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On the back and reverse of the smoking body: conflict lived

O verso e o reverso do corpo fumante: conflitos vivenciados                          

 

Eduardo Funchal*; Liliana Maria Labronici*; Ymiracy de Souza Nascimento Polak*

*Programa de Pós-Graduação em Enfermagem. Mestrado em Prática Assistencial de Enfermagem. Universidade Federal do Paraná. Curitiba, PR, Brasil

 

ABSTRACT. This is a case study of phenomenological orientation whose objective was to understand the conflict experienced by the smoking body in the face of the desire or the need to discontinue the use of cigarettes and the wish to continue smoking. Seven smoking bodies attending Caixa de Assistência dos Funcionários do Banco do Brasil’s (CASSI’s) “Life without Cigarettes” program in Curitiba were followed. This program was based on three moments of care: the perception, the new knowledge construction and the implementation of the nursing actions, adapted to the Ministry of Health’s assistance model. For the comprehension of the phenomenon, three categories emerged. The passage ritual, affective longing and insecurity and fear of change. The adaptation of the model of assistance proposed by the Ministry of Health to the moments of care reference was found to provide professional growth and enrichment, which in turn, made it possible to help these smoking bodies to experience the conflicting internal moment between the desire to stop and the wish to continue smoking which resulted in a new nursing care practice which combines the incentive for a pro-active change through motivation with the philosophical process of reflexion and  interation.

Descriptors: Smoking; Tobacco use cessation; Nursing Care; Body.

 RESUMO. Trata-se de um estudo de caso de iluminação fenomenológica que teve como objetivo compreender o conflito vivenciado pelo corpo fumante frente ao desejo ou a necessidade da supressão do uso de cigarros e a vontade de permanecer fumando. O estudo foi desenvolvido com sete corpos fumantes inscritos voluntariamente no programa Vida sem Cigarro da Caixa de Assistência dos Funcionários do Banco do Brasil (CASSI) de Curitiba. O estudo foi apoiado no referencial teórico que preconiza três momentos de cuidar, a percepção, a construção do novo conhecimento e a implementação das ações de enfermagem. Foi acrescido aos mesmos, o modelo de atendimento ao tabagista preconizado pelo Ministério da Saúde. Na compreensão do fenômeno, foram desveladas três categorias: o rito de passagem; carência afetiva e insegurança e medo do vir-a-ser. Constatou-se que a adaptação do modelo de atendimento preconizado pelo Ministério da Saúde, na CASSI, aliado ao referencial de cuidado, proporcionou crescimento e enriquecimento profissional, possibilitando ajudar os corpos fumantes a vivenciarem o momento existencial conflitante entre o desejo de parar e a vontade de continuar fumando, resultando em uma nova prática de cuidado que alia incentivo à mudança pró-ativa pela motivação ao processo filosófico de reflexão e interação.

 Descritores: Tabagismo; Abandono do uso do tabaco; Cuidados de Enfermagem; Corpo.

 

1. INTRODUÇÃO 

O tabagismo é um problema de saúde de grande magnitude e prevalência(1). Com distribuição mundial, é considerado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), como o principal fator de risco individual de morbi-mortalidade(2), além do que, muitos consumidores de tabaco, apresentam também co-morbidades(3) ligadas a área da saúde mental.

O hábito de fumar é complexo, causa de dependência, física, comportamental e psicológica(2), que se consolidam e tendem a perpetuar o consumo de cigarros. Segundo a literatura(2,5), 80% dos fumantes desejam abandonar o fumo, porém apenas 3% conseguem espontaneamente(4) portanto, o abandono do cigarro é processo difícil, que requer acompanhamento profissional sistematizado.

