ARTIGOS ORIGINAIS

 

Percepção das enfermeiras obstétricas acerca de sua identidade profissional: um estudo descritivo

 

Marina Caldas Nicácio1, Andressa Lohan dos Santos Heringer1, Mariana Santana Schroeter1, Adriana Lenho de Figueiredo Pereira1

1Universidade do Estado do Rio de Janeiro

 


RESUMO
Objetivos: descrever as similaridades e as diferenças da prática profissional da enfermeira obstétrica na casa de parto e no hospital e identificar se as especificidades desta prática influenciam na percepção de sua identidade profissional.
Método: pesquisa descritiva e qualitativa, realizada em uma casa de parto e uma maternidade do município do Rio de Janeiro e com enfermeiras obstétricas. As entrevistas foram analisadas pela técnica da análise de conteúdo temática.
Resultados: foram estabelecidas duas categorias: Similaridades e diferenças da prática profissional e Percepções da identidade profissional: atos de pertencimento e atos de atribuição.
Discussão: a socialização profissional foi determinada pelas vivências no âmbito circunscrito da Enfermagem. As percepções da identidade profissional não se modificam em virtude do local de atuação ser o hospital ou a casa de parto.
Conclusão: as características diferenciadas entre estas intuições não influenciam na percepção da identidade profissional das enfermeiras obstétricas.
Descritores: Enfermagem Obstétrica; Prática Profissional; Cuidados de Enfermagem; Enfermagem.


 

INTRODUÇÃO

O hospital é o cenário predominante da prática profissional da enfermeira obstétrica na assistência ao parto normal no Brasil. A casa de parto é uma instituição pública de saúde que se encontra distanciada fisicamente do hospital. Os cuidados de responsabilidade técnica são da enfermeira e não existem médicos na equipe de profissionais. Nas situações de risco materno, fetal ou neonatal, há remoção para a maternidade de referência.

As características institucionais da casa de parto são facilitadoras para o desenvolvimento da autonomia profissional e das potencialidades da prática do cuidado das enfermeiras(1). Nos hospitais, as enfermeiras vivenciam conflitos profissionais e obstáculos para prestar o cuidado humanizado, em virtude do predomínio do modelo biomédico nas rotinas assistenciais e nas ações centradas no médico.

Apesar das iniciativas governamentais para ampliar a atuação destas profissionais no país, a qualificação para o exercício da especialidade ainda requer melhorias para superar as influências deste modelo e atuar ativamente na transformação do modelo obstétrico dominante(2).

Além dessas fragilidades, há o “acúmulo” ou o “desvio de função” durante o exercício profissional das enfermeiras obstétricas, como o deslocamento para outras funções da Enfermagem na instituição, que causa sobrecarga de trabalho, frustração, desmotivação, conformismo e submissão. Esse conjunto de fatores foi relacionado como uma das possíveis causas para a conformação de uma identidade profissional híbrida, uma mescla entre o “ser enfermeira” e o “ser parteira”, o que seria um dos motivos pelo quais vivenciam obstáculos para desempenhar suas funções específicas nos hospitais(3)

O sociólogo Claude Dubar(4) esclarece que a construção das identidades profissionais é inseparável da existência dos planos de formação-emprego e dos tipos de relação profissional. Não se trata apenas de identidades no trabalho, mas de formas de identidades no seio das quais a formação é tão importante quanto o trabalho, os saberes incorporados tão estruturantes como as posições do ator. As formas identitárias são depreendidas do modo como os trabalhadores expressam essa interação.

A identidade e a diferença são estritamente dependentes da representação, uma forma de atribuição de sentido e um processo de construção de significado. Este processo é influenciado pela história e cultura; normas, tradições e regras das instituições; discurso ou diálogo com os outros atores do campo profissional e experiências desenvolvidas em grupos de afiliação. Portanto, esta construção identitária é formada e reformulada no âmbito da interação social em um contexto profissional particular(5).

A identidade é configurada na percepção de si mesmo (identidade real) e do que é atribuído ou proposto pelos outros (identidade virtual), ou seja, como os atos de pertencimento e atos de atribuição são resultantes do movimento contínuo e permanente no âmbito do processo de socialização, tanto aquele que decorre da trajetória pessoal (biográfico) quanto das interações sociais durante a formação e o trabalho (relacional). Assim, apesar do senso de individualidade, a identidade é correlativa ao contexto de atuação, às experiências cotidianas, à interação e ao reconhecimento dos demais atores sociais(4).

