COMUNICAÇÕES BREVES

Intersubjetividade no cuidado com a criança hospitalizada pelo discente de enfermagem: método fenomenológico


Sueli Maria Refrande1, Rose Mary Costa Rosa Andrade Silva1, Eliane Ramos Pereira1, Marcos Andrade Silva1, Enéas Rangel Teixeira1, Patrícia da Silva Trasmontano1
1Universidade Federal Fluminense

RESUMO

Objetivo: compreender as experiências do discente de Enfermagem vivenciadas no ensino teórico-prático em saúde da criança. Método: estudo fenomenológico, fundamentado em Merleau-Ponty, com abordagem qualitativa. Participaram 30 discentes do oitavo período do curso de enfermagem de uma instituição de ensino superior. Resultado: é no cotidiano, com os familiares, e em vários ambientes, que se encontram e, uma vez capturados pelas crianças, passam a estar sob o olhar delas e da família, emergindo, assim, a essência do fenômeno, o que aponta para as seguintes categorias: intersubjetividade como envolvimento entre o discente e a criança e intersubjetividade e empatia no cuidado com a criança. Implicações práticas: a aplicação dos conhecimentos teóricos implicará o fortalecimento de estratégias como a empatia e o envolvimento intersubjetivo no cuidado com a criança. Conclusão: a relação de intersubjetividade se estabelece por meio de um envolvimento entre o discente e a criança, numa imbricação com o mundo da criança.

Descritores: Cuidado da Criança; Estudantes de Enfermagem; Hospitalização.


DIFERENCIAL DA PESQUISA

tabela 1

OBJETIVO

O estudo objetivou compreender as experiências do discente de enfermagem vivenciadas no ensino teórico-prático em saúde da criança a partir de uma abordagem qualitativa, fundamentada no referencial de Maurice Merleau-Ponty, que busca a compreensão da experiência do homem envolvido no seu mundo vivido, em sua totalidade.

MÉTODO

Na fenomenologia merleaupontiana, as pessoas percebem o mundo de maneiras diferentes, e a percepção é conceituada da seguinte forma: ela “não é uma ciência do mundo, não é nem mesmo um ato, uma tomada de posição deliberada; ela é o fundo sobre o qual todos os atos se destacam e ela é pressuposta por eles” (1:6). Assim, a percepção é, antes de tudo, uma tomada de posição diante do mundo, um modo de ver a partir daquilo que sou e vivencio.

O estudo foi realizado com 30 discentes do curso de graduação de Enfermagem de uma instituição de ensino superior privada no município de Niterói, no estado do Rio de Janeiro. Atendendo aos critérios de inclusão, participaram os discentes do oitavo período que fizeram estágio supervisionado em um hospital municipal como parte da disciplina de Pediatria e Neonatologia. Como critérios de exclusão, foram desconsiderados os discentes que não atuavam diretamente no cuidado com a criança. Para a coleta de dados, utilizou-se a técnica de entrevista fenomenológica, a qual oferece flexibilidade na coleta de informações sobre o participante da pesquisa (2). A coleta de dados ocorreu nos meses de fevereiro e março de 2013 e foi realizada no âmbito do campus universitário em um encontro previamente agendado com cada participante. As entrevistas seguiram um roteiro de perguntas livres, norteado pela questão: quais as suas experiências vivenciadas no ensino teórico-prático em saúde da criança?

