Vivido materno no acompanhamento da criança na Atenção Primária: uma abordagem qualitativa

 

Patrícia Maria Januário Araújo1, Rosana Claudia de Assunção2, Rosangela Aparecida Ferrari Pimenta1, Adriana Valongo Zani1

 

1 Universidade Estadual de Londrina, PR, Brasil

2 Instituto Federal do Paraná, PR, Brasil

 

RESUMO

Objetivo: Apreender o vivido materno frente ao acompanhamento da criança até o sexto mês de vida pela Atenção Primária à Saúde. Método: Estudo com abordagem qualitativa fundamentado na Fenomenologia Social de Schütz, que ocorreu de janeiro a julho de 2018 no domicílio de 19 mães. Resultados: Duas unidades temáticas: “Vivenciado o acompanhamento do filho pela Atenção Primária nos primeiros seis meses de vida” e “Desejos e expectativas frente à assistência à criança recebida pela Atenção Primária”. Discussão: O seguimento da criança deve acontecer na primeira semana de vida, pois o período neonatal precoce representa grande vulnerabilidade para o recém-nascido. A Atenção Primária é capaz de organizar as ações de acompanhamento por meio de visitas domiciliares e rotina de consultas na Unidade Básica de Saúde. Conclusão: As mães identificaram fragilidades no acompanhamento dos filhos, como ausência de visitas domiciliares e de alguns profissionais, e longos intervalos entre as consultas. 

Descritores: Cuidado da Criança; Programas Governamentais; Atenção Primária à Saúde; Enfermagem Pediátrica; Puericultura.

 

 

INTRODUÇÃO 

O Brasil se destaca como responsável pelo acesso universal à saúde da população, defendendo um sistema integral, público e gratuito. O Sistema Único de Saúde (SUS) propiciou inúmeros avanços nas políticas públicas sociais do Brasil, especialmente para a saúde da criança. No entanto, existem demandas de qualificação nessa linha de cuidado, e é neste sentido que o país tem buscado inovações, tanto em aspectos normativos quanto na implementação de programas e ações específicas. Diante deste contexto, estratégias foram adotadas, como reengenharia do sistema, para integrar o sistema público e buscar superar as fragilidades, considerando aspectos demográficos e epidemiológicos locais e regionais. Em 2010, o Ministério da Saúde instituiu redes de Atenção à Saúde a fim de garantir a integralidade da assistência. A Rede Cegonha, criada em 2011, é uma delas, responsável pelo seguimento materno-infantil(1)

A Rede Cegonha apresenta uma estruturação estratégica para implementar uma rede de cuidados com a finalidade de assegurar às mulheres o direito do planejamento reprodutivo, a atenção humanizada à gravidez, ao parto, ao puerpério, e às crianças o direito ao nascimento seguro, crescimento e desenvolvimento saudáveis(2).

Para que o processo ocorra de forma eficiente, eficaz e com efetividade, a Rede Cegonha organiza-se com base em quatro componentes: pré-natal; parto e nascimento; puerpério e atenção integral à saúde da criança; e sistema logístico. Por conseguinte, consegue garantir assistência contínua de ações de atenção à saúde materno-infantil para a população de determinado território com qualidade adequada, custo correto e responsabilização sobre os resultados sanitários referentes a essa população(3).

Fundamentada nos princípios da Rede Cegonha, implantou-se no Paraná, em 2012, a Rede Mãe Paranaense, definida como um conjunto de ações que envolve captação precoce da gestante, acompanhamento no pré-natal com consultas e exames, estratificação de risco da gestante e da criança, atendimento em ambulatório especializado e garantia do parto por meio de sistema de vinculação a hospital conforme risco gestacional. Tem como missão promover o cuidado seguro e de qualidade na gestação, no parto, no puerpério, assim como às crianças menores de um ano de idade, buscando reduzir a mortalidade materno-infantil(4)

Considerando que a população materno-infantil é uma das prioridades governamentais — com implementação de políticas públicas para qualificar os cuidados desde o período gestacional, envolvendo o parto e o seguimento da mulher e da criança após a alta da maternidade — e necessidade de avaliar os programas implementados, pela perspectiva da usuária(5), idealizou-se o presente estudo, de cujas reflexões emergiu o seguinte questionamento: Como a mãe percebe a assistência dada à criança pela Atenção Primária nos primeiros seis meses de vida? O objetivo deste estudo foi, portanto, apreender o vivido materno frente ao acompanhamento da criança realizado pelo serviço de Atenção Primária à Saúde até o sexto mês de vida, após a alta da maternidade.