O Programa Nacional de Controle do Tabagismo, do Ministério da Saúde brasileiro, coordenado pelo Instituto Nacional do Câncer (INCA) capacita as equipes de saúde para o trabalho de abordagem e desintoxicação da nicotina(2,5) e nestes trabalhos,  verifica-se que a grande maioria dos fumantes se apresenta numa fase com sentimentos ambivalentes, denominada de contemplação(6). Sujeitos permanecem nesta fase até por longos anos, em que o fumante oscila entre o reconhecimento do cigarro enquanto problema e a existência do desejo de parar de fumar em contraposição às dependências estabelecidas pelo cigarro que o impelem a continuar fumando.

O aprofundamento do conhecimento nesta fase do processo motivacional, certamente contribuirá com a melhora da assistência dos sujeitos que buscam ajuda para parar de fumar. Em virtude do exposto, este estudo teve como objetivo: compreender o conflito vivenciado pelo corpo fumante frente ao desejo ou a necessidade de supressão do uso de cigarros e a vontade de permanecer fumando. 

2. DESENHO METODOLÓGICO 

Trata-se de uma pesquisa com abordagem qualitativa do tipo estudo de caso(7) de iluminação fenomenológica. Foi realizada com 7 (sete) corpos fumantes inscritos no programa “vida sem cigarro” da Caixa de Assistência dos Funcionários do Branco do Brasil, no período de setembro a dezembro de 2005.

As entrevistas foram gravadas, e posteriormente, transcritas e os sujeitos identificados por iniciais fictícias, ou seja, criadas para este estudo, são elas: C.P.; A.F.; G.T.; V.F.; S.N.; M.B e J.E. O tempo médio de realização foi de uma hora à uma hora e meia. As perguntas que incitaram os atores para iniciar a entrevista foram: Fale-me como ocorreu sua aproximação com o cigarro; descreva como está sendo sua vida de fumante; fale-me sobre seu desejo de parar de fumar.

Os sujeitos foram acompanhados nos meses de setembro a dezembro por meio de consultas individuais seguindo o modelo do programa de quatro sessões(2,5,9), do Instituto Nacional do Câncer (INCA), adaptados ao referencial de cuidado proposto por Polak(8), que se constitui de três momentos: a percepção, a construção do novo conhecimento e a elaboração e expressão das ações de enfermagem. A análise dos discursos se deu conforme preconizado por Martins(11,12,13,14): descrição, redução e compreensão e possibilitou o desvelar de 3 temas que serão descritos a seguir. No que diz respeito aos aspectos éticos, a pesquisa foi aprovada pela diretoria da empresa e pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Federal do Paraná.  

3. A COMPREENSÃO DO FENÔMENO 

A compreensão do fenômeno neste estudo possibilitou o surgimento de três categorias que foram interpretadas à luz da literatura, da observação e subjetividade do pesquisador. 

3.1 O Rito de passagem 

O homem enquanto ser histórico e cultural, sempre teve a necessidade de criar marcações, isto é, de delimitar fases, seja por meio de atos, palavras, gestuais, roupas e atitudes mentais, para ter a sensação de controle sobre as variáveis que o cercam, sobre o imponderável, dando origem aos rituais(20), que influenciam o comportamento e o padronizam.

Os ritos de passagem são celebrações que marcam mudanças de status de uma pessoa no seio de sua comunidade. Estes ritos podem ter caráter religioso ou não e serem realizados de diversas formas, dependendo da situação celebrada. Neste sentido, é possível observar que os ritos e os rituais são carregados de simbologias e estes têm muitos e profundos significados(19).

Chiara(20) reforça a idéia que a repetição de atos contido no fumar, leva o antropólogo a levantar a hipótese de que se trata de um ritual, [...] “parece que é nas trevas do inconsciente que reside o segredo da paixão pelo ato de fumar. Não se trata aqui do inconsciente apenas do indivíduo, o que seria da alçada da psicologia ou da psicanálise, mas de um inconsciente coletivo” (20:4).

O ato de fumar, enquanto ato simbólico, foi lembrado quase que por todos os entrevistados, que souberam narrar sobre o primeiro cigarro experimentado. Assim como houve este rito de iniciação, há de se fazer uma marcação desta passagem, para um abandono deste hábito.