As entrevistas foram gravadas (com permissão dos participantes) e transcritas na íntegra. Os dados foram analisados conforme a trajetória fenomenológica de Giorgi(3) cujo método é um dos mais conhecidos e utilizados no campo da Psicologia Fenomenológica. O objetivo é a obtenção de “unidades de significado” (temas ou essências) contidas nas descrições e reveladoras da estrutura do fenômeno. Essa obtenção envolve quatro passos: leitura geral (sentir-se à vontade com o texto e ler quantas vezes julgar necessário); discriminação das unidades de significado (como não se pode analisar um texto de uma só vez, ele é divido em partes); uma vez delineadas as unidades de sentido, o pesquisador expressa o que elas contêm de uma forma mais direta e transforma a linguagem cotidiana do sujeito em uma linguagem apropriada; por fim, o pesquisador sintetiza todas as unidades de sentido com relação à experiência do sujeito. Giorgi(3) relembra que, dificilmente, conduziremos uma pesquisa com apenas um sujeito. Quanto mais sujeitos, mais variações e maior a habilidade de ver o essencial. Assim, as unidades de significado que tiveram sentido foram identificadas, e estabeleceu-se a compreensão da experiência perceptiva dos discentes no ensino teórico-prático em saúde da criança. Essas unidades foram examinadas à luz do referencial teórico merleaupontiano. A investigação seguiu os preceitos éticos da Resolução 466/12, aprovada mediante o Parecer número 162.518, em 04/12/2012, pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal Fluminense.

RESULTADOS

Com relação à caracterização dos participantes, foi possível estabelecer os seguintes percentuais: 87% dos entrevistados foram do sexo feminino, e 13%, do sexo masculino; 57% têm filhos, e 13% não. A faixa etária que prevaleceu foi de 20 a 29 anos, com 53%. Quanto ao estado civil, 43% solteiros, 40% casados e outros, como divorciados e viúvos, totalizando 17%.

Na imbricação de intersubjetividades entre o discente e a criança, estabelecida corporalmente no cuidado, a atenção torna-se importante por constituir movimentos que nascem em nosso corpo como reflexos esboçados ou realizados e, sendo processos objetivos, a consciência vai constatar o desdobramento e os resultados.

A verdadeira reflexão reporta a mim mesmo não como subjetividade ociosa e inacessível, mas como idêntica à minha presença ao mundo e a outrem, tal como eu a realizo agora: “sou tudo aquilo que vejo, sou um campo intersubjetivo, não a despeito de meu corpo e de minha situação histórica, mas ao contrário, sendo esse corpo e essa situação e através deles todo o resto” (4:606).

O encontro do discente com a criança é regido pela afetação de ambos no espaço do cuidado, no espaço do hospital, e isso coloca também em questão a condição ética do fazer do estudante de Enfermagem, do ensino e do ensinar.

Com efeito, então, é importante destacar a inseparabilidade entre a subjetividade e a intersubjetividade. Por exemplo, a experiência do passado que foi colocada no presente, do aprendizado da teoria à aplicação na prática.

Lembrando os princípios que regem o Sistema Único de Saúde, não basta acolher a todos para que o tratamento seja bem-sucedido, há que se sobrelevar as especificidades de cada usuário no desenvolvimento da assistência à saúde. Este é um grande desafio do Ministério da Saúde ao longo dos anos(5). Corroborando com estudos em desenvolvimento ideal e bem-estar de recém-nascidos, de crianças e de adolescentes, destaca-se a importância de promover habilidades de enfrentamento e de minimizar os efeitos adversos da hospitalização e outras experiências potencialmente estressantes(6). Considerou-se que a intersubjetividade preponderante no envolvimento entre o discente e a criança e a empatia no cuidado com a criança constituem uma relação de construção.

Portanto, a partir da análise dos dados, vislumbramos a essência do fenômeno em questão, que envolve os discentes de Enfermagem diante do cuidar da criança hospitalizada: eles apresentaram afinidade no cuidar das crianças hospitalizadas e a falta de necessidade de estar com elas dentro de um hospital para saber lidar com elas. Assim, é no cotidiano, com seus familiares, e em vários ambientes, que se encontram e, uma vez capturados pelas crianças, passam a estar sob o olhar delas e da família, emergindo, assim, a essência do fenômeno, o que aponta para as seguintes categorias: intersubjetividade como envolvimento entre o discente e a criança e intersubjetividade e empatia no cuidado com a criança.

