Usuários frequentes dos serviços de emergência: um estudo observacional de métodos mistos na Emilia-Romanha (Itália)

 

 

Andrea Ubiali1, Gloria Raguzzoni1, Sara Bontempo Scavo1, Chiara Bodini1, Tiziano Carradori2, Ardigò Martino3

 

 

1 Universidade de Bolonha, Itália

2 Hospital Universitário S. Anna de Ferrara, Itália

3 Universidade Federal de Mato Grosso do Sul

 

 

 

 

RESUMO

Histórico. A superlotação dos serviços de emergência (SE) representa uma grande preocupação na Itália. Os usuários frequentes (UF) contribuem para a superlotação, desperdiçando recursos de saúde.

Objetivo. Descrever as características dos UF e avaliar a confiabilidade dos sistemas de informação do SE. Desenho. Estudo retrospectivo observacional unicêntrico.

Métodos. Análise quali-quantitativa de prontuários médicos de admissões de UF para SE em um período de 15 meses em um hospital de ensino na Itália. Resultados. 1.766 UF acessaram o SE, realizando 11.842 admissões. Os códigos verde e branco foram mais frequentes (n = 9,065; 76,5%). As condições agudas prevaleceram entre os motivos da admissão. A análise qualitativa mostrou que os UF estiveram sobrecarregados principalmente com condições crônicas e destacou o papel do SE na sua administração. Discussão. Os UF sofrem de condições múltiplas e crônicas, que não são capturadas pelo sistema de informação do SE. Conclusões. A adoção de uma abordagem centrada no paciente, orientada para condições crônicas, pode resultar em informações mais ricas e melhor gerenciamento dos UF.

Palavras-chave: Serviços de Emergência hospitalar; Hospital; Determinantes Sociais de Saúde

 

 

INTRODUÇÃO

 

A superlotação dos serviços de emergência (SE) tem sido uma questão crítica para o Serviço Nacional de Saúde nas últimas décadas. Na Itália, as visitas aos SE cresceram ao longo dos anos, atingindo mais de 20 milhões de visitas em 2015, das quais quase 2 milhões foram realizadas na região de Emília-Romanha(1).

O uso excessivo dos SE pode ter efeitos deletérios, como custos mais altos, menor qualidade e eficácia do atendimento, tempos de espera prolongados, maus resultados para os pacientes e frustração para os profissionais de saúde(2). Asplin et al. explicam como a superlotação de SE resulta de uma incompatibilidade entre oferta e demanda no sistema de saúde e não pode ser entendida se examinada isoladamente. Eles identificam três componentes que contribuem para a superlotação: fatores de entrada, taxa de transferência e saída. Os fatores de entrada incluem qualquer condição que contribua para a demanda de serviços de pronto-socorro, os fatores de taxa de transferência referem-se ao tempo de permanência dos pacientes no pronto-socorro e os fatores de saída referem-se a possíveis obstáculos na hospitalização ou alta dos pacientes. Os três componentes estão fortemente inter-relacionados e cada um deles deve ser entendido para o desenvolvimento de soluções integradas(3).

Em 2016, a região de Emília-Romanha emitiu diretrizes regionais para resolver o problema, concentrando-se principalmente nos fatores de produtividade e produção(4). Pouco tem sido feito para o gerenciamento de fatores de entrada, que foram rotulados como menos ou não modificáveis. No entanto, os fatores de entrada incluem aspectos-chave, como o uso inadequado dos SE e o fenômeno de usuários frequentes (UF).

