ARTIGOS ORIGINAIS

 

Adesão ao tratamento pela equipe de um serviço de saúde mental: estudo exploratório

 

Cilene Despontin Malvezzi1, Helena Cavaleri Gerhardinger2, Luís Felipe Pereira Santos2, Vanessa Pellegrino Toledo2, Ana Paula Rigon Francischetti Garcia2

1Secretaria Municipal de Saúde de Campinas
2Universidade Estadual de Campinas

 


RESUMO
Objetivos: compreender como a equipe multiprofissional concebe a adesão ao tratamento dos usuários inseridos num Caps AD.
Metodologia: pesquisa descritiva-exploratória, com abordagem qualitativa, realizada com os profissionais de um serviço de saúde mental por meio de entrevista semiestruturada e posterior análise temática dos dados.
Resultados: emergiram duas categorias - a concepção de adesão ao tratamento que destacou o vínculo, o reconhecimento da vontade de tratar por parte da pessoa e a compreensão sobre a abstinência; e como a equipe cuida dos usuários e do serviço, que salientou trabalho multidisciplinar, organização do processo de trabalho, flexibilização das agendas, busca ativa dos faltosos, projeto terapêutico individual e a atenção às necessidades assistenciais da pessoa em tratamento.
Conclusão: evidenciou-se a importância da atitude acolhedora para fortalecer o vínculo, permeando a compreensão sobre a adesão e influenciando o processo de trabalho da equipe multiprofissional.
Descritores: Cooperação do Paciente; Transtornos Relacionados ao Uso de Substâncias; Usuários de Drogas; Centros de Tratamento de Abuso de Substâncias.


 

INTRODUÇÃO

O uso de drogas pela humanidade é uma prática milenar e universal que se insere em diferentes culturas, contextos e propósitos. Passou da forma ritualística, consumida em pequenas quantidades, para o abuso e a dependência, caracterizando-se como um grave problema de saúde pública. Classificado como um transtorno mental, pode acarretar a desestruturação da pessoa, de seu bem-estar físico e mental e de sua relação com a família, o trabalho e a comunidade(1,2).

Estima-se que nos EUA cerca de 246 milhões de pessoas (ou uma em cada 20) entre 15 a 64 anos de idade fizeram uso de substâncias ilícitas ao menos uma vez em 2013, o que corresponde até 6,6% da população do mundo nesta faixa etária(3). No Brasil, num estudo que envolveu as 108 maiores cidades do País, 22,8% da população de faixa etária entre 12 e 65 anos já fez uso na vida de qualquer droga psicotrópica (exceto álcool e tabaco), o que correspondeu a quase 12 milhões de pessoas(4). Ainda no cenário brasileiro, o álcool é a substância psicoativa de consumo mais comum durante o curso da vida, seguida pelo tabaco e a canabis(4). A preocupação com os prejuízos para a pessoa e a sociedade levou ao desenvolvimento de políticas públicas que consideram as características socioeconômicas regionais(4,5).

A maior parte dos serviços de tratamento para problemas decorrentes do uso de drogas no Brasil pertence à rede pública de saúde, regida pelos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) e pelo modelo de atenção aos usuários de álcool e outras drogas. Pressupõe acesso universal, assistência integral e equitativa, consolidação de redes de cuidado de forma regionalizada, hierarquizada e integrada. Define ainda que os cuidados em saúde mental devem prever a reabilitação e a reinserção social da pessoa, baseando a oferta de cuidados em dispositivos extra-hospitalares articulados com a rede de saúde(5).

O Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (Caps AD) é o dispositivo que contempla o cuidado a partir dos pressupostos da política de saúde atual e substitui o antigo modelo assistencial hospitalocêntrico. Deve funcionar com projetos terapêuticos singulares e flexíveis, respeitando a política de redução de danos e apoiado por leitos psiquiátricos em hospital geral e estratégias que favorecem a adesão ao tratamento, caracterizado por considerar a perspectiva do paciente como uma pessoa livre para aceitar ou ignorar as recomendações da equipe multiprofissional acerca de seu tratamento(5,6).