DISCUSSÃO

INTERSUBJETIVIDADE COMO ENVOLVIMENTO ENTRE O DISCENTE E A CRIANÇA

As falas dos discentes de Enfermagem mostram que o intersubjetivo se faz presente na relação estabelecida no cuidado com a criança, efetuando a mediação do “para si” e do “para outrem”, da individualidade e da generalidade, na qual o acadêmico se abre à possibilidade de imbricação com o mundo da criança.

Eu já tive uma breve experiência e foi muito agradável porque a criança no começo já tinha certa insegurança mais eu consegui contornar isso, consegui de uma maneira trazendo ela, conquistando a confiança dela aí a partir deste momento com a confiança dela eu pude tá fazendo o que eu tinha já pré-determinado tá fazendo e foi muito agradável me sentir muito útil (E25).

Ainda que consideremos fundamental, num processo de globalização de enfermagem, uma padronização no campo de uma harmonização de padrões de organização do ensino clínico, bem como as estratégias de avaliação dos alunos durante esta formação, como demonstra um estudo europeu(7), a intersubjetividade, o envolvimento e a empatia como dimensões singulares são preponderantes na construção da relação discente-criança-hospitalizada.

INTERSUBJETIVIDADE E EMPATIA NO CUIDADO COM A CRIANÇA

O estudo aponta para a dimensão da empatia atrelada ao modo de o discente cuidar da criança, possibilitando a conquista de sua confiança numa relação de abertura para a intersubjetividade. Crê-se poder dizer que, de alguma maneira, a intersubjetividade e a empatia no cuidado da criança constituem uma relação de construção e uma aposta na vida, na existência, na imbricação com o existir.

Ainda mais quem tem filho assim como eu, penso no meu filho, que ele poderia estar naquela situação. É como você deveria agir, tratar com carinho, com cuidado, amor, tanto adulto como criança. Acho que toca bem mais a gente do que um adulto (E22).

Ter o contato com a criança é diferente; ver como eu espero vivenciar diante daquilo e ver como a gente vai colocar em prática o que a gente aprendeu (E18).

Nesse sentido, o passado funde-se na intersubjetividade, ou seja, numa retomada de minhas experiências com as do outro num campo de práxis. Além disso, dar o feedback acerca de como o discente está se saindo em sua prática é muito importante e, além disso, já é praticado em países como a Grã-Bretanha(8), trazendo, inclusive, mudanças para o próprio currículo de Enfermagem.

Portanto, o desenvolvimento do raciocínio clínico e das habilidades técnicas constitui-se um desafio(9) para os discentes de Enfermagem, que devem estar preparados para lidar com o desconhecido e com os momentos desafiadores do cuidado com a criança. Assim, enfatiza-se a importância de discussões capazes de ampliar o pensamento tanto do docente quanto do discente de Enfermagem(10). O estudo traz como limitação o fato de ter levado em consideração apenas uma instituição privada. Por isso, percebe-se a necessidade de ampliar a pesquisa a outras instituições, inclusive públicas, com vista a cotejos de futuros estudos fenomenológicos e de possíveis compreensões que forneçam subsídios para o aprimoramento do ensino em enfermagem.

CONCLUSÃO

O estudo traz a compreensão acerca das percepções dos discentes no cuidado à criança. Trata-se de importante relação de intersubjetividade, numa imbricação com o mundo da criança, na escuta, nas atitudes em meio ao cuidado, estabelecendo uma relação de empatia com a criança, o que pode ser desenvolvido no ensino.

IMPLICAÇÕES PRÁTICAS

No cuidado à criança hospitalizada, é necessário valorizar, desde a formação acadêmica, as relações de intersubjetividade que envolvem o cuidado, contribuindo, assim, para boas práticas junto a essa clientela. Enfim, a aplicação dos conhecimentos teóricos implicará o aprimoramento de estratégias como empatia e envolvimento intersubjetivo no cuidado com a criança.