O uso inadequado dos SE foi ilustrado por estudos que mostram como a maioria das visitas aos SE é devida a pacientes não urgentes. Um estudo italiano estimou que mais de 80% dos acessos de SE são classificados como etiquetas brancas e verdes, de acordo com o sistema de triagem com código de cores italiano(5). Estudos internacionais mostram resultados heterogêneos, principalmente dependendo da definição adotada para qualificar o uso inadequado(6). O fenômeno dos UF também tem sido descrito como problemático, impactando severamente os custos, a qualidade da assistência e a aglomeração(7). Os UF constituem um grupo vulnerável em termos médicos e / ou psicossociais, geralmente caracterizado por um nível socioeconômico deficiente, problemas de saúde mental, uso de álcool e drogas e uma grande prevalência de doenças crônicas(8). Dada a natureza dos adoecimentos de longa duração, todos esses problemas dificilmente correspondem a uma configuração personalizada para lidar com situações de emergência. Essa incompatibilidade entre demanda (principalmente condições crônicas) e oferta (cuidados intensivos) representa apenas uma pequena parte de uma fratura muito maior que surgiu após a recente transição epidemiológico-demográfica, quando a grande maioria dos pacientes de condições crônicas compõem a carga de saúde nos países desenvolvidos, colocando novas demandas de longo prazo no sistema de saúde como um todo(9). Como os sistemas de saúde foram desenvolvidos em uma era antecedente, caracterizada principalmente por condições agudas, suas ações e estratégias concentram-se predominantemente em eventos agudos. A difusão do modelo de tratamento agudo tem sido apontada como uma questão importante que compromete a obtenção de melhores resultados de saúde para a população. Nesse cenário, os SE atuam como uma rede de segurança para o sistema de saúde focado em cuidados agudos, recebendo todos os pacientes cujas necessidades de saúde não são adequadamente gerenciadas em outros ambientes. Nesse sentido, a superlotação, bem como o uso frequente e inadequado, podem ser considerados sintomas de um problema mais profundo decorrente da falha do sistema de saúde em se adaptar à atual situação epidemiológica.

Estudamos o fenômeno dos UF em um hospital de ensino da região de Emília-Romanha, por meio de métodos mistos, com o objetivo de quatro objetivos: 1) avaliar a presença dos UF, 2) documentar as principais características médicas e sociais dos UF, 3) explorar a confiabilidade do sistema de informações atual na detecção e descrição dos UF, e 4) discutir o uso potencial de nossos resultados. Antes do início do estudo, nossa equipe de pesquisa atuava na área de captação hospitalar por 5 anos. Isso permitiu um profundo conhecimento dos serviços disponíveis, bem como dos principais atores envolvidos na prestação de serviços de saúde, dentro e fora do hospital.

 

MÉTODOS

 

Realizamos um estudo retrospectivo, unicêntrico, com base nos dados atuais do SE do Hospital Universitário S. Anna de Ferrara, que é o principal hospital da província de Ferrara, localizado na região de Emilia-Romanha, com uma área de captação hospitalar aproximadamente 340.000 habitantes. A rede possui uma estrutura de hub e spoke para o STEMI e o stroke. O hub está localizado no Hospital Universitário S. Anna e os spokes são hospitais comunitários. Desde 2010, os serviços de atenção primária à área de captação hospitalar estão sujeitos a uma reorganização, centrada na implantação de Casas de Saúde (CS). As CS devem ser pontos de acesso, provisão e integração de serviços sociais e de saúde. O distrito hospitalar é realmente servido por três CS.

Para a realização do estudo, foram coletados todos os prontuários das internações de SE realizadas pelos UF entre janeiro de 2016 e março de 2017. Uma revisão da literatura auxiliou na escolha de uma definição adequada para os UF, porém não foi encontrada consistência na literatura relevante, que mostrou resultados altamente heterogêneos(7). Dada a necessidade de coletar um tamanho amostral representativo suficiente e, ao mesmo tempo, limitar o número de observações para permitir análises qualitativas, definimos o ponto de corte em 5 ou mais visitas por paciente no período do estudo.

Os registros médicos continham, para cada admissão, informações anatômicas, clínicas e logísticas. Todas as variáveis expressas em números ou escalas foram analisadas por métodos quantitativos. A estatística descritiva foi elaborada no software STATA, versão 13. Para lidar melhor com a variável de diagnóstico, expressa pelo sistema de codificação ICD-9 CM, as categorias correspondentes mais próximas foram usadas para agrupar os diagnósticos em grandes grupos de diagnósticos.

