos outros. É um ensino que desperdiça recursos corporais da aluna, como partes da audição, tato, olfato, gustação, movimentos, como dramatização, música, ritmo, que possam ligar o ensino às formas de ser do corpo (BYINGTON, 1988).

Por outro viés, ao profissionalizar-se pela via do modelo médico, a enfermeira conhece o corpo através da representação anatômica do esqueleto e pela patologia que o acomete. “O corpo sexuado é como que riscado: corpo ‘negado’ de quem é tratado, excepto como corpo sofredor, corpo ‘renegado’ da enfermeira que presta cuidados, excepto como força laboriosa compadecida” (COLLIÈRE, 1989, p.90).

Aliada a isso se encontra a multiplicação de especializações e o uso de tecnologia de ponta, que tem como efeito “fender mais o corpo doente, fragmentar as tarefas, daí as relações humanas cada vez mais impessoais, longínquas, divididas – isto apesar do desejo implícito de tratar, de ter em conta o que é mais importante para o doente” (COLLIÈRE, 1989, p.125).

Trilhando esse percurso, é compreensível a conformação que os cuidados de enfermagem adquiriram, consubstanciados numa prática conduzida por rotinas, esvaziada de conteúdo significante, profana-cristã. Uma forma de trabalhar que, padronizada tanto para quem faz como para quem recebe o cuidado, não comporta criatividade, sensibilidade, individualização. O mesmo se repetindo na realização de pesquisas sobre o cuidar (SOBRAL et al, 2003)

As tarefas parcelizadas e fragmentadas; as técnicas desenvolvidas de forma fria e distante do paciente, em resquícios de rituais que, de tão camuflados, aparentemente são desprovidos de conteúdo humano, sensível, criativo, espiritual, porque não integral; o “chamariz” atrativo das atividades burocráticas, levando para mais longe do perigo profano (cruz) do corpo do paciente e a uma pretensa autonomia diante do trabalho médico (espada), levaram a Enfermagem a afastar-se tanto de seu objeto de trabalho que hoje se trava uma “guerra santa” para a retomada do cuidado como a essência da prática profissional (SILVEIRA; SOBRAL; JUNQUEIRA, 2000a, 2000b).


 TERRA FÉRTIL À VISTA: O CORPO
O cuidado que atualmente se discute no âmbito da Enfermagem é aquele que visa ao paciente na sua integralidade – o cuidado individualizado. Uma pergunta a essa altura talvez seja oportuna, embora não seja esse o espaço-momento a responder-lhe: como trabalhar o cuidado integral utilizando, ainda, como balizador, a cisão entre corpo e espírito, que dá lastro à fragmentação epistemológica sob a qual se erigiu o conhecimento biomédico? Como romper o modelo vocacional instruído pela divisão sagrado e profano cristã, para quem o corpo é perigo iminente (a nova árvore do conhecimento do bem e do mal? Uma reedição da maçã?), lugar ambíguo de cuidar e de interdição - um “segundo corpo”.

Embora lidando com impasses, o cuidado se realiza no corpo e, se se quer eleger o cuidado como a essência da Enfermagem e fazer dessa escolha uma prática individualizada, integradora, holística, significante, e acrescentamos Sagrada (na acepção eliadiana), para quem cuida e para quem é cuidado, há de se perguntar, ainda, até se obterem respostas, o que é o corpo, pois sabemos que, embora emudecido, “em cada silêncio do corpo identifica-se a linha do sentido universal que à forma breve e transitiva imprime a solene marca dos deuses e do sonho” (ANDRADE, 1997, p.25).

Partir do corpo, por ser a primeira realidade que somos e conhecemos, configura uma trilha interessante para tornar a vida e a prática profissional das enfermeiras mais enriquecida pelo simbolismo que o corpo comporta, beneficiando uma prática criativa e sensível, compartilhada com o sujeito do cuidado e, quiçá, um reencantamento desse corpo de volta ao “primeiro corpo”.


REFERÊNCIAS

1. ANDRADE, CD de. Corpo. 13. ed. Rio de Janeiro, Record, 1997.

2. BYINGTON, C. Dimensões simbólicas da personalidade. São Paulo, Ática, 1988.

3. CAMPBELL, J. O poder do mito. São Paulo, Palas Athena, 1990.

4. CECCIM, RB. A ciência e arte de um saber-fazer em saúde. In: MEYER, DE; WALDOW, VR; LOPES, MJM (org.) Marcas da diversidade: saberes e fazeres da enfermagem contemporânea. Porto Alegre, Artes Médicas, 1998, p.87-102.