Enfatiza-se a necessidade de uma abordagem, por parte dos profissionais, serviços e sociedade, condizente com os desafios que ocorrem na assistência aos usuários de substâncias psicoativas,. Há de se considerar efeitos colaterais que essas substâncias podem produzir, como comportamentos compulsivos, sintomas físicos e psíquicos de abstinência, que podem levar a recaídas frequentes e o seu consumo mantido durante o tratamento. A posição dos profissionais, quando permanece associada à busca de uma “fórmula mágica” para a sobriedade, pode dificultar a adesão ao tratamento(6).

A não adesão às terapias é descrita na literatura como “fenômeno universal independente de classe social, origem étnica, nível de educação ou gravidade da doença”(7).

Entre os dependentes químicos, foram apontadas taxas de até 50% de abandono de tratamento, sugerindo um quadro preocupante e oneroso ao sistema de saúde. Há uma tendência em responsabilizar os dependentes pela não adesão, sem considerar as expectativas, os conhecimentos e as características individuais que poderiam levar a um atendimento mais qualificado por parte da equipe de saúde(8,9).

Sendo assim, este estudo justifica-se ao considerar o preparo da equipe de saúde para lidar com as idiossincrasias concernentes ao tratamento desta população, reconhecendo a falta de adesão como parte do processo terapêutico, ampliando a leitura deste fenômeno para que se possa qualificar a atenção à saúde do dependente químico(8,9). Para tanto, tem-se como objetivo compreender como a equipe multiprofissional concebe a adesão ao tratamento dos usuários inseridos num Caps AD.

 

MÉTODO

Pesquisa descritivo-exploratória, com abordagem qualitativa, que tem a finalidade de revelar o universo dos significados, motivos, crenças e valores dos profissionais entrevistados, relacionados com o conceito de adesão ao tratamento(10).

A coleta de dados foi realizada no Caps AD responsável pela atenção à saúde dos habitantes dos Distritos de Saúde Norte e Leste do município de Campinas, SP.

Como critérios de inclusão, trabalhar no serviço em questão há mais de um ano, ser da equipe multiprofissional e aceitar participar da pesquisa por meio da assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido. Excluíram-se os sujeitos que não atenderam um ou mais critérios de inclusão. Foram considerados sujeitos desta pesquisa oito profissionais da equipe multiprofissional, contemplando as seguintes categorias: psiquiatra, enfermeiro, psicólogo, terapeuta ocupacional, técnico de enfermagem, técnico de farmácia e agentes de redução de danos.

As entrevistas - semiestruturadas, gravadas e transcritas na íntegra - ocorreram em julho de 2013, e tiveram a seguinte questão norteadora: para você, como é a adesão ao tratamento dos usuários neste Caps AD?
Realizou-se análise temática dos dados enfocando as seguintes etapas:

  1. Pré-análise: desenvolve a leitura flutuante das entrevistas, a constituição do corpus e a formulação de hipóteses e objetivos. Nesta etapa determinam-se as unidades de registro, os recortes, a forma de categorização, a codificação e os conceitos teóricos gerais que orientarão a análise;
  2. Exploração do material: transformação dos dados brutos visando alcançar o núcleo de compreensão do texto;

3. Tratamento dos resultados e interpretação: permitiu colocar em relevo as informações obtidas, articulando-as à compreensão teórica, que neste estudo foi desenvolvida a partir de conceitos que fundamentam o referencial teórico de Carl Rogers(10, 11). Sendo assim, a discussão está ancorada no conceito de empatia, que se caracteriza por uma técnica que contribui para o desenvolvimento de um clima incentivador, favorecendo a formação do vínculo, a aceitação incondicional, a autenticidade e a atitude acolhedora, e fundamentando-se na forma como o profissional compreende a realidade do usuário, colocando-se em seu lugar(11).