Todos os textos livres foram a principal fonte de investigação qualitativa, realizada em três etapas. Na primeira, três autores (AU, GR, SBS) revisaram independentemente todos os prontuários médicos e identificaram palavras-chave relevantes por meio da análise semântica e de conteúdo. Nenhum software foi usado para esse processo. A identificação das palavras-chave foi realizada de acordo com o referencial teórico da saúde desenvolvido pela antropologia médica, em particular com as três dimensões inter-relacionadas de doença, enfermidade e doença(10). Esses conceitos foram fundamentais para ampliar a perspectiva biomédica, a fim de incluir as dimensões da saúde precária relacionadas às percepções e construtos sociais dos pacientes.

Na segunda etapa, as palavras-chave identificadas foram discutidas entre todos os autores, a fim de chegar a um consenso e agrupá-las em categorias, utilizando como referencial os determinantes sociais da saúde (DSS)(11). Três das categorias identificadas pertencem às características dos pacientes (multimorbidade, saúde mental, condições sociais), três às características da organização do SE (fragmentação, resolutividade/eficiência, condições sensíveis à atenção primária ou PCSC).

 

RESULTADOS

 

Análise quantitativa

Um total de 1.766 UF foram admitidos durante o período do estudo. As características da população são mostradas na Tabela 1. Os pacientes eram predominantemente do sexo feminino. A idade média foi de 53 anos (variação: 0-99 anos). Adultos e idosos representavam proporções semelhantes da população total, abrangendo juntos quase 90% dela. A maioria dos pacientes era de italianos. Outras nacionalidades mais representadas foram: romena, marroquina, albanês e paquistanês. 71,6% dos pacientes residiam no distrito hospitalar central, 22,3% eram de distritos hospitalares de fala, enquanto 6,1% eram de fora do território da Unidade Local de Saúde.

Tabela1. Características da população.

Característica

n (%)

Homens

781 (44,2%)

Idade (média ± desvio padrão)

53,3 ± 27,9

Crianças (0-16 anos)

222 (12,6%)

Adultos (17-64 anos)

771 (43,7%)

Idosos (≥65 anos)

773 (43,8%)

Nacionalidade

 

Italiana

1525 (86,3%)

Romena

47 (2,7%)

Marroquina

42 (2,4%)

Albanesa

28 (1,6%)

Paquistanesa

23 (1,3%)

Nigeriana

18 (1,0%)

Moldava

13 (0,7%)

Chinesa

11 (0,6%)

Sérvia

11 (0,6%)

Tunisiana

10 (0,6%)

Outro

38 (2,1%)

Distrito de residência

 

Norte-Central

1265 (71,6%)

Sudeste

220 (12,5%)

Oeste

 174 (9,8%)

Outro

107 (6,1%)

 

 

PS UF foram responsáveis coletivamente por 11.842 acessos. O número médio de acessos por paciente foi de 6,7 ± 4,1. A Figura 1 mostra a relação entre o número de pacientes e o número de acessos por paciente. Cerca de 80% dos pacientes fizeram entre 5 e 7 acessos, enquanto os 20% restantes fizeram 8 ou mais acessos, contribuindo para um terço do número total de internações.

Figura1. Distribuição de frequência do número de internações por paciente.

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A maioria das admissões não era urgente (Tabela 2), pois os códigos branco e verde constituíam três quartos do total (76,5%). Essa proporção variou entre as faixas etárias: internações urgentes foram menos frequentes em crianças (Branco = 421, 30,9%; Verde = 864, 63,5%; Amarelo = 76, 5,6%; Vermelho = 0, 0,0% ) e mais frequente em adultos (Branco = 554, 9,9%; Verde = 4074, 72,6%; Amarelo = 946, 16,9%; Vermelho = 38, 0,7%) e idosos (Branco = 254, 5,2%; Verde = 2903, 59,6%; Amarelo = 1582, 32,5%; Vermelho = 130, 2,7%). Os adultos apresentaram a maior proporção de internações (47,4%), mesmo que o número fosse semelhante ao número de idosos. A maioria dos acessos foi registrada durante o dia e nos dias da semana. O número de admissões variou ao longo dos dias da semana, sendo um pouco menor no sábado e no domingo. Os acessos resultaram em hospitalização em 17,1% dos casos.

