ARTIGOS ORIGINAIS

Perspectivas para os cuidados paliativos na atenção primária à saúde: estudo descritivo


Cissa Azevedo1, Camila Maria Pereira Rates1, Juliana Dias Reis Pessalacia2, Luciana Regina Ferreira da Mata1
1Universidade Federal de São João Del Rei
2Universidade Federal do Mato Grosso do Sul

RESUMO

Objetivo: identificar pacientes elegíveis para cuidados paliativos e caracterizar os serviços envolvidos na atenção primária à saúde. Método: estudo descritivo, documental, realizado em 19 unidades de saúde de um município do interior de Minas Gerais, Brasil. Aplicou-se a Escala de Performance de Karnofsky nos prontuários dos pacientes do setor sanitário com maior número de elegíveis. Resultados: identificou-se 2715 elegíveis, o que representa 3,59% da população cadastrada e 25,3% dos pacientes no setor sete, que apresentou maior número de elegíveis. A patologia de destaque foi a diabetes, seguida de câncer e de doenças cardiovasculares. Ainda, 17,2% requereram CP precocemente; 9,7%, exclusivos, e os idosos, acima de 60 anos, foram o maior número entre aqueles elegíveis. Discussão: os dados confirmam a necessidade de estruturação da APS para o atendimento precoce em CP, com destaque para a população idosa. Conclusão: faz-se necessária a estruturação de uma rede de atenção integrada e ordenada pela APS e a capacitação profissional.

Descritores: Cuidados Paliativos; Atenção Primária à Saúde; Avaliação de Estado de Karnofsky.


INTRODUÇÃO

O Brasil enfrenta um período de transição demográfica de sua população e, consequentemente, epidemiológica. É clara a inversão da pirâmide etária do país: o número de idosos tem aumentado consideravelmente em relação ao número de crianças, levando ao aumento da prevalência das doenças crônicas não transmissíveis (DCNT)(1) e das discussões em torno da necessidade de os modelos de saúde priorizarem a atenção em cuidados paliativos (CP)(2).

Os CP se referem à assistência prestada por profissionais de saúde e por voluntários a indivíduos com diagnóstico de doença crônica que ameace a vida, a fim de oferecer suporte biopsicossocial e espiritual aos pacientes e a seus familiares(3). O seu objetivo é fornecer cuidados de qualidade e reduzir as internações e os atendimentos desnecessários. Contudo, a concretização desse objetivo exige melhor integração dos serviços de saúde, com uma abordagem centrada na pessoa e descentralizada(2).

Nesse contexto, a atenção primária à saúde (APS) deve ser a porta de entrada e o centro de comunicação com toda a Rede de Atenção à Saúde (RAS), por ser descentralizada e por valorizar a proximidade dos serviços com a população. Os serviços prestados são considerados de elevada complexidade e de baixa densidade tecnológica; e as ações são organizadas por meio da equipe multiprofissional. A APS acontece nas chamadas Unidades de Atenção Primária à Saúde (Uaps), sendo a Estratégia de Saúde da Família (ESF) a forma de atuação utilizada no cenário brasileiro(4).

Sabe-se que muitos pacientes morrem antes de receberem os CP, e, portanto, é importante se pensar que esses cuidados devem estar disponíveis o mais próximo possível do paciente, ou seja, no âmbito da APS. Na Europa, alguns estudos já abordam essa questão e já reconhecem a importância da implementação de políticas nacionais de educação à população e da disponibilização de medicamentos nas Uaps(2-3,5).

Apesar de existirem evidências sobre o impacto positivo dos CP precocemente, essa modalidade de cuidados tem sido fornecida aos pacientes em estágios avançados. No contexto brasileiro, não há informações fidedignas sobre como e quando os pacientes são encaminhados para os CP; no entanto, acredita-se que sejam encaminhados tardiamente(6). O objetivo desta pesquisa foi identificar pacientes elegíveis para CP e caracterizar os serviços envolvidos na APS. Além disso, propôs-se analisar os desafios para a atenção em CP no contexto brasileiro, com enfoque na estruturação da RAS.

MÉTODO

Este trabalho se trata-se de um estudo descritivo, documental. Os estudos descritivos têm por objetivo determinar a distribuição de doenças ou as condições relacionadas à saúde, segundo o tempo, o lugar e/ou as características dos indivíduos(7). Os dados foram coletados no período de dezembro de 2014 a março de 2015. A aplicação do método foi norteada pelas seguintes questões: como se encontra organizada a atenção aos CP na APS do município? Qual é a população que demanda essa modalidade de cuidados? Quais são as características dessa população e dos serviços da APS? Quais são os desafios para a atenção em CP na APS?