MÉTODO

Trata-se de um estudo descritivo com abordagem qualitativa fundamentado na Fenomenologia Social de Alfred Schütz, a qual se baseia na compreensão e interpretação da ação social de fenômenos humanos relacionados, no caso da Enfermagem, ao processo saúde-doença e, principalmente, às situações vividas em diferentes cenários assistenciais e de atenção à saúde. Esses elementos são obtidos através de entrevista com questionamentos para extrair do entrevistado o contexto de vivências passadas e presentes (“motivos por que”), com orientação para a ação futura (“motivos para”), como ato antecipado, uma projeção da ação. Nesse sentido, a Fenomenologia Social possibilita compreender o vivido materno a partir de suas relações sociais(6). 

Este estudo integra-se ao amplo projeto de pesquisa multicêntrico intitulado “Rede Mãe Paranaense na perspectiva da usuária: o cuidado da mulher no pré-natal, parto, puerpério e da criança”, financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que foi realizado em duas fases.

A seleção das mães participantes deste estudo foi realizada na segunda fase da coleta do estudo maior, envolvendo as mães atendidas em uma maternidade referência para partos de gestantes de baixo risco em um município da região Sul do Brasil. Os critérios de inclusão adotados nesta etapa foram: mães que realizaram o parto na maternidade de baixo risco e que receberam atendimento exclusivo pelo SUS; foram excluídas mães que não utilizavam as unidades de atenção básica para acompanhamento da criança. 

As entrevistas foram realizadas no domicílio das mães depois de esclarecimentos sobre os objetivos da pesquisa, do aceite da mãe com a garantia do anonimato e da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. 

A coleta de dados ocorreu no período de janeiro a julho de 2018, por meio de entrevista semiestruturada. As questões norteadoras foram: 1) Você recebeu visita da equipe de saúde na primeira semana de vida do(a) seu (sua) filho(a)? Conte-me sobre essa visita. 2) Depois que recebeu alta da maternidade, como foi o seu acompanhamento e do bebê pelo serviço de saúde no primeiro mês após o parto? 3) Até agora (depois dos primeiros 30 dias pós-parto até o 6º mês), conte me como aconteceu o acompanhamento do seu bebê pelo serviço de saúde. 4) Comente sobre o acesso à Unidade Básica de Saúde (UBS) para realizar a puericultura/avaliação do(a) seu (sua) filho(a)? Com que frequência? Por qual profissional? 

A duração média das entrevistas foi de 50 minutos, considerando a interação inicial e a entrevista, todas gravadas em aparelho celular Android. Ao término, solicitava-se à mãe que ouvisse a gravação, garantindo-lhe o direito de alterar as informações, caso considerasse necessário.

Schütz propõe uma investigação social por meio da pesquisa qualitativa para avaliar o comportamento das pessoas no seu mundo cotidiano. Essa compreensão vem se tornando um sinalizador do cuidado em saúde, visto que a pesquisa qualitativa busca o aprofundamento do objeto em estudo(7-8). Deste modo, buscou-se o aprofundamento dos “motivos por que” e “motivos para”. 

Os “motivos por que” estão relacionados às realizações passadas, já concluídas, e que podem influenciar ações atuais. Com base nesse contexto, obteve-se o acesso ao cotidiano das mães nos primeiros seis meses de vida do filho com respeito à assistência recebida na atenção primária. Já os “motivos para” estão relacionados às expectativas quanto à assistência que desejavam ter recebido.

Para a organização e análise do material qualitativo, cumpriram-se os seguintes passos: 1°- leitura atentiva e criteriosa de cada depoimento na íntegra para apreender o sentido global da experiência vivida pelas mães; 2°- releitura de cada depoimento para identificar aspectos comuns que expressam os conteúdos relacionados aos “motivos por que” e “motivos para”; 3°- agrupamento dos aspectos comuns conforme convergência de conteúdos para composição das categorias concretas; 4°- análise das categorias para compreensão da experiência vivida pelas mães; 5°- constituição do tipo vivido a partir do conjunto de “motivos por que” e “motivos para” expressos na análise das categorias; 6°- discussão do tipo vivido à luz da Fenomenologia Social(8).