REFERÊNCIAS

  1. Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. Tradução Carlos Alberto Ribeiro de Moura. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes; 2015.
  2. Minayo MCS. Ciência, técnica e arte: o desafio da pesquisa social. In: Minayo MCS. Pesquisa social, teoria, método e criatividade. 30. ed. Petrópolis: Vozes; 2011.
  3. Giorgi ASD. Método Fenomenológico de Investigação em Psicologia. Lisboa: Fim de Século; 2010.
  4. Merleau-Ponty M. Le visible et l'invisible: Notes de cours (1959-1961). Paris: Gallimard; 1996.
  5. Ministério da Saúde (Brasil), Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Agenda de Compromissos para a Saúde Integral da Criança e Redução da Mortalidade Infantil. Brasília, DF: MS; 2005. [acesso em 2016 Ago 18]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/agenda_compro_crianca.pdf
  6. Brown Chris, Chitkara MB. POLICY STATEMENT: Child Life Services. Pediatrics [internet]. 2014 may [Cited 2015 sep 13]; 133(5):1471-8. Available from: http://pediatrics.aappublications. org/content/133/5/e1471.full.pdf+html
  7. Dobrowolska B, McGonagle I, Jackson C, Kane R, Cabrera E, Cooney-Miner D, et al. Clinical practice models in nursing education: implication for students' mobility. Int Nurs Rev [internet]. 2015 jan [Cited 2016 aug 19]; 62(1):36-46. Available from: http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/inr.12162/full.
    doi: http://dx.doi.org/10.1111/inr.12162.
  8. McMahon-Parkes K, Chapman L, James J. The views of patients, mentors and adult field nursing students on patients' participation in student nurse assessment in practice. Nurse educ pract [internet]. 2016 jan [Cited 2016 aug 19]; 16(1):202-208. Available from: http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1471595315001353.doi: http://dx.doi.org/10.1016/j.nepr.2015.08.007
  9. Refrande SM, Silva RMCRA, Pereira ER. Descriptive study of hospitalized child care: a merleau-ponty phenomenological approach. Online braz j nurs [Internet]. 2012 oct [Cited 2015 sep 13]; 11(2):524-7. Available from: http://www.objnursing.uff.br/ index.php/nursing/article/view/3972.
  10. Teixeira CRS, Pereira MCA, Kusumota L, Gaioso VP, Mello CL, Carvalho EC. Evaluation of nursing students about learning with clinical simulation. Rev. bras. enferm. [Internet]. 2015 apr [cited 2015 sep 13] ; 68(2):311-319. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-71672015000200311&ln g=en.http://dx.doi.org/10.1590/0034-7167.2015680218i.

Todos os autores participaram das fases dessa publicação em uma ou mais etapas a seguir, de acordo com as recomendações do International Committe of Medical Journal Editors (ICMJE, 2013): (a) participação substancial na concepção ou confecção do manuscrito ou da coleta, análise ou interpretação dos dados; (b) elaboração do trabalho ou realização de revisão crítica do conteúdo intelectual; (c) aprovação da versão submetida. Todos os autores declaram para os devidos fins que são de suas responsabilidades o conteúdo relacionado a todos os aspectos do manuscrito submetido ao OBJN. Garantem que as questões relacionadas com a exatidão ou integridade de qualquer parte do artigo foram devidamente investigadas e resolvidas. Eximindo, portanto o OBJN de qualquer participação solidária em eventuais imbróglios sobre a materia em apreço. Todos os autores declaram que não possuem conflito de interesses, seja de ordem financeira ou de relacionamento, que influencie a redação e/ou interpretação dos achados. Essa declaração foi assinada digitalmente por todos os autores conforme recomendação do ICMJE, cujo modelo está disponível em http://www.objnursing.uff.br/normas/DUDE_final_13-06-2013.pdf

Apoio Financeiro: Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – FAPERJ

Recebido: 17/09/2015 Revisado: 29/08/2016 Aprovado: 30/08/2016