Cabe ainda ressaltar que antes de iniciar o estudo foi necessário conhecer a organização da APS no referido município. Assim, por meio de um mapa disponibilizado pela secretaria de saúde, identificou-se que o território municipal divide-se em 12 setores ou regiões sanitárias e que cada setor contém suas respectivas Uaps, sendo que algumas são do modelo ESF; e outras, do modelo Unidades Básicas de Saúde (UBS) tradicionais.

Após essa identificação, optou-se por realizar a pesquisa em apenas sete setores do município, uma vez que são nesses setores que se encontram as Uaps do modelo ESF, as quais permitem um conhecimento mais abrangente da real população atendida.

O estudo foi realizado em duas etapas, sendo que na primeira fez-se um levantamento inicial de pacientes elegíveis para CP nos sete setores sanitários. Assim, foram identificadas nesses sete setores um total de 19 Uaps, contando com 75.524 pessoas cadastradas. Para a realização do levantamento do número de elegíveis para CP, utilizou-se um instrumento elaborado pelos autores e que foi preenchido pelos enfermeiros e pelos agentes comunitários de saúde (ACS) das 19 Uaps.

O instrumento utilizado contemplava um quadro no formato de duas colunas. Na primeira coluna, apresentava-se as seguintes condições/doenças: doença de Alzheimer (DA) e outras demências, câncer, doenças cardiovasculares (exceto nos casos de morte repentina), cirrose hepática, anomalias congênitas, sequelas de meningite, doenças hematológicas e imunológicas, condições neonatais, doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC), diabetes, síndrome da imunodeficiência humana adquirida (Sida) ou vírus da imunodeficiência adquirida (HIV), insuficiência renal crônica (IRC), esclerose múltipla, doença de Parkinson, artrite reumatoide e tuberculose resistente. Tais condições foram elencadas segundo os critérios da Organização Mundial de Saúde (OMS) para a indicação de pacientes elegíveis para CP(3). Já na segunda coluna, apresentava-se um espaço em branco, de forma que os enfermeiros ou os ACS pudessem indicar o número de pacientes de sua Uaps que apresentavam cada condição/doença.

Após a identificação da demanda de pacientes elegíveis (2715; 3,59%) e constatado que, entre os sete setores, o de número sete apresentava o maior número (687; 25,3%), foi aplicada a Escala de Performance de Karnofsky (KPS) junto aos prontuários dos pacientes acompanhados no referido setor com o objetivo de caracterizá-los e classificá-los quanto à necessidade de receber CP precoces e exclusivos. Cabe dizer que as seis Uaps desse setor possuem, juntas, um número estimado de 19.555 pessoas cadastradas.

A KPS é utilizada para mensurar a capacidade funcional de pessoas acometidas por qualquer patologia e pode, também, auxiliar na formulação de prognóstico de pacientes com doença crônica. Seu uso é livre e dispensa pagamentos. Pacientes com valores de desempenho inferiores a 70% têm indicação precoce de assistência em CP; e performance de 50% ou menos indica cuidados exclusivos ou de fim de vida, reafirmando que estes são pacientes elegíveis para CP exclusivos(8). Para a aplicação, foram utilizados os prontuários dos elegíveis, pois são nesses documentos que os profissionais de saúde fazem a evolução clínica, portanto, os registros nos prontuários possibilitam a sua adoção.

O projeto de pesquisa foi submetido, previamente, à avaliação do Comitê de Ética em Pesquisas com Seres Humanos da instituição proponente, recebendo o número de aprovação n.o 742.851.

RESULTADOS

Na primeira etapa da pesquisa, foi possível identificar o número de pacientes elegíveis para CP nos sete setores pesquisados, totalizando 2.715 pacientes. Considerando o universo inicial de 75.524 pessoas, esse número representa 3,59% da população cadastrada. Os dados levantados na etapa inicial do estudo são mostrados na tabela a seguir:

Tabela 1- Número de pacientes elegíveis para cuidados paliativos na Estratégia de Saúde da Família de um município do Estado de Minas Gerais, Brasil, 2015.