Os motivos de admissão foram classificados em 24 categorias. Os motivos mais frequentes de internação foram: outros, dor abdominal, outros sintomas do sistema nervoso, trauma, doença respiratória e doença ocular. Entre os diagnósticos de alta, foram atribuídos 475 diagnósticos exclusivos, agrupados em 108 grupos de diagnóstico. Os mais frequentes foram: complicação da gravidez, doença ocular, outros, trauma e dor abdominal. A categoria “outro” foi atribuída em 7,7% das internações, enquanto nenhum diagnóstico foi atribuído em 3,4% dos casos. Os diagnósticos menos frequentes consideraram problemas psicossociais (0,3%), problemas psiquiátricos (1,9%) ou condições crônicas como diabetes (0,4%), hipertensão (0,6%), DPOC (0,7%) e insuficiência cardíaca (2,8%).

 

Tabela 2 Características de admissão.

Características

Nº de admissões (%)

Nº de internações por paciente

6,7±4,1

 

Código de Triagem

 

 

Branco

1227 (10,3%)

 

Verde

7838 (66,2%)

 

Amarelo

2604 (22,0%)

 

Vermelho

173 (1,5%)

 

Classe etária

 

 

Crianças (0-16 anos)

1361 (11,5%)

 

Adultos (17-64 anos)

5612 (47,4%)

 

Idosos (≥65 anos)

4869 (41,1%)

 

Data de admissão

 

 

Segunda

1853 (15,7%)

 

Terça

1691 (14,3%)

 

Quarta

1660 (14,0%)

 

Quinta

1753 (14,8%)

 

Sexta

1749 (14,8%)

 

Sábado

1505 (12,7%)

 

Domingo

 

 

Hora da admissão

 

 

Dia (08-20)

8426 (71,2%)

 

Noite (20-08)

3416 (28,8%)

 

Resultado da visita

 

 

Óbito

7 (0,1%)

 

Alta

8567 (72,3%)

 

Saiu sem ser vista (Left Without Being Seen, LWBS)

442 (3,7%)

 

Hospitalizado

2021 (17,1%)

 

Transferido

690 (5,8%)

 

Outro

115 (1,0%)

 

Motivo da admissão

 

 

Outro

4671 (39,4%)

 

Dor abdominal

1318 (11,1%)

 

Outros sintomas do sistema nervoso

917 (7,7%)

 

Trauma

865 (7,3%)

 

Doença respiratória

787 (6,6%)

 

Doença ocular

585 (4,9%)

 

Diagnóstico

 

 

Complicações da gravidez

1267 (10,7%)

 

Doença ocular

934 (7,9%)

 

Outras

916 (7,7%)

 

Trauma

746 (6,3%)

 

Dor abdominal

519 (4,4%)

 

Ausente

408 (3,4%)

 

 

 

Análise qualitativa

A análise qualitativa do conteúdo de texto livre dos prontuários médicos levou à identificação de 33 palavras-chave, relacionadas às características dos pacientes ou às características do SE. As palavras-chave referentes às características dos pacientes pertencem a três categorias temáticas:

Palavras-chave relacionadas às características do SE pertencem a três categorias temáticas que constituem o segundo eixo.

O conteúdo e as implicações dessas seis categorias temáticas são discutidos mais detalhadamente na seção abaixo.