Aqueles que fazem a mudança existencial de se tornarem não fumantes, são também capazes de lembrar do(s) último(s) cigarro(s). Neste estudo, ficou evidenciado a criação de marco para tornar-se não fumante, como a escolha de uma data, ou a criação de uma série de fatores que possibilitem a determinação deste marco. A determinação de um dia, ou de um marco, auxilia na crença de que a partir daquele momento o indivíduo não fumará mais. Funciona como uma demarcação, um divisor de águas, que facilita a passagem da categoria de fumante para a categoria de não fumante conforme os discursos: 

 

[...] “determinei 21 de setembro e naquele dia eu fumei um cigarro só”. [...]  porque eu achei um bonito dia, sabe? [...] ia ser um dia extremamente tumultuado pra mim. Ia ser um excelente dia. Porque eu tinha que pagar conta. Tinha médico, tinha que fazer a matrícula da minha filha, sabe? Então eu tinha um monte de coisas para fazer, então aquele dia foi maravilhoso pra mim” (G.T.).

 

Foi isto que eu fiz agora para o dia primeiro né? Até minha esposa falou: - puxa Fico muito contente você estar fazendo isso! Agora sim é que eu não posso né? (risos) Que peso! [...] aí eu pensei ... puxa daqui a 10 dias, puxa daqui a 5 dias, puxa amanhã é o aniversário dela, rapaz! (J.E.)

 

Ou seja, para efetuar o rompimento com o cigarro, há a necessidade de um preparo para enfrentar a dor do desligamento, do luto de perder algo significativo. Este rompimento, certamente quando marcado por um ritual de despedida, pode ser potencializado pela força simbólica e ter mais chance de sucesso. Outro fato que podemos identificar nos relatos daqueles que se prepararam para o ritual de parada, é a influência dos filhos na decisão, como expressam as falas:

 

[...] minha menina até as vezes chora. Me abraça assim oh! (faz o gestual do abraço), Pai você tem que parar de fumar. Você tem que parar pai, não vai morrer por causa disso (13anos). Tem dia que tá emotiva e chora..chora..chora.. (V.F.).

 

[...] sabe o que na realidade me fez parar de fumar? É um dia, o cigarro estava em cima do balcão da cozinha a Marianinha (nome fictício para a filha de 2 anos de idade) olhou pra mim e disse: -me dá um pra mim? Não, isso não. Isso não presta. Naquele dia Eduardo, eu disse assim: - eu não quero isto pra ela. Se ela quiser fumar na vida dela, vai ser uma decisão dela, mas não porque eu influenciei ( G.T.).

 

E poxa! Tem os dois meninos aí, para dar exemplo, cara! Bebendo e fumando um monte como você vai cobrar a piazada? (A.F.)

 

Apesar de toda a pressão familiar, social e dos serviços de saúde, muitos corpos fumantes não migram para a realização do seu ritual de passagem, como assinalam os dados de abstenção do tabagismo descritos na literatura (1,3).  

3.2 Carência afetiva e insegurança 

O novo significado social do hábito de fumar com a exclusão da fumaça do cigarro do convívio humano, se por um lado tem alertado sobre os prejuízos causados pelo fumo, por outro, tem criado uma nova categoria de excluídos. Este grupo vem diminuindo com o tempo(1), e os que permanecem, conservam valores de identificação e sentimentos de pertencer. Por vezes, as medidas restritivas, reforçam o sentimento do grupo e mantém as pessoas no hábito de fumar.