Para identificar a si próprio, o indivíduo utiliza os atos de pertença, ou seja, categorias de significado que exprimem “que tipo de homem ou de mulher você quer ser”. A identidade virtual é definida a partir de um processo relacional e das categorias que definem que tipo de homem ou mulher você é, ou seja, os atos de atribuição(4).  

Nessa perspectiva, as vivências da prática profissional das enfermeiras obstétricas podem ser diferenciadas quando exercem sua atividade laboral em cenários com características singulares e distintas, como a casa de parto e o hospital. Em consequência disto, os sentidos e significados sobre sua identidade profissional também podem ser diferenciados. Considerando esta pressuposição e os conceitos teóricos acima descritos, estabeleceu-se o seguinte questionamento: as especificidades da prática profissional da enfermeira obstétrica na casa de parto e no hospital influenciam na percepção da identidade profissional? Para responder esta questão, foi elaborada a presente pesquisa que objetivou descrever as similaridades e as diferenças da prática profissional da enfermeira obstétrica na casa de parto e no hospital e identificar se as especificidades desta prática influenciam na percepção de sua identidade profissional.   

 

MÉTODO

Trata-se de pesquisa descritiva e de abordagem qualitativa, conduzida em uma casa de parto e um hospital. Ambas as instituições são pertencentes à rede pública de saúde e cenários do ensino em serviço de residentes de Enfermagem obstétrica.

O hospital foi representado por uma maternidade municipal, que atende prioritariamente mulheres cujo perfil obstétrico foi classificado como de risco habitual. No ano de 2011, as enfermeiras assistiram 1.384 nascidos vivos (NV) por parto normal, correspondentes a 47,1% dos 2.937 nascimentos por via vaginal. A instituição dispunha de 11 enfermeiras obstétricas no período em que a pesquisa foi desenvolvida, sendo uma diarista e 10 plantonistas distribuídas no turno diurno e noturno. 

Na casa de parto atuam dezoito enfermeiras obstétricas, sendo duas diaristas que exercem os cargos de direção e vice-direção da instituição. As demais enfermeiras são escaladas em regime de plantão nos turnos diurnos e noturnos e realizam cuidados à mulher e à família no pré-natal, parto normal, pós-parto e aos recém-nascidos, cuja evolução cursa dentro dos parâmetros fisiológicos. Em 2011, foi assistido um total de 215 NV.  

As enfermeiras obstétricas participantes do estudo foram selecionadas aleatoriamente, sendo entrevistada uma enfermeira atuante em cada turno diurno de trabalho considerando os turnos de segunda a sexta-feira em ambas as instituições. No hospital, foram entrevistadas todas as cinco enfermeiras plantonistas. Uma equipe de Enfermagem do plantão diurno estava desfalcada de pessoal, dispondo apenas de uma profissional. O mesmo quantitativo de entrevistas foi realizada na casa de parto.

Como critérios de inclusão, ser enfermeira obstétrica e atuar na assistência direta ao parto normal, independentemente do vínculo empregatício. Foram excluídas da pesquisa as enfermeiras obstétricas que atuavam nesta assistência, mas exerciam também o cargo de chefia do centro obstétrico ou de direção da instituição.  

As entrevistas foram realizadas em profundidade, no período de julho a agosto de 2012. Utilizou-se roteiro de entrevista composto de 30 perguntas abertas. A primeira parte deste instrumento foi constituída por questões relativas à formação e à trajetória profissional; já na segunda, as questões foram atinentes à prática profissional em Enfermagem obstétrica nas instituições investigadas.

Os depoimentos foram analisados por meio da análise de conteúdo temática, que estabelece as seguintes fases: 1) pré-análise; 2) exploração do material e tratamento dos resultados e 3) a inferência e a interpretação. Para preservar o anonimato das enfermeiras participantes, adotou-se a codificação pelo local onde a enfermeira obstétrica exerce sua atividade profissional e a ordem de concessão das entrevistas: Casa de Parto E1, Hospital E2, assim por diante.

A pesquisa obteve aprovação pelo CEP da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro (SMS-RJ), parecer nº316A/2011.