5. COLLIÈRE, MF. Promover a vida: da prática das mulheres de virtude aos cuidados de enfermagem. Lisboa, Sindicato dos Enfermeiros Portugueses, 1989.

6. ELIADE, M. Tratado de história das religiões.  São Paulo, Martins Fontes, 1998.

7. ELIADE, M. O sagrado e o profano. São Paulo, Martins Fontes, 1999.

8. FIGUEIREDO, NMA et al. Os risos do corpo da enfermeira: a sexualidade/ sensualidade por dentro e por fora - reflexões sobre a prática de cuidar/confortar. Cad. Cuidado Fundamental, v.0, n.0, p. 2-18, 1997.

9. FIGUEIREDO, NMA et. al. Cuidar em saúde: lugar da invenção de um novo paradigma científico. Rev. Bras. Enf., v. 51, n. 3, p. 447-56, 1998.

10. FIGUEIREDO, NMA de; CARVALHO, V de. O corpo da enfermeira como instrumento do cuidado. Rio de Janeiro, Revinter, 1999.

11. FUNK you. VIP. Edição 192, ano 20, n. 4, p. 76-85, abr. 2001.

12. MIRANDA, CML. O parentesco imaginário. São Paulo, Cortez, 1994.

13. MIRANDA, CML. O risco e o bordado - um estudo sobre a formação da identidade profissional. Rio de Janeiro, Escola de Enfermagem Anna Nery/UFRJ, 1996.

14. NIGHTINGALE, F. Notas sobre a enfermagem. São Paulo, Cortez, 1989.

15. PADILHA, MICS. Do cuidado da alma ao cuidado do corpo - uma nova compreensão da história da enfermagem. Rev. Bras. Enf., v.51, n.3, p. 431-446, 1998a.

16. PADILHA, MICS. A mística do silêncio - a enfermagem na Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro no século XIX. Pelotas, Ed. Universitária/UFPel, 1998b. 

17. RODRIGUES, JC. O corpo na história. Rio de Janeiro, FIOCRUZ, 1999. 

18. SILVEIRA, MFA; SOBRAL, VRS; JUNQUEIRA, CSA. Entre a cruz e a espada. In: CONGRESSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS EM SAÚDE, 2., São Paulo, 1999. Anais, São Paulo, Abrasco, 1999.

19. SILVEIRA, MFA; SOBRAL, VRS; JUNQUEIRA, CSA. Camuflagem e transparência. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE SAÚDE COLETIVA, 6., Salvador, 2000. Anais [ CD-Rom ], Abrasco, Salvador, 2000.

20. SILVEIRA, MFA; SOBRAL, VRS; JUNQUEIRA, CSA. Camuflagem e transparência. Rev. Bras. Enf, v. 53, n.2, p. 207-212, 2000a.

21. SILVEIRA, MFA; SOBRAL,VRS; JUNQUEIRA, CSA. Para além da cruz e da espada: revelando o poder do simbolismo na enfermagem. Texto Contexto Enf., v. 9, n. 3, p. 74-85, 2000b.

22. SOBRAL, VRS. Construindo uma profissão feminina. Rev. Enf. UERJ, v.2, n.2, p. 242-9, 1994.

23. SOBRAL, VRS et al. A impossibilidade dos sentidos. /Trabalho apresentado no 49. Congresso Brasileiro de Enfermagem, Belo Horizonte, 1997.

24. SOBRAL, VRS et al. The social and poetical care with subjects of research – in the memory remains what it means. Online Brazilian Journal of Nursing (OBJN – ISSN 1676-4285), v.2, n.2, 2003 [ Online ]. Available at:www.uff.br/nepae/objn202sobraletal.htm

25. VICTORA, CG. As imagens do corpo: representações do aparelho reprodutor feminino e reapropriações dos modelos médicos. In:  LEAL, O F (org.). Corpo e significado: ensaios de antropologia social. Porto Alegre, Editora da Universidade/UFRGS, 1995. p. 77-88.

 


Recebido:06/11/2003
Revisado: 07/11/2003
Aprovado: 08/11/2003