A exclusão social reforça sentimentos que afetam uma auto-estima já afetada, que reitera carências e inseguranças. Foi encontrado sentimentos tais como: carências, o não gostar de si, dificuldades de relacionamento, solidão, vazio e desvalorização pessoal que se mostra por meio de imagem corporal prejudicada, acarretando e reforçando a insegurança, conforme a fala de um dos sujeitos:

 

[...] o meu irmão é médico. Trabalha num posto. Já me deu Zyban (medicamento utilizado como auxílio na parada de fumar), já tentou de tudo. Me deu dinheiro, me rejeita. Ele passa em casa, a gente mora no mesmo prédio, cada um no seu apartamento. Ele quando chega em casa e sente o cheiro de cigarro: - eu não posso nem entrar na tua casa porque é fedido. [..] porque eu sou toda uma prisão, meu pai, minha mãe quando vou visitá-los, meu pai chora. Pô filha eu estou com 80 anos já.... é pesado! ( C.P.).

 

A rejeição pode afetar a auto-estima, que representa a maneira como cada indivíduo se relaciona consigo mesmo, com o ambiente em que vive e com as pessoas dos quais descende(21).

Observou-se que a baixa auto-estima e a imagem negativa de si mesmo, levaram o entrevistado “A.F.” a buscar uma compensação deste sentimento, o que pode ser visto em sua fala:

 

[...] eu sempre fui uma pessoa que sempre não gostou muito de mim, sempre esteve buscando mais. Eu precisava sempre estar enfiando coisas em mim que me valorizasse porque eu mesmo não me valorizava (A.F.)

 

Por insegurança e para não comprometer a auto-estima, muitos corpos fumantes, mantém-se nesta condição, impedindo uma tentativa de mudança, como foi observado numa das situações de encontro/interação da entrevistada “C.P.” ao relatar que:

 

Foi difícil. Me propus a diminuir. Passei seis horas sem fumar, fui me enrolando. O problema que eu tenho sentido é assim:... se gerar ansiedade... chega a ser compulsivo e isso me assusta daí... [...] quando vejo eu já perdi o controle. [...] está muito ligado a auto estima. [..] o importante é buscar o equilíbrio, porque eu não tenho este equilíbrio [...] quando eu estou centrada, eu consigo ficar sem fumar, mas vem a ansiedade e eu não raciocino mais, não tem estratégia nenhuma... (C.P.)

 

Encontramos relatos que mostram que a insegurança e a dificuldade de lidar com as pressões do cotidiano reforçam o hábito tabágico e evidenciam uma percepção negativa de si no seu processo de vida o que pode ser verificado nas falas:

 

Você fuma porque fica com medo de você, tá tudo uma porcaria! (C.F.).

 

[...] “a maioria das vezes é emocional, algum problema de dentro de casa, de relacionamento, não com a pessoa que eu tenho um relacionamento, mas com a situação que se criou em volta e isso me atrapalha, isto me deixa muito brava”. [...] quando você está fazendo alguma coisa e o que você quer fazer não dá certo. [...] o que me faz fumar é a ansiedade (G.T.).

 

A carência das relações interpessoais foi identificada na fala de muitos dos entrevistados, sob forma de dificuldades de relação ou comunicação.

 

Eu tinha que ter coragem para romper esta relação, porque ela me gera muito pânico. [...] eu tinha que falar uma coisa para ele hoje de manhã. E daí como é que eu vou falar? Tive que fumar mais para ter coragem (C.P.).

Todos os aspectos que reiteram a insegurança, as carências, o comprometimento da auto-estima e da imagem corporal, sustentam os corpos fumantes nesta condição existencial, limitando-os a buscarem uma condição diferente e realizarem o ritual de despedida do cigarro, o que leva o medo do vir-a-ser. Por insegurança e para não comprometer a auto-estima, muitos corpos fumantes, mantém-se nesta condição, impedindo uma tentativa de mudança.

Maffesoli(22), destaca que criamos diferentes “máscaras” para lidar com a “teatralidade” da vida. Nas trocas entre as máscaras do próprio indivíduo, a comunicação consigo mesmo tem grande influência. As trocas das máscaras entre os demais seres sociais são fundamentalmente influenciadas pela comunicação e pelos diversos rituais contemporâneos, completando sua relação com os outros e com o mundo.  