Tabela 1

Como pode ser observado na Tabela 1, o setor com o maior número de pacientes elegíveis para CP, segundo os critérios da OMS, foi o setor de número sete, (n=687/25,3%).

Em relação aos resultados da segunda etapa, a Tabela 2 identifica a distribuição do número de pacientes por condições/doenças, segundo a faixa etária.

Tabela 2 - Distribuição dos usuários do setor sete, segundo faixa etária e condições/doenças (n=687), Minas Gerais, Brasil, 2015.

Tabela 2

Nota-se que, isoladamente, a diabetes (n=499/72,6%) é a patologia que mais acomete os pacientes, seguido do câncer (n=30/4,4%). Quanto à associação de dois diagnósticos, a patologia que ocorreu com maior frequência (n=19/33,3%) foi a diabetes com doenças cardiovasculares. Percebe-se ainda um maior número de pacientes na faixa etária de 50 a 59 anos (n=188/27,4%), seguida pela de 60 a 69 anos (n=182/26,5%).

Quanto ao número de pacientes diagnosticados nos grupos de doenças descritos na Tabela 2, houve predomínio de determinadas patologias em cada um desses grupos. No grupo das doenças cardiovasculares, destacam-se as sequelas de acidente vascular encefálico (AVE) (n=23/52,3%) e de insuficiência cardíaca congestiva (ICC) (n=14/31,8%). Entre os casos de neoplasias, houve predomínio do câncer de mama (n=11/31,4%) e do de próstata (n=7/20,0%). Já entre as anomalias congênitas, houve maior número de casos com síndrome de Down (n=5/45,4%). Ainda, quanto aos casos de doenças hematológicas e imunológicas, predominou o lúpus (n=4/44,4%), e, por último, em relação às condições neonatais, a mais presente foi a paralisia cerebral (n=6/54,5%).

Na segunda etapa do estudo, foi aplicada a KPS nos prontuários, a fim de realizar a classificação quanto à necessidade de CP precoces ou exclusivos. A Tabela 3 apresenta a distribuição de pacientes segundo a unidade de saúde e o valor de KPS.

Tabela 3 - Distribuição dos pacientes segundo unidades de saúde do setor sete e valor da KPS*, Minas Gerais, Brasil, 2015.

Tabela 3

Quanto à distribuição dos pacientes por Uaps e por valor de KPS, percebe-se que, em relação ao número de pacientes elegíveis para o CP precoce, a unidade com maior número de pacientes (n=29/24,6%) foi a Uaps 7. Já em relação aos CP exclusivos, a unidade com maior número de pacientes (n=19/28,3%) foi a Uaps 8.

Ainda sobre os resultados da segunda etapa da pesquisa, quanto aos dados referentes ao valor da KPS por faixa etária, percebeu-se que, entre 20 e 59 anos de idade, a maior parte dos pacientes (n=276/86,5%) apresentou KPS acima de 80%, indicando assim completa independência funcional. Por outro lado, a faixa etária que apresentou um maior número de pacientes indicados para CP precoce, ou seja, abaixo de 70%, foi a de 70 anos ou mais (n=55/46,6%), e a faixa etária com maior número de pacientes elegíveis para CP exclusivos também foi a de 70 anos ou mais, com 28 (41,8%) pacientes.

Quanto ao sexo dos pacientes, 416 (60,5%) pertencem ao sexo feminino; e 271 (39,5), ao masculino. Ainda em relação à patologia segundo o sexo dos pacientes, nota-se que grande parte das patologias acometem homens e mulheres de forma bem equiparada. Entretanto, em casos de pacientes diabéticos, percebe-se que uma maior parte pertence ao sexo feminino (n= 300/60,1%).

Quanto à caracterização das Uaps que compõem o setor sete, todas possuem uma equipe de saúde que inclui: enfermeiro, técnico de enfermagem, médico, dentista, técnico em saúde bucal e agentes comunitários de saúde (ACS). Além disso, em duas unidades também faziam parte da equipe um residente em enfermagem e um único profissional de fisioterapia, o qual era responsável pelo atendimento nesse setor. Sendo assim, quanto ao número total de profissionais que atuam nas unidades desse setor, tem-se: oito enfermeiros, seis técnicos de enfermagem, dois residentes de enfermagem, seis dentistas e seis técnicos em saúde bucal, oito médicos (três são do Programa Mais Médicos), um fisioterapeuta e, por último, 20 ACS.