Destaca-se que o estudo apresenta limites em relação ao alcance de seus resultados, que são atinentes às percepções do grupo investigado e, portanto, as especificidades distintivas da prática das enfermeiras obstétricas que exercem a profissão em contextos particulares e circunscritos. 


RESULTADOS

A idade média das 10 enfermeiras entrevistadas foi de 42,5 anos, com variação de 28 a 51. Em relação ao tempo de graduação na Enfermagem, duas enfermeiras foram graduadas há menos de 10 anos, três enfermeiras há 17 anos e cinco tinham de 20 a 30 anos de formação. O tempo médio de atuação na Enfermagem Obstétrica foi de 15 anos, com variação de 4 a 27 anos. Seis enfermeiras obtiveram sua titulação por meio da habilitação em Enfermagem Obstétrica, e as demais por meio da pós-graduação lato sensu.  

O percurso analítico gerou duas categorias temáticas, sendo a primeira categoria Similaridades e diferenças da prática profissional e a segunda Percepções da identidade profissional: Atos de pertencimento e atos de atribuição.  

Similaridades e diferenças da prática profissional
A característica comum da prática profissional é a realização de cuidados, tipificados como cuidados técnicos, as técnicas e os procedimentos de Enfermagem Obstétrica, e cuidados relacionais como atitudes de acolher, ouvir, conversar, apoiar, estimular a participação do acompanhante e o vínculo entre a mãe e o bebê. Apenas na casa de parto houve unidades de registros referentes às atividades educativas, realizadas nos atendimentos individuais e nos grupos de gestantes.

As enfermeiras mencionaram fatores intervenientes na prática profissional, como a sobrecarga de trabalho, grande demanda de cuidados frente ao quantitativo limitado de profissionais e ao acúmulo de funções em ambas as instituições, como expressam as seguintes falas:

No plantão surgiram três atividades para fazer, um trabalho de parto, uma consulta pré-natal e uma transferência para o hospital. Eu disse que eu iria fazer a transferência e os outros colegas queriam que eu fizesse outras tarefas. (Casa de Parto. E4).
] Às vezes a suíte [de parto] é usada como consultório. Quando temos mulheres internadas em trabalho de parto e puérperas, as consultas de pré-natal atrasam. (Casa de Parto. E3)
] A gente tem que se dividir e ficar com a parte também que cabe a Enfermagem no centro obstétrico. (Hospital. E6)
] Com o pré-parto cheio, você não pode dar uma atenção individualizada. Você tem que atender essa [parturiente] primeiro e aquela outra depois. Às vezes você tem que dar atenção a todas ao mesmo tempo. (Hospital. E8)
O trabalho no hospital foi caracterizado pela discordância acerca da condução da assistência obstétrica e limitações na autonomia profissional, como pode ser observado nos seguintes depoimentos:
A gente aprende uma coisa na teoria [humanização da assistência], que é possível de ser aplicada. Mas é muito complicado de ser utilizada, é uma luta constante. (Hospital. E9)
] Se há necessidade de colocar ocitocina porque o trabalho de parto está arrastado, não está evoluindo, você coloca e pede para médico prescrever. [...] Ao mesmo tempo, quando [a gestante] chega da admissão e já vem com a ocitocina prescrita, você não pode tirar. Então, essa falta de autonomia é o que mais me incomoda. (Hospital. E7)
] Quando nós [enfermeiras] viemos para a sala de parto, éramos as "pajés". (Hospital. E9)

Apesar desse ambiente conflituoso, há percepção de reconhecimento da atuação profissional:
Eles [médicos] reconhecem meu trabalho como válido e seguro. (Hospital. E8)
A casa de parto se diferenciou do hospital. As condutas assistenciais são estabelecidas de modo consensual e há liberdade de atuação, como mencionam as seguintes falas:
Todos seguem o mesmo protocolo [assistencial]. Se for mudar alguma coisa, a gente discute, discute até achar o que é melhor. (Casa de Parto. E1)
] Existe uma liberdade de atuação, de poder aplicar, criar, experimentar, encorajar o parto ativo. (Casa de Parto. E4)
] Aqui a gente tem uma autonomia que eu acho que ninguém tem. (Casa de Parto. E5)

Percepções da identidade profissional: Atos de pertencimento e atos de atribuição
Os atos de pertencimento são referentes às percepções sobre si, a identidade para si. Em ambas as instituições, as entrevistadas afirmaram que são mulheres, enfermeiras e que realizam cuidados. Tais percepções podem ser observadas nas seguintes falas:

Eu sou filha, mãe, esposa e enfermeira. (Casa de Parto. E4)
Uma enfermeira, mulher e mãe de dois filhos. (Hospital. E8)
Eu sou a mesma enfermeira que eu sempre fui. Para mim, o cuidar é o mais importante. Então, eu sou uma cuidadora. (Hospital. E7)

Os atos de atribuição são elaborados a partir da relação social com os outros sujeitos. Na casa de parto, as enfermeiras obstétricas se percebem como profissionais que compartilham da mesma visão acerca do modelo de cuidado e que lutam para superar as adversidades da profissão:

Parecemos uma grande família. Isso facilita tudo, ter uma mesma linguagem. O propósito e o fim são os mesmos. (Casa de Parto. E4)
] Estar aqui significa romper várias barreiras e enfrentar várias situações. (Casa de Parto. E3) 
] Você tem que provar a todo tempo que sabe, mostrar que sabe o que está fazendo (Casa de Parto. E1).
] Temos dificuldade até com a nossa classe [de Enfermagem]. Muitos não aceitam nossa forma de atuar [na casa de parto]. A gente não tem dificuldade de lidar só com o médico. [...] Hoje já conseguimos vencer grandes batalhas e costumamos dizer que "matamos um leão por dia". (Casa de Parto. E5)

No hospital, as enfermeiras obstétricas se consideram como um grupo diferenciado pela tendência paradigmática da formação que tiveram na especialidade e que também enfrenta desconfianças acerca de sua competência profissional:

Nós temos vários tipos de enfermeiras obstétricas aqui. Um grupo que começou na visão biomédica e que de repente foi colocado no mundo [do parto] fisiológico. E tem aquele grupo que já aprendeu nesse modelo mais humanizado, mais fisiológico. (Hospital. E7)
 [...] Alguns profissionais [médicos e de Enfermagem] não acreditam no trabalho da Enfermagem obstétrica. A partir do momento que a gente faz o nosso trabalho, eles veem que dá certo, que é possível, aí fica um pouco mais fácil da gente lidar. [...] Se você não acreditar, você desiste. Então, não é uma profissão fácil. (Hospital. E6)
Porque, assim, dos quarenta e tantos médicos que tem aqui, você tira dez, um quarto, que te respeita como profissional. Então, é uma equipe muito difícil de trabalhar porque a competição é muito grande, a competição pelo poder, de quem manda mais. Então, é difícil. (Hospital. E8)

Apesar dessas dificuldades vivenciadas, todas as enfermeiras obstétricas entrevistadas manifestaram o desejo de permanecer na profissão e na especialidade.  
Esse conjunto de resultados foi sintetizado no esquema categorial temático da pesquisa apresentado na figura 1.

 

Figura 1. Esquema categorial temático da pesquisa elaborado pelos autores. Rio de Janeiro, 2014.

 

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DISCUSSÃO

As experiências vivenciadas pelo sujeito ao longo de sua vida envolvem um processo dinâmico, individual e coletivo, subjetivo e objetivo, biográfico e estrutural decorrente do processo de socialização, que expressa a cultura, os papéis, os valores e demais significados que vão determinar sua identidade(4).

O cuidado é um fenômeno existencial, relacional e contextual, que envolve atitude ética e valores humanísticos. No campo específico da Enfermagem, o cuidado é considerado como a essência da profissão(6), bem como o centro epistêmico na teoria e na prática da área(7). As enfermeiras obstétricas expressam significados sobre si, um modo distintivo de ser, saber e agir no âmbito das profissões da saúde.

Um estudo sobre a prática de Enfermagem no centro obstétrico identificou que há sobrecarga de trabalho decorrente da demanda aumentada de atendimentos e a falta de profissionais, que causam esgotamento físico, sofrimento psíquico e insatisfação profissional(8). Estas características laborais são observadas em todas as áreas de atuação do pessoal de Enfermagem, sendo relacionadas à influência da política contenção de custos e limitação dos recursos públicos para a saúde(9).  