3.3 - Medo do vir-a-ser 

O processo de mudança de hábito, a dúvida entre permanecer fumando ou não, é muito mais do que um simples ato de não acender mais o cigarro. É na verdade, uma mudança existencial em que a condição de corpo fumante deve transitar para uma condição de corpo não fumante. E este novo modo de ser, vem acompanhado de muito medo por parte dos entrevistados, como podemos observar no seguinte relato:

 

[..] “é complicado, sabe como? Parece que eu não consigo me imaginar sem. Né?” (C.P.)

 

Num dos atendimentos, conforme o apontado no diário de campo, fiz a seguinte pergunta ao entrevistado: -como é o “V.F.” não fumante? Como é ficar sem seu companheiro por longas horas? E prontamente ele respondeu:

 

-Este é o meu medo! Principalmente em relação aos outros, não só a família, no trabalho, ... magoar alguém [...] então deixa eu ficar com meu cigarro (V.F.)

 

Esta fala reforça a categoria descrita anteriormente, quando os sentimentos de desvalia, a insegurança, as dificuldades de comunicação, o medo da rejeição, de não conseguir controlar-se, são muito maiores do que o medo das dores físicas ou demais desconfortos que podem ocorrem durante o período de abstinência.

 

Mas que diacho! O que vou fazer da minha vida, né? O que a minha vida vai virar?” (J.E.)

 

A mudança da categoria de corpo fumante para corpo não fumante implica um novo modo de ser. Para tanto, é necessário um processo de reflexão, como afirma Polak(8), um desconstruir para um novo construir. “O ‘sair de si’ é remédio para o preconceito, o dogmatismo, as convicções inabaláveis e portanto paralisantes. É a condição para que, ao retornar de sua ‘viagem’, o homem se torne melhor”(12:7).

Algumas fases do ciclo vital proporcionam uma boa oportunidade para o vir-a-ser, uma vez que se configuram como momentos de crise. Para “A.F.” a chegada do primeiro filho foi uma dessas ocasiões.

 

A conclusão que eu devia parar de fumar ocorreu quando eu tive meu filho. Então você vê, meu filho está com 12 anos,  faz 12 anos que eu tento parar de fumar (risos) .. de forma intensa. Sempre falei pra minha mulher: - vamos parar de fumar? Ah, vamos mas... (A.F.)

 

Na verdade, a chegada do primeiro filho é uma crise esperada do ciclo de vida a qual todas as famílias atravessam(23). Nesta fase o casal tem de se preparar emocionalmente para permitir mais um membro na relação. Há uma forçosa divisão de papéis, de atenção e reconhecimento. Nos momentos de crises, surge a oportunidade de “rever-se”.

 

[...] eu quando fiz 39 anos, isto também com certeza está muito ligado à partida do meu pai. A idade dos 40 anos sempre teve uma simbologia muito grande pra mim. Porque meu pai parou de fumar, parou de beber e aos 41 anos morreu de câncer. Então pra mim, no dia em que fiz 40 anos, foi o dia mais feliz cara! Porque eu falei pô não vou morrer”(risos) (A.F.).

 

Enquanto que, para “J.E.”, a crise reflexiva está ocorrendo agora, condição que vivencia aos 50 anos

 

Daí com tudo isso que eu passei, problema da bebida que eu tive, esse meu alcoolismo me acompanhando..., a vida inteira no cigarro. Isso tudo, e eu tô ainda inteiro com 50 anos! Eu acho que é a hora sabe? Se eu continuar pode estourar.  - Puxa vida, tanta coisa que aconteceu na vida é...  (de forma pensativa) ... não digo coisas ruins, mas que trouxeram experiências, passagens, sentimentos, a gente conseguiu superar, por que não? Antes que ele me derrube... isto ta me dando vontade assim, né?... Não digo vontade de parar.. não, mas fez com que eu pensasse assim, tava na hora (J.E.).