 

DISCUSSÃO

 

Nosso estudo confirma a presença de UF no cenário de SE. Como já foi demonstrado em estudos anteriores, os UF foram responsáveis por um grande número de internações não urgentes, com os códigos branco e verde representando mais de três quartos do total. A maioria das internações foi realizada em dias da semana durante o dia, quando os serviços de atenção primária geralmente trabalham. Esse aspecto sugere que pelo menos uma parte das necessidades de saúde dos UF, que poderiam ser gerenciadas no contexto da atenção primária à saúde, vaza para a emergência, contribuindo para a superlotação. Conforme observado por outros autores(12), observamos que a maioria dos UF realizou um pequeno número de internações (5 a 7 no período do estudo), enquanto 20% deles realizaram mais de oito internações e foram coletivamente responsáveis por 33% do total número de admissão. Dado esse aspecto, os UF poderiam ser divididos em subpopulações de acordo com seu padrão de uso dos serviços de saúde. Atividades específicas podem ser direcionadas aos UF de alto consumo, incluindo gerenciamento de casos(13), estudos de pesquisa mais aprofundados ou extrapolação de casos complexos a serem usados para treinamento de profissionais de saúde. Mesmo que a literatura científica descreva aos UF como uma população afetada principalmente por condições crônicas(7), isso não ficou aparente em nossa análise quantitativa dos dados, que relatou principalmente eventos agudos como motivo para o diagnóstico de admissão e alta. Nossa hipótese era de que a maneira pela qual os dados são coletados e gerenciados no pronto-socorro (ou seja, através de uma abordagem focada na doença e baseada principalmente em métodos quantitativos), é bem adequada dentro de um paradigma de condição aguda, mas pode ter um desempenho abaixo do esperado numa condição crônica. Testamos essa hipótese explorando dados por meio de uma análise qualitativa, alternando a abordagem focada na doença (AFD) com uma abordagem focada na pessoa ou AFP(14).

 

1. Epidemiologia e características dos pacientes

O conteúdo narrativo dos prontuários médicos continha muitas informações sobre as características dos UF, retomadas em três categorias potencialmente sobrepostas: multimorbidade, vulnerabilidade social e saúde mental. A multimorbidade caracterizou a maioria dos UF, principalmente os idosos. Essa característica não ficou evidente quando analisamos dados quantitativos. Dada a natureza do SE, um serviço dedicado ao atendimento de urgência, isso não foi uma surpresa, uma vez que seus profissionais tendem a se concentrar em eventos agudos quando codificam admissões pelo sistema ICD-9 CM. Portanto, enquanto os registros médicos descreviam principalmente várias condições crônicas, os diagnósticos codificados eram principalmente orientados para eventos agudos. Essa dicotomia não representa necessariamente uma contradição, mas aponta duas abordagens diferentes para a mesma situação, cada uma delas implicando diferentes possibilidades de ação. Nenhum deles é inerentemente errado, mas argumentamos que uma combinação de ambas, investigação qualitativa e quantitativa, poderia ser melhor capaz de representar toda a cadeia de eventos, de distal a proximal, revelando mais chances de ação.

Também esperávamos que os UF fossem uma população socialmente vulnerável(7). No sistema de codificação da CID-9 CM, no entanto, a categoria de problemas psicossociais representava apenas 0,3% das admissões. Nossa análise mostrou que os pacientes desse cluster geralmente tinham problemas sociais sem um componente biológico (por exemplo, pessoas sem-teto que usam o pronto-socorro como abrigo). Mais informações sobre os DSS foram relatadas no componente narrativo dos prontuários. Os pacientes que acessam o pronto-socorro com uma condição médica também costumam sofrer vários tipos de vulnerabilidades sociais. Apesar da relevância do impacto desses determinantes na apresentação clínica, o diagnóstico final sempre relatou a condição biológica, com informações dos DSS - quando presentes - perdidas no fundo do texto livre. Os médicos tendiam a relatar dados sobre os DSS apenas em casos extremos, ignorando-os em situações em que eram menos proeminentes. Além disso, os relatórios de problemas sociais eram frequentemente formulados com um tom crítico ou crítico, transmitindo sentimentos de angústia e frustração pelos profissionais de saúde. Atitudes potencialmente negativas dos médicos em relação aos pacientes devem ser detectadas, pois apresentam um impacto prejudicial no atendimento ao paciente(15). Finalmente, os UF que sofriam de problemas de saúde mental também foram difíceis de identificar, contando apenas com investigação quantitativa. Os diagnósticos psiquiátricos detectados com o sistema CID-9 CM representaram 1,9% das internações. Um diagnóstico psiquiátrico foi atribuído apenas quando a condição mental era diretamente responsável pela admissão ao pronto-socorro (por exemplo, em caso de crise psicótica, ataques de pânico, comportamentos agressivos ou agressores, etc.). Nossa análise mostrou que as condições mentais geralmente agiam indiretamente, influenciando o autocuidado, a adesão e a competência social dos pacientes. Os UF com diagnóstico psiquiátrico estavam, na maioria das vezes, acessando a emergência por motivos relacionados a exacerbações ou complicações de condições crônicas, traumas, suposição incongruente de medicamentos ou drogas. Os diagnósticos de alta focaram-se principalmente nesses eventos, ocultando o transtorno psiquiátrico subjacente e, assim, determinando uma subestimação do número de pacientes que sofrem de problemas de saúde mental. Identificar essa subpopulação, que geralmente não é detectada, é importante para planejar intervenções direcionadas. Lawrence et al. mostraram como a doença mental está associada a grandes riscos aumentados de morbimortalidade, com quase 80% do excesso de mortes sendo associadas a condições físicas de saúde, e sugeriu que os problemas de saúde física e mental deveriam ser avaliados e tratados, através de uma melhor integração e coordenação de serviços de saúde mental com outros serviços sociais e de saúde(16).