Além disso, há desigualdades de gênero nas relações cotidianas do trabalho de Enfermagem que estão subjacentes nos conflitos profissionais e disputas de poder no hospital.  Um estudo identificou que as enfermeiras têm maior carga de trabalho em comparação com o tempo de trabalho dos enfermeiros. Estas profissionais apresentam maiores níveis de desgaste, cansaço e sobrecarga laboral que os seus colegas do sexo masculino(10).

Destaca-se que as enfermeiras da casa de parto também expressaram sobrecarga de trabalho frete à demanda assistencial, revelando que apresentam características comuns ao trabalho na área hospitalar. Contudo, o fato desta instituição ser um ambiente feminino, onde os cuidados são geridos e conduzidos por enfermeiras, pode suscitar relações de trabalho mais simétricas visto que não há a mesma divisão sexual do trabalho observada nos hospital. As singularidades do trabalho da Enfermagem na casa de parto devem ser investigadas.  

Como mulheres-enfermeiras no campo da obstetrícia, a socialização profissional foi influenciada pelo processo histórico deste campo em particular. Desde o início da civilização, os cuidados cotidianos foram conferidos às mulheres. A participação feminina também foi determinante na história dos cuidados aos doentes e da Enfermagem, bem como na obstetrícia, que foi notadamente marcada pelo cuidado feminino e domiciliar.

Ao longo do século XX, a obstetrícia brasileira sofreu progressivo processo de institucionalização. O hospital passou a prevalecer como ambiente do parto e nascimento no país a partir dos anos de 1940, representado como um símbolo de modernidade, civilidade e de ascensão social nesta época. Tal processo foi consequente à regulação do Estado sobre a saúde materno-infantil, que impulsionou a oferta de serviços médicos públicos e conveniados para assistência pré-natal e ao parto no país(11).

A profissionalização das enfermeiras entrevistadas ocorreu exclusivamente no campo da Enfermagem e sua inserção na área obstétrica foi no contexto da assistência hospitalar dos anos de 1990, que já estava sob a influência do movimento social de Humanização do Parto e Nascimento. Considerando que a formação de obstetrizes foi interrompida nas últimas décadas do século XX e retomada somente a partir de 2005(3), presume-se que as enfermeiras não tiveram interação com essas profissionais nos locais de trabalho. Portanto, a socialização profissional das entrevistadas foi claramente demarcada pelo campo laboral da Enfermagem.

Cabe esclarecer que não se deve confundir a socialização com a escolarização. Esta confusão não ajuda a compreender os mecanismos de construção de si pela atividade de trabalho. O trabalho pode ser formador, fonte de experiências, de novas competências e de aprendizagens para o futuro, mas também está sob influência das vicissitudes do sistema econômico, das tradições culturais e das políticas sociais de cada país(4).

Nesse sentido, as experiências laborais das enfermeiras participantes do estudo foram circunscritas nas instituições públicas de assistência obstétrica, cujo ordenamento político, jurídico e organizacional está sob a égide das políticas de saúde do Estado brasileiro.

Os resultados sugerem que o hospital é o cenário mais difícil para o exercício profissional da Enfermagem obstétrica, onde os procedimentos de intervenção e as tecnologias biomédicas são mais valorizados e os médicos são os profissionais mais influentes na condução da assistência prestada. Este cenário influencia desfavoravelmente a atuação das obstetrizes e de enfermeiras obstétricas em comparação com o espaço domiciliar e dos centros de parto normal(12).

No hospital há a tendência de adoção de condutas mais intervencionistas e restrições na tomada de decisão destas profissionais, o que tem causado críticas dos movimentos sociais de mulheres na atualidade e a busca por outros ambientes para o nascimento de seus filhos (13-14).

A casa de parto foi mais favorável para as enfermeiras exercerem a autonomia na condução dos cuidados obstétricos. Esta capacidade de utilização dos seus conhecimentos e habilidades para avaliar e atender as necessidades da clientela determina a perceção da autonomia(15). Entretanto, elas vivenciam desafios profissionais semelhantes aos relatados pelas enfermeiras do hospital, tais como os conflitos entre o modelo de cuidado que buscam adotar e o modelo obstétrico hegemônico no sistema de saúde, bem como a percepção de desconfiança dos profissionais de saúde sobre sua competência profissional.

Tais problemas não diferem daqueles vivenciados pelos demais profissionais da Enfermagem em geral, que consideram ter pouca visibilidade social, limitações na autonomia profissional e baixo reconhecimento da cientificidade da profissão(16). Apesar desta problemática, as enfermeiras entrevistadas manifestam atitudes de enfrentamento e de luta para superação destes desafios.