O estudo foi norteado pelos princípios da Resolução do Conselho Nacional de Saúde 466/12, que regulamenta pesquisas envolvendo seres humanos. Os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e a pesquisa foi realizada após a aprovação por Comitê de Ética em Pesquisa, Parecer: 2.053.304 e CAAE: 67574517.1.1001.5231. Para preservar o anonimato das mães, nas descrições das falas se utilizou a Letra M de mãe seguida do número correspondente à ordem de realização das entrevistas.

RESULTADOS

Foram selecionadas para participar deste estudo 36 mães agrupadas em cinco grupos de acordo com a região de moradia. Dessas mães, foram excluídas 6 por mudança de localidade, 5 por indisponibilidade e 6 por não terem atendido a cinco ligações telefônicas e a duas visitas ao domicílio. Portanto, após esse processo, a amostra foi constituída por 19 mães, distribuídas no município da seguinte forma: região sul 4; norte 9; leste 3; centro 1; e oeste 2. 

Em relação à caracterização das mães participantes, a média de idade ficou entre 15 e 36 anos. No que tange à raça, 9 (48%) se autodeclararam negras e pardas. Quanto à escolaridade, 6 (30%) tinham ensino superior incompleto, e 5 (29%) ensino médio completo. Em relação ao estado civil, 15 (81%) eram casadas ou em união estável. Quanto à ocupação, 12 (67%) não exerciam atividades remuneradas.

Da análise das falas das participantes emergiram duas unidades temáticas, sendo a primeira referente aos “motivos por que”: “Vivenciado o acompanhamento do filho pela Atenção Primária nos primeiros seis meses de vida (Visita domiciliar na primeira semana de vida; Seguimento do filho pela Atenção Primária até o sexto mês de vida); a segunda referia-se aos “motivos para”: Desejos e expectativas frente à assistência dada ao filho pela atenção primária (Almejando a proximidade com os profissionais e a unidade de saúde).

Vivenciado o acompanhamento do filho pela Atenção Primária nos primeiros seis meses de vida (“motivos por que”)

Entre os “motivos por que”, apreendeu-se o concreto vivido pelas mães referente à assistência recebida na atenção primária.

Visita domiciliar na primeira semana de vida

A visita domiciliar realizada pelos profissionais de saúde da atenção primária deve ocorrer na primeira semana de vida do recém-nascido, logo que o binômio receba alta hospitalar, principalmente nas situações em que o binômio não comparece à UBS na primeira semana de vida do recém-nascido. Pelos relatos de vivências de mães que tiveram a experiência de receber a visita domiciliar, foi possível identificar que, em muitas ocasiões, essa visita não ocorreu como preconizado pelo Programa Rede Mãe Paranaense (PRMP), pois os profissionais avaliaram a criança ou somente a mãe; em outros momentos, não ocorreu a avaliação e identificação de fatores de risco, como o risco do desmame precoce e a necessidade de orientações referentes ao aleitamento; em algumas situações, os profissionais somente perguntaram se estava tudo bem, porém com pouco aprofundamento nas orientações.

Recebi sim, da enfermeira e das auxiliares que vieram fazer a visita. [...] Olharam o seio para ver se não tinha nenhuma rachadura, viram se o bebê estava pegando o seio, [...] viram também o umbiguinho do bebê para ver se eu estava fazendo a higiene, tive toda essa orientação. (M 1)

Sim, recebi duas visitas. Elas chegaram, mediram, viram certinho como que eu estava fazendo a higienização da nenê. (M 3)

Sim, olharam o bebê, deram orientação porque estava calor, falaram para eu não deixar com muita roupa e explicaram coisas mais de cuidado. (M 5)

As enfermeiras vieram. Elas olharam o neném e me examinaram também. [...] (M 16)

Recebi visita em casa. Acho que foi a enfermeira. Ela olhou a bebê pegando o peito, mediram minha pressão, ouviu o coração do bebê. (M 17)

Veio a agente comunitária. Acho que veio uma enfermeira junto com ela [...] só veio aqui perguntar se eu estava bem. (M 19)

Algumas mães levaram seus filhos até a UBS antes da chegada da equipe ao seu domicílio.