As três categorias discutidas foram evidentes em um estudo de caso paradigmático: o caso de um paciente que fez admissões repetidas de SE por causa de crises epilépticas, quedas e trauma. A variável “diagnóstico” foi codificada no sistema CID-9 CM como trauma, contusão ou convulsão, sem qualquer outra informação relevante. A análise qualitativa ajudou a recuar de traumas agudos e contusões e a recuar para causas mais distais. Ligamos contusões e traumas às convulsões que os causaram. O conteúdo narrativo dos prontuários médicos também permitiu documentar que as convulsões estavam relacionadas à falta de adesão à terapia farmacológica, a um transtorno de personalidade não especificado e à ausência de um cuidador e de uma rede social confiável. Este caso ilustra como a análise quantitativa apenas permite contar o número de eventos agudos relevantes principalmente para a dimensão biológica (convulsões, quedas e traumas) e planejar atividades direcionadas a eles. A integração com uma análise qualitativa traz à tona mais complexidade, mostrando vários determinantes pertencentes às dimensões perceptivas e sociais, nas quais planejamos possíveis estratégias corretivas. Tange et al. discutiram a questão de diferentes modelos de manutenção de registros médicos, argumentando que a mudança de paradigmas de saúde frequentemente traz consigo discussões sobre qual abordagem deve ser adotada. Eles continuam sugerindo que cada novo paradigma realmente representa uma extensão do anterior, sendo mais complementar do que alternativo a ele. Nesse sentido, o paradigma biopsicossocial representa uma maneira de alinhar o modelo biomédico, do qual o CDI é um produto, para todo o paciente, com todos os seus problemas biológicos, sociais e psicológicos(17). Isso também é consistente com as principais alegações da antropologia médica sobre padecimentos, afecções e doenças(10). Quando lidamos com condições agudas, argumentam os antropólogos, a realidade clínica dos pacientes pode ser facilmente aproximada da dimensão da doença, que é perfeitamente capturada usando sistemas focados em patologias, como o CDI. No entanto, quando prevalecem as condições crônicas, as dimensões das doenças e das afecções tornam mais proeminentes e não podem ser ignoradas. Nosso estudo mostra que muitas informações relevantes sobre as características dos UF são coletadas rotineiramente durante as atividades de SE, mas não são adequadamente reconhecidas, codificadas ou usadas para fins práticos.

 

2. Características do SE

 

Informações sobre as características do SE e seu padrão de uso também emergiram de nossos resultados e foram sintetizadas em três categorias: fragmentação, resolutividade/eficiência e PCSC.