 

Outro grande ponto de resistência para o vir-a-ser, principalmente entre as mulheres, é o medo de ganhar peso, situação bastante comum quando se para de fumar, tanto por motivos de melhora do metabolismo corporal, quanto por fatores psicológicos e comportamentais(9). Este aspecto tem de ser muito bem discutido e trabalhado, uma vez que, por trás deste “ganho de peso” temos uma outra grande esfera de complexidade. Conforme afirma Polak(15), a cultura dita normas em relação ao corpo, normas que são seguidas às custas de castigo e de recompensas, como se observa no relato abaixo:

 

[...] mas quer me ver mais deprimida é quando eu engordo. Eu me sinto horrivelmente deprimida. Me sinto feia, me sinto horrível, não me cuido mais. [...] Esta aflição de parar de fumar e engordar me preocupa muito. [...] o meu peso que eu gosto é no máximo 52. Eu não gosto abaixo dos 50, porque é magra demais, 53 ainda é aceitável. (S.N.).

 

Este mecanismo é muito comum, e muitas mulheres, seja conscientemente ou não, retornam a fumar como forma de voltar ao peso anterior. A questão que fica no ar é: será que o que realmente está por trás desta situação não é o medo do vir-a-ser? Esta dificuldade de aceitação da nova condição existencial, traduz-se em formas compensatórias de ingestão calórica, promovendo o ganho de peso? Ou será que o ganho de peso não é uma boa estratégia para poder retornar ao status anterior de corpo fumante, um retornar-a-ser “socialmente justificável”, nesta sociedade que valoriza demasiadamente o corpo “belo”(24)

4. SÍNTESE REFLEXIVA DO VIVIDO À LUZ DO REFERENCIAL TEÓRICO 

Na trajetória percorrida junto aos clientes tabagistas, encontrei muitos corpos fumantes em conflito existencial entre o parar ou não de fumar. Na metodologia de trabalho utilizada no cotidiano da minha prática profissional, intuía que este era um fator preponderante no processo de tomada de decisão para parar de fumar. Entretanto, ela não tornava possível captar o outro em sua multidimensionalidade, motivo pelo qual fui buscar um referencial teórico que possibilitasse a compreensão deste vivido por parte dos corpos fumantes. Ao deparar-me com os momentos de cuidado propostos por Polak(8), corroborados por Labronici(10) que se fundamentaram no conceito de corporeidade de Merleau-Ponty(25), vislumbrei a possibilidade de uma nova maneira de ser, no cuidado da população tabagista que atendia.

É interessante enfatizar que, embora sejam referenciais oriundos de visão de mundo antagônicas, podem ser utilizados simultaneamente, uma vez que se complementam. Neste contexto, é imprescindível que a ação seja centrada no tabagista, compreendido como um corpo vivente que possui uma intencionalidade que o leva a buscar ajuda. Para que esta aconteça, fez-se necessário estabelecer uma relação que venha ao encontro do desejo de quem a procura, que desencadeie mediante a percepção, as descobertas, o conhecimento de si e do outro, a construção e/ou reconstrução dos saberes.

Ressalto que os atores da pesquisa, ao se inscreverem no programa “Vida sem, passaram a vivenciar as situações de encontro/interação que se deram em diversos momentos. Primeiramente, com as entrevistas, foi possível aplicar o primeiro momento proposto por PolaK(8) o da percepção. Através dela, pude verdadeiramente entrar em contato com o outro e identificar os ritos de iniciação de fumar de cada participante, sua trajetória de vida enquanto corpo fumante, e as certezas e incertezas deste momento vivido de desejar parar de fumar.

A percepção foi um processo contínuo ao longo de todos os atendimentos, e os elementos proporcionados por ela foram registrados nos prontuários dos clientes e no diário de campo. Isso me possibilitou retomar com os sujeitos algumas questões nas situações de encontro subseqüentes, a fim de contribuir com os corpos fumantes em seus questionamentos.