Não, fui eu que levei no posto [...] porque eu queria marcar as consultas dela, eu saí da maternidade e já quis ir atrás, então nem deu tempo deles irem em casa. (M 6)

 [...] ninguém do posto veio na primeira semana, eu recebi a alta no domingo e na segunda-feira já fui levar meu filho no posto, pois ele estava “amarelinho”, então elas já agendaram as consultas e por isso não vieram em casa. [...] (M 8)

Nenhuma pessoa do posto veio em casa. Tive que levar minha filha de volta na maternidade para fazer o teste da orelhinha, do pezinho, do olhinho, pois quando recebi alta não tinham os doutores que fazem esses exames, e depois fui ao posto marcar as consultas, mas ninguém nunca foi em casa não. (M 9)

Não, ninguém veio em casa [...] o pessoal do posto tinha ido um dia antes da minha alta, quando eu ainda estava na maternidade; daí eles deixaram um recado com meu marido com o dia da consulta para levar o meu filho lá para passar pela pediatra e fazer as vacinas. (M11) 

Todavia algumas mães participantes deste estudo referiram que esta visita não ocorreu, como se pode observar nos depoimentos a seguir.

 Não recebi nenhuma visita, nem eu, nem meu filho. Fui eu que levei no posto (M 4)

[...] ninguém veio em casa. Eu procurei o posto de saúde [...] (M 7)

Não, ninguém. Fui eu que levei ele no posto, ninguém veio em casa (M 10)

Não recebi visita em casa, mas fui orientada na maternidade que, assim que tivesse alta, deveria levá-lo (bebê) no posto. (M12)

Não, com dezessete dias eu fui ao postinho, fizeram a puericultura nele, fizeram alguns exames, passou pela pediatra, tomou vacina. (M14)

Não recebi visita em casa do pessoal do posto, porque meu filho nasceu na semana do Natal, então já viu, ninguém ia vir. (M18)

Em relação ao acompanhamento dessas crianças pela atenção primária, as mães contaram que vivenciaram a puericultura de seus filhos, porém algumas enfatizaram a falta do profissional pediatra nos atendimentos, substituído pelo médico clínico geral, conforme os relatos a seguir.

Acompanhamento da criança pela Atenção Primária até o sexto mês de vida

Algumas crianças receberam o acompanhamento de equipes multidisciplinares, por meio de consultas compartilhadas com médico clínico geral, intercaladas com enfermeiros, mantendo o preconizado pelo PRMP de consultas mensais.

[...] no momento estamos sem a pediatra no posto, ele está passando com o clínico geral; um mês passa com essa médica que não é pediatra, e outro mês com a enfermeira, e tem um grupo para mães na igreja (puericultura compartilhada). (M 1)

[...] no posto tem pediatra; ela passa um mês com ela e outro mês com a enfermeira; também passa por consulta com o dentista. Mas agora não está agendando mais, pois ela vai fazer seis meses, mas antes estava de mês em mês. Eles pesavam, mediam e olhavam se estava tudo bem, mas agora é para eu levar só se ela tiver alguma coisa. (M 2)

[...] ela tem acompanhamento no posto todo mês, ontem mesmo ela teve puericultura com a enfermeira. Um mês é puericultura com a enfermeira, e no outro com o pediatra; as vacinas dela também estão em dia. (M 3)

 [...] a gente vai uma vez por mês no posto para fazer a puericultura, a consulta com a doutora é mais espaçada agora; no começo era mais pertinho, a gente tinha dificuldade com o peso, depois controlou o peso, então hoje acompanha mais com as meninas (enfermeiras); e com a doutora, um pouquinho mais espaçado. (M 8)

Como não tem pediatra mais ali no posto, agora que eles marcaram, mas é clínico geral. Mas pediatra mesmo, assim rotina, não. [...] A enfermeira (acompanha a puericultura). Faz conjunta (puericultura compartilhada) tem um mês que é conjunta, no outro é individual. [...] (M 10)

Outras crianças tiveram atendimento, porém fora do intervalo preconizado, conforme os relatos a seguir.