Ainda, sobre a população assistida nesse setor, três Uaps possuem zona rural em sua área de abrangência, as demais atendem apenas as áreas urbanas. Já em relação à estrutura física, todas funcionam em casas adaptadas, que possuem localização de fácil acesso à população, sendo atendidas por transporte coletivo municipal. Sobre o horário de funcionamento, estão abertas das 7 às 17 horas durante os cinco dias úteis da semana. Tal horário pode limitar o acesso dos pacientes aos CP, pois durante os finais de semana e os feriados todas ficam fechadas, portanto, alguns cuidados continuados são interrompidos. Nesse caso, quando os pacientes necessitam de atendimento, devem procurar a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) do município.

Já em relação ao sistema de referência e contrarreferência para o nível secundário, têm-se uma policlínica central que atende especialidades como: cardiologia, ginecologia, endocrinologia, neurologia, cirurgia geral e psiquiatria; além de ações ligadas ao Serviço de Atendimento Especializado (SAE), ao serviço de saúde auditiva e ao de apoio diagnóstico. Todos esses atendimentos são realizados mediante o encaminhamento do médico da Uaps. Em muitos casos, os pacientes relatam um período longo de espera entre o agendamento e a consulta clínica. Especificamente sobre pacientes com diagnóstico de neoplasias, é importante ressaltar que estes são, em grande parte, encaminhados a um hospital de grande porte, referência no tratamento oncológico na Região Centro-Oeste do estado, e que se localiza no município estudado. Sobre a assistência em CP, percebeu-se que os materiais oferecidos aos pacientes se resumem basicamente em gaze, soro e esparadrapo, ou seja, material para realização de curativos. Também não há uma agenda de atendimentos para essa modalidade de cuidados.

Além disso, as Uaps não fazem distribuição de medicamentos para dor à população adscrita, uma vez que estes são distribuídos pelas UBSs e pela farmácia central. Identificou-se também que os enfermeiros que participaram do estudo não possuem formação específica em CP e nunca participaram de capacitação sobre o assunto.

DISCUSSÃO

Os resultados deste estudo demonstram um pequeno percentual (3,59%) de pacientes elegíveis para CP na APS. No entanto, acredita-se que tais índices possam estar relacionados à falta de avaliação e de acompanhamento desse tipo de paciente na APS. Eles também apontam para um problema ainda frequente nos municípios brasileiros: a falta de cobertura da ESF. Neste estudo, constatou-se que apenas sete dos 12 setores sanitários do município são cobertos pela ESF.

Sobre a aplicação da KPS, observou-se que, do total de pacientes elegíveis para CP, apenas 17,2% requerem CP precoce; e 9,8% requerem exclusivos. Pode-se atribuir esse número ao fato de a maioria dos elegíveis para CP apresentarem enquanto diagnóstico principal a diabetes, uma patologia que recebe atenção especial por meio da implementação de políticas que preconizam o aperfeiçoamento de seu diagnóstico e o tratamento no âmbito da APS(9).

É importante ressaltar que não foram encontrados estudos que tenham aplicado KPS em pacientes na APS, entretanto, um estudo cujo objetivo foi avaliar a capacidade funcional, por meio da KPS, em idosos de 70 anos ou mais, submetidos à remoção de tumor cerebral, identificou que de um total de 90 pacientes mais de 70% apresentaram KPS maior que 80%(10). No presente estudo, 50% dos pacientes acima de 70 anos apresentaram valor de KPS maior que 80%.

Ainda sobre a necessidade de CP precoces, sabe-se que os idosos são as pessoas que, com maior frequência, estão sujeitas a receber, sobretudo quando submetidas às terapias longas para doenças crônicas, tais como demência, neoplasia, cardiopatia, pneumopatia e nefropatia(11). Vale lembrar que este estudo apontou que as pessoas na faixa etária acima de 70 anos são, em maior número (83/44,9%), indicadas para receberem CP precoces ou exclusivos, seguidas das pessoas entre 60 e 69 (50/27,0%) anos de idade. Os resultados encontrados na segunda etapa apontam uma média de idade dos pacientes de 58 anos, contudo, foram identificados pacientes com idades entre 1 e 101 anos. Cabe dizer que dados recentes estimam que, anualmente, no mundo, mais de 20 milhões de pessoas requerem CP no fim da vida, sendo 69% dessa população constituída por idosos (60 anos ou mais); 25%, por pessoas de idade entre 15 e 59 anos; e 6%, por crianças(3).

