Nem heróis, nem novo e nem normal: a pandemia e as práticas profissionais da enfermagem

 

Cinira Magali Fortuna1

 

1 Universidade de São Paulo, SP, Brasil

 

Em 2020, ano anunciado pela Organização Mundial da Saúde e Organização Pan-americana de Saúde(1) como ano da Enfermeira e da Parteira, o mundo foi assolado pela pandemia do SARS-CoV-2. A enfermagem brasileira perdeu vidas e teve exposta as condições de trabalho e o lugar de valor social dessa profissão.

Em 15 de Junho de 2020 o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) anuncia ser o Brasil o responsável por 30% dos óbitos de profissionais no mundo pela doença. No topo das categorias estão técnicos, auxiliares e enfermeiros(2).

As mortes talvez sejam a ponta do iceberg que vemos, pois há outras questões que deixam marcas e sequelas causadas e/ou acentuadas pela pandemia. É notável o sofrimento psíquico dos profissionais de saúde frente a pandemia(3). Temos escutado os profissionais angustiados, com medo de adoecer, com medo de contaminar seus parentes e ainda insatisfeitos com aquilo que tem podido ofertar como cuidado aos pacientes e familiares.

Nesse sentido, a morte é o desfecho mais agudo para essa categoria profissional, mas já se anunciam sequelas crônicas das marcas expostas e causadas pela pandemia. O que significa na vida profissional acompanhar pessoas morrendo sozinhas sem o direito à visita de um parente ou amigo? O que significa não ter equipamentos como respiradores suficientes e não dispor de Equipamentos Individuais de Proteção (EPIs) para proteção de si e dos colegas? O que significa contrariar os propósitos pelo qual se foi formado e que sustentam os ideais da profissão?

No momento da escrita desse editorial, o Brasil ultrapassava os 90 mil mortos em gravíssima crise sanitária e política. Em curva epidêmica ascendente e em interiorização da pandemia Brasil a fora, temos abertura de comércio e flexibilização do isolamento social. Então podemos esperar ainda mais profissionais de enfermagem e de saúde expostos, adoecidos e mortos.

A crise política e sanitária brasileira pode ser ilustrada pela imagem emblemática de profissionais de enfermagem sendo insultados em Brasília por apoiadores do governo, quando, vestidos de branco e preto e com cruzes denunciavam silentes as mortes e falta de condições do exercício digno da profissão(4).

Por outro lado, há menções ao profissional de saúde no papel de herói. Essa expressão merece reflexões. O Cofen lançou um vídeo sobre os heróis do cuidado em 2018 destacando o heroísmo da enfermagem(5), nele vemos e ouvimos relatos de cinco profissionais sobre a lida diária, a escolha da profissão e o ideal que os move: a dedicação a um mundo melhor.

Provavelmente, ainda antes da epidemia, foi uma tentativa do Conselho Federal de homenagear e promover visibilidade social para a profissão que sofre há muito tempo com salários baixos, dificuldades materiais para o cuidado, relações de trabalho desgastantes especialmente com a categoria médica, longas jornadas de trabalho e em muitas vezes em mais de um estabelecimento de saúde.

Notem que a ideia de herói já circulava anteriormente à pandemia, numa espécie de gestação simbólica.

Em março de 2020, o Coren-SP publica também um vídeo, denominado “Heróis da vida real”. Um vídeo curto, com menção ao uniforme, luvas, máscaras e vontade de salvar e ainda destacando as palavras: “Respeite, valorize. Os profissionais de enfermagem lutam por você”(6).

Em Maio de 2020, o famoso grafiteiro Bansksy deixa no hospital universitário de Southampton, na Inglaterra, um quadro retratando uma criança brincando com um super-herói novo, uma enfermeira de máscara, cruz vermelha no peito, capa, um dos braços elevados como em posição de voo, na mão do menino que brinca. Retrata ainda um cesto com Batman e homem aranha, sugerindo que foram preteridos em favor desse super-herói feminino(7).