Foram respeitados os aspectos éticos, de acordo com a Resolução n. 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, sob parecer n. 294.918 de 6 de junho de 2013.

 

RESULTADOS

A compreensão da equipe multiprofissional sobre o conceito de adesão ao tratamento dos usuários do CAPS AD se deu a partir do discurso dos participantes posteriormente divididos em duas categorias: a concepção de adesão ao tratamento e como a equipe cuida dos usuários e do serviço.

A concepção de adesão ao tratamento
O vínculo estabelecido entre o usuário e o profissional foi citado como um importante critério para a boa adesão ao tratamento.
Se você não conseguir formar um vinculo, você também não consegue fazer a adesão do paciente no serviço. (E-6)
Construir um bom vínculo com o profissional favorece a adesão. (E-7)
Ter um vínculo com eles, eu acho que ajuda muito no tratamento. (E-1)
A forma como a equipe recebe o usuário, fala com ele, o acolhe e explica o funcionamento do serviço foi apontada pelos entrevistados como decisiva para a adesão ao tratamento.
Quando o paciente vem pela primeira vez no Caps ou encaminhado ou por demanda espontânea, eu acho que o jeito do atendimento, a maneira como ele é acolhido, [...]  dependendo da maneira como você fala, ou explica o serviço, pode ser positivo ou não para a adesão [...] (E-6)
Pode ser um paciente da rua, um mendigo de rua. Chegou aqui, a gente trata ele bem. Então é decisivo. Essa acolhida que faz a diferença pra eles. (E-4)

A vontade de tratar por parte do usuário e a compreensão de que ele precisa de ajuda estão relacionadas à maior adesão ao tratamento.
Então, aderir... Eu acho que ele tem que ter essa vontade de querer tratar. (E-1)
Quando ele fala "não eu vou" e "eu tomo a decisão, eu preciso de ajuda", acho que já é um grande passo. Eu já considero como adesão. (E-3)

A identificação do aumento da frequência dos usuários no serviço está diretamente relacionada com o aumento dos agravos de saúde, contribuindo para aumentar a adesão.
] ficaram três dias sem se alimentar, usando drogas, com vômitos, diabetes alterado, totalmente debilitados... Então ele foi pro leito, estabilizou... Esse é o paciente aderido. (E-2)
] em adesão, quando já tem comprometimento na saúde, outras comorbidades [...] quando eles estão muito ruins, debilitados, eles acabam frequentando mais os serviços. (E-7)

A equipe tem opiniões divergentes sobre a compreensão da abstinência. Alguns entendem que ela não é o alvo central do tratamento. Aceitam a recaída como uma maneira peculiar dos usuários transitarem pelo serviço, compatível com o fenômeno da drogadição. Chamam isso de adesão flutuante ou instável.
] se o paciente está aqui, ele não precisa estar abstinente, a abstinência não é o alvo central do processo. Pode-se conviver com os momentos de intoxicação, com essas flutuações da sobriedade e isso me parece mais condizente com a realidade clínica. [...] Então, a adesão dele ela é flutuante e instável. (E-5)
Acho que tem uma galerinha que adere muito ao tratamento. Sabe que recaída vai ter mesmo porque é assim que tem que ser. (E-1) Um paciente aderido no Caps é um paciente que frequenta, que faz tratamento, que faz uma terapia [...]que tem suas recaídas, [...] tem teus altos e baixos. (E-2)

Outros profissionais têm um sentimento negativo diante das recaídas, compreendendo que a adesão se dá quando o usuário vem desintoxicado ao serviço, participa dos grupos e cumpre com as regras estabelecidas.
Esse paciente que vem frequentemente desintoxicado, a gente subentende que ele tá aderido ao tratamento. (E-4)
Ele tem uma boa adesão [...] Ele participa dos grupos certinho, procura não vim intoxicado no CAPS, procura chegar nos horários. Quando não, liga pra avisar. (E-3)