Cabe destacar que algumas enfermeiras obstétricas consideram que sua competência técnica é reconhecida pela equipe médica no hospital. Tal fato pode denotar que o campo obstétrico passa por transição paradigmática no âmbito do conhecimento e práticas assistenciais adotadas, no qual avança em direção aos princípios da humanização e “desmedicalização” da assistência ao parto normal. Com este avanço, potencializa-se a modificação das relações sociais por meio de relações mais simétricas entre os profissionais e as mulheres, bem como entre os médicos e as enfermeiras(17).   

A luta dessas enfermeiras obstétricas para garantir seu exercício profissional na obstetrícia e a implementação dos cuidados humanizados tem sido investigada na literatura científica nacional e internacional(18-19-20). Esta literatura trata das transformações das políticas públicas na área obstétrica e suas repercussões sobre a inserção destas profissionais no cenário do parto e nascimento, bem como as estratégias adotadas para a superação dos desafios e restrições enfrentadas nos serviços obstétricos do país.

As participantes do estudo se identificam como enfermeiras e tiveram experiências vivenciadas no âmbito da Enfermagem e do sistema de saúde brasileiro. Independentemente de ocorrer no hospital ou na casa de parto, o cenário da prática laboral é o sistema público de saúde, que representa o locus da construção das subjetividades pessoais e coletivas no processo de profissionalização da Enfermagem obstétrica brasileira.


CONCLUSÃO

As enfermeiras obstétricas têm a vivência profissional demarcada pela socialização no âmbito circunscrito da Enfermagem e as percepções de sua identidade profissional não apresentam diferenciação em virtude do local de atuação ser o hospital ou a casa de parto.

O hospital permanece como a instituição organizada sob a lógica racional que determina a permanência de poderosas estruturas simbólicas do modelo obstétrico hegemônico, o que dificulta o processo de mudança das condutas assistenciais e limitam a autonomia da enfermeira obstétrica para exercer a singularidade do seu cuidado.

A casa de parto não se configurou como um ambiente idílico da prática profissional. Apesar das enfermeiras perceberem autonomia na condução dos cuidados, há desafios e limites profissionais consequentes a estas estruturas simbólicas e o senso comum vigente de que este espaço assistencial é inseguro para a saúde das mães e de seus bebês.

As enfermeiras obstétricas se percebem como enfermeiras, independente do local onde exercem a profissão e de sua especialidade, o que denota que sua identidade profissional foi construída ao longo de sua formação e determinada pela sua trajetória no exercício da Enfermagem.

Cabe destacar que os resultados do estudo não são generalizáveis e revelam significados construídos por um grupo que está em contexto assistencial particular. No entanto, contribuem para revelar um conjunto de sentidos e valores resultantes das relações socioprofissionais e podem trazer subsídios para futuras investigações sobre a prática profissional em Enfermagem obstétrica, sobretudo em espaços diferenciados do hospital.


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Todos os autores participaram das fases dessa publicação em uma ou mais etapas a seguir, de acordo com as recomendações do International Committe of Medical Journal Editors (ICMJE, 2013): (a) participação substancial na concepção ou confecção do manuscrito ou da coleta, análise ou interpretação dos dados; (b) elaboração do trabalho ou realização de revisão crítica do conteúdo intelectual; (c) aprovação da versão submetida. Todos os autores declaram para os devidos fins que são de suas responsabilidades o conteúdo relacionado a todos os aspectos do manuscrito submetido ao OBJN. Garantem que as questões relacionadas com a exatidão ou integridade de qualquer parte do artigo foram devidamente investigadas e resolvidas. Eximindo, portanto o OBJN de qualquer participação solidária em eventuais imbróglios sobre a matéria em apreço. Todos os autores declaram que não possuem conflito de interesses, seja de ordem financeira ou de relacionamento, que influencie a redação e/ou interpretação dos achados. Essa declaração foi assinada digitalmente por todos os autores conforme recomendação do ICMJE, cujo modelo está disponível em http://www.objnursing.uff.br/normas/DUDE_final_13-06-2013.pdf

 

 

Recebido: 04/10/2015
Revisado: 20/05/2016
Aprovado: 22/05/2016