A expressão “herói” produz efeitos contraditórios uma vez que o heroísmo retira as características humanas de vulnerabilidade, temor e reflexividade. O herói não pensa, age impulsionado pela crença na indestrutibilidade e desejo de salvar o outro. Ele não precisa ser remunerado adequadamente, afinal age por idealismo.

Muitos profissionais da enfermagem vêm expressando o desconforto com a expressão que impõe ainda uma carga de exigência moral de invencibilidade ao trabalho já difícil.

Soma-se a isso a falta de politização da categoria de enfermagem que majoritariamente e historicamente se diz técnica e não política.

Ainda que o trabalho da enfermagem estivesse reduzido a cuidados de corpos, o que está longe de ser, seria inevitavelmente um fazer político e não só técnico porque o corpo vive imerso no campo politico e em tramas de relações de poder(8).

A pandemia mostrou com todas as letras, para quem pôde ler, que o fazer técnico é um fazer político e que o fazer político é também técnico como bem já dizia Mario Testa(9). A defesa de medicamentos e tratamentos em prol de interesses mais econômicos e políticos partidários, mostra o equívoco sobre a existência da neutralidade nas ações de saúde.

O Sistema Único de Saúde, o SUS brasileiro, é o palco de inúmeras práticas de enfermagem, com atendimentos individuais, em grupos, de prevenção à doenças, promoção de saúde e cuidados com pessoas em agravos e doenças(10).

As práticas profissionais não resultam daquilo que a ideologia capitalista insiste em afirmar: da vontade de cada um e esforço em somatória da categoria profissional. Esse é o mesmo discurso que tenta apagar o impacto da ausência de coordenação vivenciada na pandemia agravada com troca de ministros que pautavam algum alinhamento com medidas propostas pela Organização Mundial de Saúde (OMS).

O discurso vigente é a culpabilização individual das pessoas que não usam as máscaras, não querem ficar em casa, não lavam as mãos, negando-se a realidade de que há casas e casas para se ficar, que há pessoas sem casa, sem água, sabão e álcool gel, sem trabalho oficial, sem renda. Há ainda outros inúmeros fatores, inclusive ideológicos que impulsionam as pessoas em suas condutas, inclusive uma alusão à liberdade. Parece que tudo fica mais simples se atribuirmos ao indivíduo a responsabilidade por sua condição.

Desse mesmo modo, quando a enfermagem assume o discurso de que a valorização da profissão passa pela postura dos profissionais, que eles devem valoriza-la para serem valorizados, parece haver aqui também uma importante negação das condições sociais, históricas, políticas que atravessam as práticas profissionais.

Nesse sentido, consideramos a enfermagem como prática social, ou seja, são práticas que se modelam nos jogos de saber e poder que se tecem socialmente, historicamente, politicamente e economicamente(11).

Não são neutras, disputam espaços, disputam saberes e poderes.

Assim a pandemia poderia produzir mudanças estruturais sobre o trabalho em saúde e sobre a enfermagem se as bases históricas e ideológicas fossem profundamente revistas e analisadas coletivamente.

No entanto, os esforços parecem se dirigir para a manutenção daquilo que já conhecemos. Nesse contexto, para se referir ao pós pandemia muitos tem utilizado uma expressão que no mínimo merece reflexões: trata-se do “novo normal”. Proponho a reflexão do que seria “novo” e do que seria “normal” no atual contexto mundial e especialmente brasileiro?

Haveriam novas e ainda mais profundas formas de exploração do trabalhador e da enfermagem? Talvez sim, com a retirada dos direitos trabalhistas e de proteção ao trabalhador, retirada de direitos à aposentadoria, desfinanciamento do SUS(12). O desmanche no sistema público brasileiro afeta diretamente a empregabilidade da categoria sendo que em 2016 estudo apontava(10) que o setor público é o maior empregador da enfermagem.

Então a questão passa a ser: esse “novo” interessa a quem?