Como a equipe cuida dos usuários e do serviço
O grupo valoriza seu caráter multiprofissional e organiza seu processo de trabalho distribuindo a carga horária dos profissionais ao longo da semana, flexibilizando as agendas para os encaixes e fazendo busca ativa dos faltosos.
É muito bacana trabalhar em equipe multidisciplinar, porque a gente vai pensando junto o que a gente vai fazer com os diferentes tipos de adesão. (E-6)
Acho que trabalhador dessa área de AD precisa ter um vínculo de 36h. Não dá pra fazer 20. Não dá pra ser ambulatório. [...] Preciso estar aqui todo dia, de manhã e à tarde. (E-5)
Aqui eu faço busca ativa. [...] Hoje faltaram quatro pacientes. Eles sabem que eu estou aqui [...] Alguns telefonam, a gente reagenda. (E-5)

Enfatizam a importância do projeto terapêutico individual entendendo as diferenças e a singularidade dos usuários, a fim de facilitar a adesão ao tratamento.
Aqui no Caps, a gente trabalha com um projeto terapêutico individual[....] e isso é muito bacana porque cada paciente, eles são diferentes [....]  Não dá pra ser tudo igual![...] E essa flexibilidade no projeto terapêutico é uma coisa que facilita bastante a adesão do paciente. (E-6)
Cada paciente tem um projeto terapêutico individual. Vai depender se ele está trabalhando, se tem disponibilidade de vir todos os dias ou não....Então, de acordo com a necessidade do paciente, a gente faz um projeto terapêutico [...] E isso facilita a adesão. (E-7)

As necessidades trazidas pelos usuários em relação a transporte, moradia, benefícios sociais, alimentação e roupas contam com o cuidado da equipe, que se organiza com recursos próprios ou parcerias para estruturar estas ofertas de cuidado. Os profissionais acreditam que assim facilitam a vinculação ao tratamento.
Eles vêm com uma expectativa dos serviços para resolver aquele problema que ele tem com a casa: “Não tenho casa, não tenho isso, tô com fome”. (E-1)
A gente percebe que muitos pacientes vêm pela alimentação. (E-4)
Eu acho que essa parceria com a Transurc facilita a adesão ao tratamento, porque tendo o passe ele consegue vir fazer o tratamento [...] (E-6)
Ele procura o Caps porque ele sabe que aqui ele tem tratamento, ele sabe que se chegar aqui ele tem medicação, tem roupa, ele tem tudo. [...] Tem o serviço social que ajuda com os documentos. Têm pacientes que conseguiram aposentadoria e que não tinham. (E-2)

 

DISCUSSÃO

A concepção de adesão ao tratamento dos usuários inseridos no CAPS AD, referida pelos sujeitos deste estudo, está diretamente relacionada à capacidade de se construir um bom vínculo entre o usuário e o profissional de saúde. O vínculo é definido como uma relação pessoal estreita e duradoura entre o profissional de saúde e a pessoa em tratamento, permitindo que esta reconheça o serviço como capaz de satisfazer suas necessidades, amparada por profissionais interessados pela vida daquele que demanda o cuidado e não somente em sua patologia(12).

Evidenciou-se que alguns vínculos familiares são rompidos em decorrência das vicissitudes do próprio processo de dependência de substâncias psicoativas. Os indivíduos que ainda mantêm algum vínculo com os familiares vivem relações permeadas por ambiguidade, estresse e desgaste emocional. Na relação com os amigos com quem compartilham o uso de álcool ou drogas, os vínculos não foram considerados significativos, uma vez que remetem à continuidade do uso de substâncias, afastando-os do tratamento(12).

Pode-se considerar que usuários que demandam um tempo mais prolongado de cuidado, como no caso doenças de evolução crônica, exigem uma relação amigável, pautada no respeito, na confiança e sustentada por um diálogo constante durante todo o processo de tratamento(13).