[...] agendou a primeira consulta quando ele tinha mais ou menos um mês; foi com a enfermeira e foi intercalando com o médico clínico geral, pois não tem pediatra; como ele teve problema com o peso, ele teve bastante acompanhamento até os quatro meses, todo mês [...] (M 4)

[...] acho que passei com meu filho umas três vezes em consulta com a pediatra; nestes seis meses, com a enfermeira foi só a primeira consulta [...] (M 17).

[...] Então, eu o levei para passar pelo pediatra, umas duas vezes nestes seis meses, e passou uma vez só com a enfermeira e nunca mais [...] (M 18)

Já em relação às reflexões maternas frente às expectativas da assistência ao filho na Atenção Primária, destacou-se o desejo pela proximidade com os profissionais de saúde, com consultas mais frequentes e redução do tempo de espera para atendimento.

Desejos e expectativas frente à assistência à criança recebida pela atenção primária (“motivos para”)

Almejando proximidade com os profissionais e com a unidade de saúde 

Algumas mães elogiam o serviço de saúde, como se pode observar.

[...] a saúde não é ruim, o atendimento do posto não é ruim. (M 13)

[...] eu desejo que eles (profissionais) sejam sempre assim, eu sei que tem os que são bons e os que não são, mas os que me atenderam, graças a Deus, foram muito atenciosos. [...] (M 11) 

Elas reconhecem, porém, que há falta de profissionais para a assistência prestada.

[...] acho que precisava de mais médicos nos postos de saúde, para ter mais atendimento, porque a procura é grande, mas não tem profissional. [...] (M 9)

[...] muitas pessoas que usam o benefício e poucas pessoas para atender [...] é preciso ter mais profissionais e que eles estejam comprometidos em nos ajudar. (M 13)

 [...] na área da saúde, às vezes não tem tanta especialidade, na hora que a gente procura nas UBS, é muita gente para poucos médicos atender [...] (M 14)

Algumas mães reclamam a falta de periodicidade no atendimento, além da demora para conseguir atendimento. 

[...] No parto não tenho do que reclamar, agora depois do parto acho que deveriam ter mais acompanhamento da mãe e da criança também [...]. (M 2) 

[...] mais agilidade com certeza, pois os profissionais são muito parados e o atendimento demora muito [...]. (M 19)

 

DISCUSSÃO

Diante da importância do seguimento da criança — que deve ser iniciado na primeira semana após a alta hospitalar, através da visita domiciliar — e dos relatos maternos relacionados a esta assistência ao filho, foi possível compreender o mundo vivido dessas mães por meio dos “motivos por que”.

A visita deve ocorrer entre cinco e sete dias após a alta da maternidade, contudo algumas mães não puderam vivenciar esta assistência, referindo que o primeiro contato com a atenção primária ocorreu quando elas procuraram a UBS para os agendamentos. 

O período neonatal precoce, correspondente à primeira semana de vida, representa um período de grande vulnerabilidade para o recém-nascido, portanto a atenção à saúde da criança deve ser voltada para identificação e enfrentamento dos principais problemas e condutas preventivas, a fim de garantir o seu adequado crescimento e desenvolvimento(9).

O cuidado integral e multiprofissional ao recém-nascido na primeira semana após o parto tem, portanto, a finalidade de identificar sinais de risco que possam comprometer o seu crescimento e desenvolvimento saudável, visa orientar as mães acerca dos cuidados com o neonato, incentivar o aleitamento materno, oferecer apoio às dificuldades apresentadas, de modo a contribuir para a redução da morbimortalidade infantil(9).

No dia da alta, a maternidade onde nasceu o bebê deve entregar o Cartão (ou Caderneta) de Saúde da Criança com os dados registrados sobre as condições de saúde da mãe e do recém-nascido e comunicar a UBS de referência. A partir desse comunicado, a equipe de saúde, em especial o enfermeiro, deve programar a visita domiciliar(10). A visita domiciliar do enfermeiro possui como objetivo observar, avaliar e orientar a mãe sobre os cuidados com a criança, trabalhando hábitos e relações familiares, bem como cuidados com a mãe no período puerperal. O que veio de encontro com os achados neste estudo, visto que a mães representaram de modo positivo as ações desenvolvidas pelo enfermeiro durante visita domiciliar. Todavia, apesar dos benefícios e da importância da visita logo após a chegada da criança ao seu domicílio, algumas mães não vivenciaram essa assistência. 