Ou seja, apesar de a maioria dos pacientes em CP serem idosos, percebe-se que esse tipo de cuidado é oferecido a indivíduos de qualquer idade.

Em relação à diabetes, patologia encontrada em maior número nos elegíveis, a prevalência média no mundo está em torno de 10% da população. Já no Brasil considera-se que 12.054.824 é o número estimado de diabéticos(12). Esses fatos revelam a magnitude dessa patologia nos dias atuais e a necessidade de cuidados precoces visando à prevenção de complicações.

Ainda em relação à diabetes, é preciso ressaltar o predomínio do sexo feminino entre os pacientes elegíveis. Embora um outro estudo(13) também tenha encontrado tal resultado, acredita-se que, nesse caso, deve-se levar em consideração o fato de que aproximadamente 60% dos participantes da pesquisa são mulheres. Além disso, é importante ressaltar que os estudos analisados referem-se apenas aos casos de diabetes mellitus, e nesta investigação não foi possível classificar os pacientes quanto ao tipo, uma vez que esse dado nem sempre estava disponível nos prontuários.

Vale chamar a atenção para o fato de que neste estudo, entre os pacientes que possuem mais de um dos diagnósticos preconizados pela OMS como elegíveis para CP(3), houve um destaque da associação entre diabetes e doença cardiovascular, com 19 (33,3%) pacientes. Sabe-se que as doenças cardiovasculares são as principais causas de mortalidade em pessoas com diabetes. Um estudo de coorte realizado com 49.582 pessoas na Finlândia apontou que a hipertensão e a diabetes foram independentemente associadas ao maior risco de incidência e de mortalidade por AVE(14). Portanto, deve-se atentar para essa associação, considerando-se que complicações, tais como o AVE, estão relacionadas à indicação de CP exclusivos.

Após o diagnóstico de diabetes, o câncer foi a segunda patologia que mais acometeu os pacientes. É fato conhecido que, no Brasil, a estimativa para o ano de 2015 aponta para a ocorrência de aproximadamente 576 mil casos novos, reforçando a magnitude do problema do câncer no país(15). Sendo assim, é importante que os CP estejam inseridos como uma medida extremamente necessária, para promover a qualidade de vida e para prevenir e aliviar o sofrimento dos indivíduos e de seus familiares.

Sobre a doença de Alzheimer e de outras demências, apesar de terem sido identificadas em percentuais menores, sabe-se que a primeira é considerada uma das síndromes depressivas e demenciais mais prevalentes na população brasileira com idade igual ou superior a 65 anos(16). Portanto, esses dados não foram ao encontro dos resultados encontrados nesta pesquisa, o que sugere as dificuldades de diagnóstico dessas doenças e a ausência de registros nas Uaps pesquisadas.

Outro achado que merece ser discutido deve-se ao fato de que, dos pacientes elegíveis para CP, apenas dois tinham diagnóstico de HIV. Esse dado é preocupante, pois a grande maioria dos adultos jovens que requerem CP no fim da vida são acometidos por tal patologia(3). Sabe-se que a gestão compartilhada do cuidado do portador do HIV entre a rede primária e a rede secundária é a chave para melhorar a assistência dos soropositivos no Brasil, uma vez que esse fato subsidia o diagnóstico precoce, de forma a garantir o início do tratamento em tempo oportuno(17). A ausência desses diagnósticos nos prontuários pode estar relacionada ao sigilo envolvendo a doença, a qual ainda apresenta-se como estigmatizada no contexto brasileiro. Assim, os resultados deste estudo evidenciam uma demanda considerável de pacientes em CP na APS e, em contrapartida, a falta de organização e de estrutura dos serviços para atender a essa demanda.

Atualmente, vivencia-se nos serviços de saúde uma configuração inadequada dos modelos de atenção, marcada pela incoerência entre a oferta de serviços e a necessidade de saúde da população, ou seja, a organização da assistência não tem acompanhado a tendência de declínio dos problemas agudos e de ascensão das condições crônicas. Para superar tal deficiência, torna-se necessário resgatar as chamadas RAS, cujo objetivo é promover a integração sistêmica, de ações e serviços de saúde com provisão de atenção contínua, integral, de qualidade, responsável e humanizada, bem como incrementar o desempenho do sistema, em termos de acesso, equidade, eficácia clínica e sanitária e eficiência econômica(18).