A construção do vínculo inicia-se no momento da chegada do usuário ao serviço, por meio da atitude acolhedora por parte da equipe. O ato de acolher deve ter a intenção de resolver os problemas de saúde das pessoas que procuram o serviço, pautando-se na escuta e na produção de vínculo como ações terapêuticas cujas finalidades são identificar os riscos e a vulnerabilidade, acolher os medos e se responsabilizar por uma resposta à demanda trazida(12,13).

A atitude acolhedora, referida pelos profissionais deste estudo, pode ser uma condição facilitadora do crescimento pessoal, pressupõe a aceitação incondicional do indivíduo a partir da confiança e compreensão de suas experiências, sua personalidade e o que quer que ele seja naquele momento(11).

A motivação do usuário para a busca de ajuda, entendida como um estado de disponibilidade a mudanças que pode oscilar dependendo da situação ou do momento em que a pessoa se encontra, tornou-se um fator relevante no que se refere à compreensão da adesão ao tratamento, de acordo com a fala dos profissionais(14). Ressalta-se que a motivação sofre influência de fatores externos e internos ao indivíduo, tal reconhecimento pode favorecer a ação dos profissionais quando identificam, por meio da atitude acolhedora, os aspectos motivacionais, e os utilizam para organizar a proposta terapêutica, o que pode fortalecer o vínculo e, por consequência, a adesão ao tratamento.

Ainda sobre a motivação, é importante ressaltar que o desenvolvimento de um clima passível de atitudes psicológicas facilitadoras, como a autenticidade, a sinceridade, a aceitação incondicional, o interesse pelo outro e a empatia na relação pessoa-pessoa, favorece a ativação do vínculo, o que possibilita a pessoa utilizar recursos para a autocompreensão e para a modificação de seus conceitos(11). Desta forma, o desenvolvimento da relação terapêutica pode tornar-se uma alternativa tanto de tratamento como de efetivação da adesão e responde a demandas pautadas na concepção da integralidade do cuidado. Sendo assim, é importante que essa resposta seja ofertada por uma equipe multiprofissional, pois essa dimensão favorece o reconhecimento de distintos fatores que podem contribuir para o entendimento do pedido, e diversificar as possibilidades de resposta, o que pode promover a instalação de vínculos singulares e duradouros.

Para favorecer a busca por tratamento, segundo os entrevistados, os usuários precisam reconhecer os prejuízos físicos, emocionais, sociais e profissionais que os acometem ao longo do tempo. Quando se veem debilitados, frágeis e doentes, tendem a aumentar a frequência no serviço e, consequentemente, a adesão ao tratamento.

O desejo de recuperar a família, o medo de perder a esposa, os filhos, a perda de bens materiais e do emprego, o reconhecimento da impotência perante o vício, evidenciada principalmente nos sintomas físicos indesejáveis, são fatores que impulsionam a busca por tratamento(15,16).

No entanto, o autorreconhecimento não acontece de forma isolada, a partir da apresentação das dificuldades. Ele é desenvolvido na medida em que o profissional de saúde tem condições de estabelecer a relação terapêutica, que deve ser conduzida a partir do vínculo e da empatia que sustentam a atitude acolhedora e, ainda, articulando-a à compreensão dos determinantes sociais que levam a pessoa a estabelecer uma relação com as substâncias psicoativas(11).

Dessa forma, para sustentar atitudes que favoreçam a adesão, deve-se reconhecer a importância da existência de políticas de atenção que privilegiem a singularidade dos usuários, uma vez que a relação que cada pessoa estabelece com a substância de uso pode determinar a forma como irá se comportar diante do tratamento(14).