Conforme instituído pelo PRMP, a equipe de saúde da Atenção Primária é responsável pela assistência das crianças residentes na sua área de abrangência, devendo realizar visita domiciliar precoce para puérperas e recém-nascidos que tiveram alta hospitalar até o 5º dia e agendar consulta na UBS(11).

Em um estudo realizado em três maternidades no norte da França — que participam da Iniciativa Hospital Amigo da Criança (IHAC) e possuem diretrizes semelhantes às do Brasil quanto ao acompanhamento da criança após a alta da maternidade —, identificaram-se as mesmas dificuldades deste estudo em relação ao atendimento dos profissionais no domicílio e a não realização da visita domiciliar: mesmo com a recomendação de uma visita domiciliar entre o sexto e o décimo dia de vida, esta não ocorre(12).

Esses achados corroboram um estudo que objetivou descrever ações de enfermeiros da Estratégia Saúde da Família (ESF) quanto à primeira semana no cuidado ao recém-nascido. Observou-se que as ações identificadas na primeira visita ao bebê se basearam nas orientações às mães acerca dos cuidados básicos ao recém-nascido, aleitamento, testes de triagem neonatal, imunização e puericultura, bem como avaliação da puérpera; entretanto algumas vezes eram realizadas fora do período recomendado e com orientações incompletas e desatualizadas(9)

Por outro lado, algumas mães se sentiram contempladas com a presença dos profissionais em seus domicílios, referindo que receberam diversas orientações, bem como foram assistidas integralmente.

No que tange ao acompanhamento do crescimento e desenvolvimento da criança, emergiram inúmeras dificuldades, como o não cumprimento da periodicidade de acompanhamento e a ausência de profissionais especializados. Têm-se desenvolvido estratégias a respeito, como intercalar puericulturas individualizadas realizadas por clínicos gerais e enfermeiros associadas a puericulturas compartilhadas, das quais geralmente participa equipe multiprofissional vinculada ao Núcleo de Apoio à Saúde da Família.

É um quadro semelhante ao encontrado em um estudo que avaliou o acompanhamento do crescimento infantil em UBS do município de Queimadas, Paraíba, que identificou que as ações de acompanhamento do crescimento não estão efetivamente consolidadas, em razão da existência de ações realizadas em discordância com o que preconizam as políticas públicas de atenção à saúde da criança, de acordo com o Ministério da Saúde, apontando problemas como falta de profissionais e ausência de capacitação(13).

Um outro estudo, com o objetivo de analisar as ações de cuidado realizadas pelo enfermeiro durante consultas de puericultura, apresentou resultados próximos ao constatar que as ações desenvolvidas pelos enfermeiros nas consultas de puericultura estão muito aquém do estabelecido pelas diretrizes de atenção à saúde da criança(14).

A Atenção Primária deve organizar as ações de acompanhamento por meio da puericultura, que possibilita entender a situação de saúde da criança tendo como referência o serviço mais próximo da sua residência, com o objetivo de detecção precoce de risco para possíveis encaminhamentos e/ou acompanhamento e monitoramento mais frequente pela equipe de saúde dessa unidade(15).

O vínculo entre a equipe da Atenção Primária e a família para o acompanhamento da criança deve, preferencialmente, ser iniciado desde o pré-natal, para que a continuidade seja estabelecida. O acompanhamento do crescimento e desenvolvimento faz parte da atenção integral à saúde da criança, com o registro sistemático, na Carteira de Saúde da Criança, das curvas de peso, comprimento, perímetro cefálico, índice de massa corporal, marcos do desenvolvimento neuropsicomotor, intercorrências, vacinação, orientações no cuidado (alimentação, higiene e prevenção de acidentes) e identificação de violência. Quanto à periodicidade, deverá ocorrer mensalmente, até o sexto mês de vida(11,16).

A atuação da equipe multiprofissional, com ênfase nas ações do enfermeiro junto às gestantes e puérperas, é primordial para integrar o recém-nascido aos serviços de saúde, ampliar as condutas para além da UBS, empoderando as mães para que partilhem suas dúvidas e dificuldades em relação às práticas seguras de cuidado à criança(17).