O segundo momento do processo de cuidado, a construção e reconstrução do conhecimento, deu-se durante as situações de encontro, por meio de discussões sobre: o ritual de fumar de cada sujeito atendido; as motivações  e desejos de abandonar o tabagismo; a realização dos testes de avaliação e reconhecimento dos três tipos de dependência; a provocação para o perceber-se enquanto corpo fumante e procurar identificar o que o faz fumar; qual a sua relação com o cigarro; que tipo de “respiradouro” este representava para cada um.

No terceiro momento proposto por Polak(8), a elaboração e expressão das ações de enfermagem, pude vivenciar esta nova forma de relação de cuidado, visando à intersubjetividade, o que propiciou fornecer dicas e estratégias para o abandono do cigarro de acordo com o modo de ser de cada sujeito, ao invés de um “pacote fechado” de orientações, que, por vezes, em alguns serviços, se transforma em determinações a serem seguidas pelo corpo fumante.

Aprendi nesta trajetória, que o enfermeiro como corporeidade tem de agir conforme as exigências do outro, com as exigências do momento e respeitar seus limites. Nosso papel é promover a discussão e ajudar os corpos fumantes a vivenciarem, da melhor maneira possível, este novo vir-a-ser. Entretanto, fez-se necessário respeitar o preceito ético do direito do corpo fumante em permanecer na condição de tabagista ou perceber quando as exigências do momento indicam que não é a melhor hora para parar de fumar. A decisão sempre é do outro e não do profissional.

Os discursos mostraram que, para o abandono do cigarro, fez-se necessário um rito de desligamento, um ritual de passagem que marcasse a mudança da condição existencial de corpo fumante para corpo não fumante, realizado com o estabelecimento de uma data ou de outra forma, mas que proporcionou um registro interior de transformação, que a partir daquele momento, desencadeou uma mudança de condição, com a formação de uma nova imagem corporal: a de corpo não fumante.

No que diz respeito ao vir-a-ser, a criação de novas relações, novas identificações e novos papéis, além dos ganhos como a melhora física com o parar de fumar que reflete na qualidade de vida, trazem benefícios imediatos. A conquista desta nova condição de corpo não fumante, este simbolismo de vitória sobre a dependência, influencia e assegura melhora da auto-estima do corpo fumante em fase de supressão do fumo.

Observamos durante o estudo que muitos não conseguem avançar até a tentativa de estabelecer o rito de passagem por inúmeros motivos, motivações, situações e frustrações. Encontrei relatos de baixa auto-estima, insegurança, medo e dificuldades nas relações interpessoais, que sustentavam a relação do corpo fumante com o cigarro. Este medo do vir-a-ser ficou evidenciado na dificuldade em assumir uma nova condição existencial, o medo da mudança, reforçado pela insegurança de não conseguir se reconhecer como corpo não fumante.

Os entrevistados passaram a maior parte de suas vidas se relacionando com o cigarro, ou seja, nunca foram adultos não fumantes. O rompimento desta relação foi motivo de ansiedade e medo pelas dificuldades de lidar com o luto e perdas, da criação de uma nova imagem corporal e o medo de estabelecer o novo ritual de pertença.

O cigarro funciona como verdadeiro respiradouro para os corpos fumantes, como uma forma de amenizar ou descomprimir as pressões externas, mas principalmente as internas, fruto das dificuldades de relação e da falta da assertividade na comunicação. Este respiradouro também funcionou como um fortalecedor para as inseguranças e dificuldades de auto-estima, como um encorajador para certos enfrentamentos por parte do corpo fumante.

Deparamos com depoimentos de desaceleração, relaxamento, sensação de paz e alívio; estes, embora efêmeros, devem ser considerados. A discussão desse “efeito” pode ser positiva para a decisão de parar de fumar, no sentido de ajudar estas corporeidades a encontrarem sensações semelhantes às trazidas pelo cigarro, através de práticas saudáveis, onde este não se enquadra.