Os achados indicam as divergentes opiniões da equipe no que se refere à abstinência: enquanto alguns acreditam que seja a adesão como a desintoxicação e o cumprimento das regras do serviço, outra parte aceita a recaída como uma maneira peculiar dos usuários lidarem com o tratamento, o que nomeiam de adesão flutuante ou instável, compatível com o modo singular do uso das substâncias psicoativas. As duas posições indicam que a adesão é norteada pela abstinência; mesmo quando os profissionais mencionam um modo flutuante e instável de transito do usuário no serviço, eles são guiados pela expectativa da abstinência. Esta concepção pode indicar uma leitura frágil da compreensão da equipe quanto à adesão, pois é importante reconhecer o movimento que os usuários de substancias psicoativas fazem. Tal movimento é influenciado pelos fatores relacionais que estas pessoas desenvolvem para caminhar na vida e buscar soluções para seus problemas(11,14).

Para deslocar o reconhecimento da adesão como abstinência uma alternativa é o profissional utilizar técnicas relacionais tais como: a autenticidade, o reconhecimento de suas barreiras profissionais e pessoais, a empatia e a congruência que, como já indicado, fundamentam a atitude acolhedora, sendo assim o profissional abre caminho para que o usuário possa mudar e crescer de um modo construtivo, e para tal é necessário acreditar nas potencialidades de cada um, o que é um desafio se considerarmos os estigmas que os usuários de substâncias psicoativas carregam em nossa sociedade(1,2,11).

Para favorecer o deslocamento, no âmbito da gestão, é interessante apoiar o trabalho em um modelo assistencial centrado no usuário, com ações determinadas pelas necessidades que possam produzir um compromisso permanente com a tarefa de acolher, responsabilizar e promover a autonomia dos atores envolvidos, o que caracteriza o trabalho vivo(17). Este trabalho, por ter foco em complexas situações de vulnerabilidades social e individual, torna-se trabalho vivo, na medida em que a troca de saberes ocorre entre usuário e profissional e no contexto do trabalho em equipe, o que pode condicionar o autoconhecimento, fator determinante para a responsabilização dos sujeitos e consequente aumento da adesão ao tratamento.

Desta forma, é importante que a gestão dos serviços, para o tratamento da dependência química, considere a estrutura interna, e seu lugar na rede de atenção local, além de compreender suas possibilidades e limitações, o que auxilia o processo de adequação às necessidades individuais daquele que busca tratamento(18).

Assim, observou-se neste estudo que a distribuição da jornada de trabalho dos profissionais ao longo da semana, a flexibilização das agendas, os encaixes e a busca dos faltosos mostraram a preocupação da equipe em adequar seu processo de trabalho as necessidades individuais dos usuários. A aceitação incondicional e o interesse pela pessoa, aliados ao pressuposto do trabalho vivo, podem remover as barreiras institucionais, as regras, os julgamentos, os enquadramentos exteriores e ajudam a olhar para a experiência global da pessoa(11,17,18). Porém, ao mesmo tempo em que os profissionais estudados reconhecem a necessidade de retirar as barreiras burocráticas da assistência, também concebem a adesão ao tratamento como o cumprimento das regras institucionais já estabelecidas, o que provoca contradição e dificulta a avaliação da adesão.

Outro fator a ser considerado na atenção a estes usuários e, por consequência na adesão ao tratamento, é a importância de construir o projeto terapêutico a partir de ações intersetoriais. No entanto, há que se considerar que o Caps ofereça meios ao próprio usuário para reconstruir, fortalecer suas relações e vínculos sociais.

Nesta perspectiva, um serviço cuja estrutura interna se organiza a partir da construção de projetos terapêuticos individuais, em que a equipe multiprofissional, pode lançar diferentes olhares sobre a saúde deste usuário, tem como efeito a leitura da diversidade de fatores que levam ao uso de álcool e drogas, o que pode inaugurar pactos de cuidado numa dimensão de corresponsabilidade, resultando no estreitamento do vínculo e na confiança estabelecida na relação terapêutica e favorece a adesão ao tratamento.