O contexto de experiências vivenciadas pela mãe frente ao seguimento do filho nos primeiros seis dias de vida pela atenção primária possibilitou o surgimento de expectativas (“motivos para”).

As mães acreditam que há necessidade de mais profissionais no sistema de saúde, com capacitação para atuar nos serviços, compromissados em realizar as ações necessárias para melhoria da qualidade da assistência. Elas também almejam maior proximidade com os profissionais e agilidade no tempo de espera por atendimento.

As UBS necessitam, entre outras ações, de uma força de trabalho adequada para alcançar o objetivo de reduzir as barreiras no acesso da população à Rede de Atenção à Saúde. A disponibilidade de profissionais de saúde com competências relevantes, em número suficiente, alocados onde são necessários, é essencial para o gerenciamento e para a prestação dos serviços de saúde em todo o território nacional. O desequilíbrio na força de trabalho, assim como a má distribuição geográfica e, em particular, a falta de recursos humanos qualificados nas regiões rurais ou carentes, é um problema social e político que afeta quase todos os países. Associado à desigualdade socioeconômica, este desequilíbrio reduz o acesso da população aos serviços de saúde(18).

Portanto, os desafios fundamentais a serem enfrentados, quando se objetiva alcançar um patamar mais eficiente de atenção à saúde, podem ser sintetizados em quatro pontos centrais: financiamento, gestão, acesso e qualificação dos profissionais. Deste modo, há a necessidade de politicas consistentes e continuas(19)

Em um estudo sobre a influência da ESF no uso de serviços de saúde por crianças brasileiras menores de cinco anos de idade, verificou-se que as crianças residentes em domicílios com cobertura da ESF têm piores condições socioeconômicas, sanitárias e de saúde, porém elas tiveram estimativas de consultas médicas e de internações hospitalares próximas às de crianças sem esse vínculo assistencial, o que sugere que a ESF pode corrigir desigualdades individuais e contextuais que impactam a saúde dos brasileiros ao favorecer o uso de serviços de saúde por crianças mesmo quando possuem piores condições de vida e saúde(20).

Esta pesquisa teve como limitação o intervalo de tempo de coleta de dados referente à vivência destas mães com a visita domiciliar na primeira semana, pois, como a coleta ocorreu próximo aos seis meses de vida, algumas recordações não estavam tão avivadas, o que não favoreceu o aprofundamento desta temática.

 

CONCLUSÃO

O desenvolvimento deste estudo possibilitou compreender como as mães vivenciam o acompanhamento do crescimento e desenvolvimento de seu filho pela atenção primária. A implementação do PRMP no cuidado à criança é importante para se realizar uma assistência integral no seu primeiro ano de vida. 

Identificaram-se, porém, fragilidades nas ações das equipes quanto à assistência a essa população, como o não cumprimento da primeira visita domiciliar à criança até o quinto dia de vida. E quando ocorreu a visita, ela não foi realizada segundo o PRMP, já que houve orientações incompletas e fragmentadas.

Em relação às consultas de puericultura, as mães, em sua maioria, vivenciaram esta assistência, porém alguns problemas foram relatados, como ausência de médicos pediatras, periodicidade inadequada das consultas. Por outro lado, ressaltaram o acompanhamento pelo enfermeiro.

A despeito desses aspectos que merecem ser discutidos, algumas mães avaliam as consultas de puericultura e a capacidade dos profissionais como excelentes, respondendo a suas expectativas. Porém a maioria almeja maior contato com os profissionais atuantes no cuidado à criança na atenção primária.

Percebe-se a necessidade de uma ação conjunta de educação permanente com os profissionais das UBS e gestores no sentido de contemplar as diretrizes preconizadas, fornecendo cuidado integral em saúde a essa população. Também são necessários estudos que abordem as percepções das mães e dos usuários dos serviços de saúde, de forma a tornar mais evidente essa estratégia de cuidado e, assim, contribuir para o acompanhamento da criança.

REFERÊNCIAS

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Recebido: 25/09/2020

Revisado: 06/11/2020

Aprovado: 01/12/2020