Ao observarmos atentamente um corpo fumante fazendo uso do cigarro(6), verificamos que este primeiramente tem uma forma especial e particular de acendê-lo. Dá a primeira tragada prolongada, retém a fumaça por instantes e depois a devolve numa expiração longa. Este rito leva, na verdade, a uma diminuição da freqüência respiratória, porque amplia o movimento respiratório. Esta ampliação tem como conseqüência uma diminuição dos batimentos cardíacos e, conseqüentemente, uma sensação de apaziguamento pela diminuição da ansiedade, transitoriamente, porque momentos depois de ter fumado, o corpo fumante pode voltar às mesmas sensações de ansiedade anteriores e necessitar novamente do seu “respiradouro”, sem falarmos é claro, de toda a simbologia implícita neste ato.

Detectou-se que outro aspecto que facilita a manutenção da condição de não fumantes é o desenvolvimento de novos hábitos saudáveis em substituição ao rito de fumar e a percepção dos benefícios em permanecer sem o cigarro.

O prazer do reconhecimento também foi constatado neste estudo, em relatos que enfatizam a grande satisfação por parte do corpo, agora não fumante, ao ser elogiada pelo seu perfume. A transferência da vaidade de corpo tabagista, tão bem explorada pela indústria do tabaco, para a vaidade de uma nova categoria, a de corpo cheiroso.

As mudanças culturais em relação ao valor atribuído ao cigarro, assim como as políticas de enfrentamento do problema, aumentam o conflito vivenciado pelo corpo fumante. Se por um lado auxiliam para a conscientização do problema, por outro, atuam na contramão, porque ao invés de irem ao encontro, vão de encontro, marginalizando o já marginalizado, reiterando e reforçando o sentimento ambivalente de inclusão x exclusão social.

Lamentavelmente observo que a estratégia está mal empregada, sendo mais agressiva do que acolhedora, motivo pelo qual necessita ser revista pelos profissionais que atuam na área, assim como pelos diversos seguimentos sociais ligados ao tema. Há a necessidade de desenvolver-se um outro olhar para o tabagista, vendo-o não apenas como um usuário de nicotina, mas como alguém que possui as razões mais diversas para estabelecer uma relação com o cigarro. Este  parece ser uma resposta para estes corpos. Uma resposta para a insegurança, para a carência, para a auto-afirmação, isto é, o cigarro se apresenta como um fator de suporte, de empoderamento.

Penso que o desafio é estabelecer outras formas saudáveis de substituição deste poderoso produto que tem feito tão bem aos donos da indústria fumageira por outro, que possa dar prazer, fazer bem às nossas relações, ao corpo merleau-pontyano, e que, se possível, sejam tão simbólicas quanto. 

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19. Gennep V. Os ritos de passagem. Petrópolis: Vozes; 1978.

20. Chiara V. Fumar, fumar, fumar; reflexões etnográficas. Curitiba; 2004. Artigo mimeo.

21. Algarve V.Cultura negra na sala de aula: pode um cantinho de africanidade elevar a auto-estima

      de crianças negras e melhorar o relacionamento entre crianças negras e brancas? [dissertação].

      São Carlos: Programa de Pós Graduação em Educação, Metodologia de Ensino, Universidade

       Federal de São Carlos; 2004.

22. Maffesoli M. No fundo das aparências. Petrópolis: Vozes; 1996.

23. Carter B, McGoldrick M. As mudanças no ciclo de vida familiar: uma estrutura para a terapia  

      familiar. 2.ed. Porto Alegre: Artes Médicas; 1995.

24. Polak Y. A desmecanização do corpo. Cogitare Enfermagem 1998; 3(1):28-31.

25. Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Freitas Bastos; 1971.

 

Nota: Dissertação de Mestrado defendida em março de 2006. Curso de Mestrado em Enfermagem, Programa de Pós-Graduação em Enfermagem - Universidade Federal do Paraná.

 Endereço para correspondência:  eduardofunchal@infamilia.org.br

Rua Amadeu Assad Yassim – 87.  Bairro Bacacheri –  82520-800 - Curitiba Pr

 

Received Oct 12, 2006

Accept Oct 14, 2006