É importante que a equipe multiprofissional também considere que suas estratégias de cuidado não devem ser exclusivas, pois assim corre-se o risco do usuário tornar-se dependentedeste único tipo de serviço. Assim a constituição do trabalho em equipe pode favorecer a circulação deste usuário, permitindo que a atenção à saúde seja contemplada também pelo acesso os vários espaços da comunidade, o que fortalece o cuidado em rede(19).

É interessante articular a adesão a oferta de tratamento dimensionada a partir da experiência global da pessoa, cuja finalidade é fortalecer sua autonomia. Neste sentido, a relação terapêutica pode favorecer o deslocamento do foco para a identificação das potencialidades e habilidades do usuário, em detrimento de intervenções que reduzem sua vida apenas a dependência química. Para tanto o cuidado integral torna-se uma importante diretriz para organização das ações intersetoriais.

 

CONCLUSÃO

A compreensão da equipe multiprofissional sobre a adesão ao tratamento dos usuários do CAPS ad é desenvolvida a partir da construção do vínculo, que se apoia na forma como o usuário é acolhido no serviço, com destaque a atitude acolhedora. Tal entendimento pode contribuir para a abertura da possibilidade de construir uma proposta de tratamento sustentada pela relação terapêutica, o que facilita o reconhecimento das necessidades individuais por colocar o usuário como foco central das ações.

Articulado a esta questão observou-se a motivação, entendida como vontade de tratar por parte do usuário, cuja contrapartida por parte da equipe caracteriza-se pela empatia, o que favorece o reconhecimento dos problemas de saúde e amplia a compreensão dos determinantes sociais envolvidos na relação da pessoa com o uso da substância psicoativa.

A busca de soluções para os problemas decorrentes do uso de substâncias psicoativas está articulada aos fatores relacionais que os usuários desenvolvem para encaminharem suas vidas, tais fatores podem ser tratados com maior amplitude numa perspectiva multiprofissional, que favorece a diversidade de leituras que traduzem o movimento que marca a forma como esses usuários aderem ao tratamento e assim ampliam a possibilidade de respostas as demandas trazidas por eles. Ainda, no que se refere a equipe, existe a expectativa pela abstinência, o que fragiliza e interfere na avaliação da adesão, ao desconsiderar o movimento que tais usuários fazem ao recorrer a droga.

Neste contexto, este estudo, também, traz sua contribuição ao salientar a importância do reconhecimento da singularidade no tratamento destes usuários, que é considerada no âmbito da consolidação de políticas de saúde ao viabilizar métodos de gestão que privilegiem modelos centrados no usuário, a exemplo da construção da rede de saúde mental que visa o reconhecimento da experiência global da pessoa por meio de um cuidado integral desenvolvido a partir de ações intersetoriais.

 

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Todos os autores participaram das fases dessa publicação em uma ou mais etapas a seguir, de acordo com as recomendações do International Committe of Medical Journal Editors (ICMJE, 2013): (a) participação substancial na concepção ou confecção do manuscrito ou da coleta, análise ou interpretação dos dados; (b) elaboração do trabalho ou realização de revisão crítica do conteúdo intelectual; (c) aprovação da versão submetida. Todos os autores declaram para os devidos fins que são de suas responsabilidades o conteúdo relacionado a todos os aspectos do manuscrito submetido ao OBJN. Garantem que as questões relacionadas com a exatidão ou integridade de qualquer parte do artigo foram devidamente investigadas e resolvidas. Eximindo, portanto o OBJN de qualquer participação solidária em eventuais imbróglios sobre a materia em apreço. Todos os autores declaram que não possuem conflito de interesses, seja de ordem financeira ou de relacionamento, que influencie a redação e/ou interpretação dos achados. Essa declaração foi assinada digitalmente por todos os autores conforme recomendação do ICMJE, cujo modelo está disponível em http://www. objnursing.uff.br/normas/DUDE_final_13-06-2013.pdf

 

 

Recebido: 08/04/2015
Revisado: 28/04/2016
Aprovado: 29/04/2016