Sobre o “normal”, pergunto ao leitor: seria normal simplesmente retomar o que nos oprime e não nos inclui?

 

REFERÊNCIAS

 

1. Organização Mundial da Saúde (OMS). OMS define 2020 como ano internacional dos profissionais de enfermagem e obstetrícia [Internet]. Brasília: OMS; 2020 [cited 2020 jul 10]. Available from: https://nacoesunidas.org/oms-define-2020-como-ano-internacional-dos-profissionais-de-enfermagem-e-obstetricia/

 

2. Conselho Federal de Enfermagem (COFEN). Brasil responde por 30% das mortes de profissionais de enfermagem por covid-19 [Internet]. [place unknown]: COFEN; 2020 [cited 2020 jul 11]. Available from: http://www.cofen.gov.br/brasil-responde-por-30-das-mortes-de-profissionais-de-enfermagem-por-covid-19_80622.html

 

3. Ornell F, Halpern SC, Kessler FHP, Narvaez JCM. O impacto da pandemia de COVID-19 na saúde mental dos profissionais de saúde. Cad Saúde Pública [Internet]. 2020 [cited 2020 Jul 17];36(4). Available from: http://cadernos.ensp.fiocruz.br/csp/artigo/1037/o-impacto-da-pandemia-de-covid-19-na-saude-mental-dos-profissionais-de-saude doi: http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00036520  

 

4. Globo. Profissionais no mundo são aplaudidos, e no Brasil a agente apanha, diz enfermeira agredida em ato no DF [Internet]. [place unknown]: G1; 2020 [cited 2020 jul 12]. Available from: https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2020/05/01/profissionais-no-mundo-sao-aplaudidos-e-no-brasil-a-gente-apanha-diz-enfermeira-agredida-em-ato-no-df.ghtml

 

5. Somos Enfermagem TV. Heróis do cuidado: documentário sobre os profissionais de enfermagem [Internet]. [place unknown]: Somos Enfermagem TV; 2018 [cited 2020 jul 12]. Vídeo: 24 min. Available from: https://www.youtube.com/watch?v=rYx_dFewmV0

 

6. COREN SP. Hérois da vida real [Internet]. São Paulo: COREN SP; 2020 [cited 2020 jul 12]. Vídeo: 52 seg. Available from: https://www.youtube.com/watch?v=oQz7r98zLJs

 

7. Pós-Graduação Enfermagem (PGE). Obra de Bansky mostra enfermeira como heroína [Internet]. [place unknown]: PGE; 2020 [cited 2020 jul 12]. Available from: https://www.posgraduacaoenfermagem.com.br/carreira-de-enfermagem/279-obra-de-banksy-mostra-enfermeira-como-heroina

 

8. Foucault M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes; 1999.

 

9. Testa M. Pensamento estratégico e lógica de programação: o caso da saúde. São Paulo: Rio de Janeiro: Hucitec-Abrasco; 1995.

 

10. Machado MH, Oliveira ES, Lemos WR, Lacerda WF, Justino E. Labor market in nursing in the SUS: an approach from the research Nursing Profile in Brazil. Divul Saúde Debate [Internet]. 2016 Dez [cited 2020 Jul 13];(56):52-69. Available from: http://docs.bvsalud.org/biblioref/2019/04/884409/mercado-de-trabalho-em-enfermagem-no-ambito-do-sus-uma-abordage_Uir6lGY.pdf

 

11. Almeida MCP, Rocha SMM. O Trabalho de enfermagem. São Paulo: Cortez; 1997.

 

12. Mendes A, Carnut L, Guerra LDS. Primary Health Care federal funding in the Unified Health System: old and new dilemmas. Saúde Debate [Internet]. 2018 [Cited 2020 Jul 14];42(1):224-243. Available from: https://www.scielo.br/pdf/sdeb/v42nspe1/0103-1104-sdeb-42-spe01-0224.pdf doi: http://doi.org/10.1590/0103-11042018S115

 

Imagem 2