 

a) Fragmentação

A fragmentação emergiu como um tema de duas maneiras. Primeiro, observamos fragmentação na maneira como o SE coleta e gerencia dados por meio de um DFA, que tende a separar histórias clínicas de longo prazo em episódios discretos de atendimento, desconectados um do outro. Em segundo lugar, a fragmentação constituía uma característica de várias vias clínicas dos UF. Isso foi particularmente evidente em pacientes que estavam sofrendo o aparecimento de uma condição crônica. Esses pacientes estavam se aproximando do SE com sintomas vagos e indiferenciados e receberam alta após tratamento sintomático, sem diagnóstico adequado. O processo foi repetido por um número variável de vezes, até que os sintomas se tornassem mais específicos e permitissem chegar a um diagnóstico da condição crônica subjacente. Esse processo é bastante comum no contexto da atenção primária, onde os diagnósticos geralmente são produzidos em um período discreto de tempo e através de muitos contatos entre pacientes e serviços de saúde, caracterizados preferencialmente pela coordenação e continuidade dos cuidados. É peculiar encontrar um caminho semelhante no cenário da emergência, onde as características do contexto de emergência dificultam muito a coordenação e a continuidade. Como a falta de coordenação e continuidade foi associada a custos mais altos e piores resultados(18), a fragmentação deve ser superada. Os caminhos clínicos poderiam se beneficiar da implementação de redes horizontais, multiníveis e intersetoriais, capazes de trabalhar em conjunto para oferecer atendimento integrado e abrangente.

 

b) Resolutividade / Eficiência

O uso frequente deve ser considerado problemático apenas quando não está associado a uma melhora no estado de saúde do paciente. Consideramos resolutividade como a capacidade de um sistema de saúde de abordar e resolver adequadamente o problema de uma pessoa e tentamos responder à pergunta: os UF retornam ao SE porque suas necessidades são atendidas ou porque não são? Ao mesmo tempo, exploramos o conceito de eficiência, definido como a produção do efeito desejado com o uso mínimo de recursos. Nesse sentido, a pergunta a ser feita era: os problemas poderiam ser abordados com menos recursos fora do SE? Combinando resolutividade com eficiência, dois tipos de UF poderiam ser descritos:

1) Pacientes cujos problemas foram resolvidos: pacientes acessando o SE para complicações ou manutenção de dispositivos (cateteres, tubos nasogástricos, tubos de PEG) ou pacientes acessando o manejo da dor em condições de dor recorrente ou crônica. Nesses casos, a resolutividade era alta, pois os pacientes solucionavam seus problemas, mas a eficiência era baixa, pois outras configurações, mais adequadas e apropriadas em comparação com o SE, podiam ser identificadas e usadas. A capacidade de identificar adequadamente esse subgrupo de pacientes pode levar a estratégias de reorganização destinadas a evitar práticas ineficientes e direcionar os pacientes para ambientes de atendimento mais adequados para o tratamento de sua condição.

2) Pacientes cujos problemas não foram resolvidos: pacientes cujo diagnóstico não pôde ser assegurado e que permaneceram em uma situação de incerteza diagnóstica, pacientes que acessaram repetidamente por causa da ansiedade, pacientes cujos sintomas persistiram e pacientes com uma percepção geral de que suas necessidades de saúde não eram atendidas. Nesses casos, a resolutividade e a eficiência foram baixas, pois as principais preocupações dos pacientes não foram resolvidas, apesar dos recursos utilizados para resolver seus problemas. A identificação adequada desse subgrupo, juntamente com uma maior integração do SE com outros serviços, poderia ajudar a atender as necessidades desses pacientes, com maior resolutividade e eficiência.

 

c) Condições sensíveis à atenção primária (PCSC)

As PCSC são definidas como condições para as quais uma boa atenção primária pode potencialmente prevenir complicações, necessidade de hospitalização ou, no nosso caso, necessidade de admissão ao SE(19). Aplicamos esse conceito para detectar admissões inapropriadas de SE e expor a ligação entre SE e cuidados de saúde primários. Descobrimos que as PCSC poderiam detectar acessos inadequados melhor do que a codificação de triagem. Exacerbações de condições crônicas representam um bom exemplo de PCSC. Eles podem exigir cuidados urgentes no cenário da emergência, se o gerenciamento na atenção primária não for adequado. Um edema pulmonar, por exemplo, seria considerado adequado da perspectiva do SE. Se mudarmos o foco para os cuidados primários, no entanto, podemos apreciar o fato de que a mesma condição poderia ter sido evitada.