Tal como relatado pela portaria brasileira n.º 4.279, referente às RAS(18), em se tratando das unidades de saúde do setor estudado, também foi possível perceber que a assistência, em sua maior parte, ainda se baseia no modelo curativista, no qual, muitas vezes, pacientes com indicação para CP não são vistos como uma das prioridades pelas equipes, as quais deveriam realizar em maior número as visitas domiciliares.

Outro fato importante, em relação à organização dos serviços da APS no município, principalmente aos pacientes em CP, trata-se da própria dificuldade de agendamento de atendimentos especializados, isto é, da articulação entre os níveis de assistência à saúde primário e secundário. Ainda, por meio da consulta aos prontuários realizada na segunda etapa, foi possível identificar que houve casos em que pacientes chegavam a esperar mais de um ano para serem atendidos pela especialidade de cardiologia, por exemplo.

Neste contexto, surge a atenção domiciliar (AD), uma nova modalidade de atenção à saúde, cujo objetivo é a reorganização do processo de trabalho das equipes que prestam cuidado domiciliar na APS, em ambulatórios, nos serviços de urgência e de emergência e hospitalar, com vistas, entre outras metas, à redução do período de permanência de usuários internados(19).

A AD foi adotada pelas políticas públicas brasileiras como alternativa à hospitalização. No Sistema Único de Saúde (SUS), esse formato de atenção foi instituído pela Lei n.º 10.424, de 15 de abril de 2002, a qual define essa modalidade de assistência, e pela Portaria n.º 2.529, de 19 de outubro de 2006, que define as formas de atuação, a formação da equipe de cuidados, os recursos financeiros e as condições de credenciamento. Mais recentemente, as formas de AD foram redefinidas pela Portaria n.º 963, de 27 de maio de 2013, que estabelece o Serviço de Atenção Domiciliar (SAD) no SUS, definindo a formação da Equipe Multiprofissional de Atenção Domiciliar (Emad) e incluindo em suas prerrogativas os CP e a assistência ao óbito(20).

A Portaria n.º 963 também ressalta o papel da APS na AD, sendo descrita como Atenção Domiciliar tipo 1 (AD1), com o objetivo de atender à população com problemas de saúde controlados/compensados e com dificuldade ou impossibilidade física de locomoção até a unidade e os que necessitem de cuidados de menor complexidade e de menor frequência(19). Entretanto, considerando-se o panorama brasileiro de escassez de serviços e de equipes especializadas em CP, a APS passa a exercer um importante papel na coordenação dos cuidados.

Contudo, para a implantação do SAD e das Emads no SUS, são exigidos alguns requisitos aos municípios, sendo um deles estar coberto pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu). Sabe-se que, no município estudado, apesar de o número de habitantes atender ao exigido para a implantação de tal modalidade de assistência, esta ainda não compõe a RAS local. Portanto, acredita-se que esse fato, quando se pensa em assistência a pacientes em CP, é algo que merece atenção por parte dos gestores, uma vez que a AD garante a redução da demanda por atendimento hospitalar e, consequentemente, dos gastos públicos, além de ser uma forma de assegurar aos pacientes a autonomia de escolha quanto ao ambiente, no qual querem passar os últimos dias de vida(18).

CONCLUSÃO

Tendo em vista que na APS são estabelecidos fortes vínculos com os pacientes e com seus familiares, torna-se necessário que os profissionais sejam capacitados a oferecer CP às pessoas que necessitarem, pois o profissional desse nível de atenção conhece as necessidades dos pacientes, podendo levar a eles alívio e conforto.

Torna-se necessário que cada unidade conheça qual é a demanda de pacientes que necessitam de tais cuidados, para que possam fazer as intervenções necessárias. O presente estudo ofereceu subsídios para que outros municípios realizem esse levantamento, pois o percurso metodológico adotado mostrou-se eficaz para conhecer tal demanda.

Uma limitação encontrada foi a falta de registros nos prontuários, sendo que, quando isso acontecia, recorria-se aos ACS para melhor descreverem as condições de saúde dos pacientes. Ainda, houve dificuldades dos enfermeiros no levantamento do número de pacientes elegíveis na etapa inicial. Percebe-se, portanto, que nas unidades existem problemas organizacionais e assistenciais, que acarretam a ausência de registros relacionados às características da população assistida.


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Recebido: 17/09/2015 Revisado: 26/09/2016 Aprovado: 26/09/2016