As PCSC tem o potencial de identificar internações inapropriadas e atuar como uma ferramenta para a avaliação do desempenho da atenção primária à saúde(20). Isso parece ser particularmente promissor em um contexto em que os serviços de saúde primária estão sendo reorganizados. Nessa perspectiva, os dados sobre as PCSC poderiam ser usados para apoiar, orientar e monitorar a atividade das CS, bem como para treinar profissionais de saúde.

 

LIMITAÇÕES

O design retrospectivo de centro único impõe limites à generalização de nossos resultados. O período do estudo e o tamanho da amostra foram limitados, a fim de permitir o uso de métodos qualitativos de pesquisa. Essa foi uma primeira abordagem experimental para explorar dados. São necessárias mais pesquisas para desenvolver um sistema de informação confiável que se encaixe adequadamente no atual cenário epidemiológico.

 

CONCLUSÕES

 

Nosso estudo confirma a existência de UF em nosso contexto local. Os UF constituem uma população muito vulnerável, sobrecarregada com condições de saúde complexas e principalmente crônicas, fortemente influenciadas por determinantes biológicos, sociais e psicológicos. A maioria dessas condições não precisa estritamente de cuidados urgentes e pode ser abordada de maneira mais adequada em outros ambientes (por exemplo, cuidados de saúde primários).

O SE coleta rotineiramente uma grande quantidade de dados sobre as admissões dos UF, mas a maneira padrão de processá-las, principalmente em função de variáveis quantitativas baseadas em doenças, mostrou várias limitações. A adoção de uma abordagem multidimensional e focada na pessoa, orientada para condições crônicas, multimorbidade e DSS, bem como a implementação de métodos qualitativos de investigação, pode resultar em informações muito mais ricas.

O conhecimento resultante dessa abordagem pode ter um forte papel no desenvolvimento de estratégias para a redução da superlotação de SE, a reorganização dos serviços de atenção primária à saúde, a implementação de redes intersetoriais de atenção e a educação dos profissionais de saúde.

 

AGRADECIMENTOS

Fomento: O estudo foi financiado com recursos do Departamento de Políticas Sociais e de Saúde da região de Emilia-Romanha e da Unidade Local de Saúde de Ferrara.

Conflito de interesse: Nenhum conflito de interesses foi declarado pelos autores.

Considerações éticas: A aprovação pelo comitê de ética local não era necessária, uma vez que os dados utilizados eram coletados rotineiramente pelos serviços de saúde e todas as informações haviam sido anonimizadas e desidentificadas antes do acesso e análise. Os dados são apresentados em forma agregada e anônima.

 

REFERÊNCIAS

 

1. Ministero della Salute - Agenzia Nazionale per i Servizi Sanitari Regionali. Programma Nazionale Esiti PNE [Internet]. Italia:  Ministero della Salute; 2017 [cited 2019 maio 20]. Avaliable from: http://pne2017.agenas.it/

 

2. Hoot NR, Aronsky D. Systematic review of emergency department crowding: causes, effects, and solutions. Ann Emerg Med [Internet]. 2008 [cited 2019 maio 20]; 52(2): 12636. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/18433933/  doi: 10.1016/j.annemergmed.2008.03.014 PMID: 18433933

 

3. Asplin BR, Magid DJ, Rhodes KV, Solberg LI, Lurie N, Camargo CA. A conceptual model of emergency department crowding. Ann Emerg Med [Internet]. 2003 [cited 2019 maio 20]; 42(2): 17380. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/12883504/

 

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Ubiali, Raguzzoni e Martino contribuíram para a coleta de dados.

Todos os autores contribuíram para a redação e revisão do manuscrito.

Recebido: 24/07/2019

Revisado: 18/09/2019

Aprovado:17/04/2020