ORIGINAL

 

Sentimentos da equipe de enfermagem diante da COVID-19 no cuidado aos primeiros pacientes: estudo descritivo

 

Antonio Marcos Tosoli Gomes1, Theia Maria Forny Wanderley Castellões2, Virginia Paiva Figueiredo Nogueira1, Sergio Corrêa Marques1, Pablo Luiz Santos Couto3, Magno Conceição das Mercês4, Manuela de Mendonça Figueiredo Coelho5, Michell Ângelo Marques Araújo5

 

1 Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Enfermagem, RJ, Brasil

2 Complexo Americas Medical City, RJ, Brasil

3 Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Programa de Pós Graduação em Enfermagem e Saúde, Brasil

4 Universidade do Estado da Bahia, BA, Brasil

5 Universidade Federal do Ceará, CE, Brasil

 

 

RESUMO

Objetivos: analisar os sentimentos e os conflitos experienciados pelos profissionais de enfermagem no cuidado aos pacientes com COVID-19; analisar a implementação do cuidado de enfermagem aos primeiros pacientes com COVID-19 em uma unidade de terapia intensiva na cidade do Rio de Janeiro. Método: pesquisa qualitativa, descritiva e exploratória. Participaram 71 profissionais da equipe de enfermagem que desenvolvem atividades laborais no enfrentamento à COVID-19 numa unidade de terapia intensiva na cidade do Rio de Janeiro, através de coleta on-line. Para as análises utilizaram-se estatística descritiva e análise de conteúdo temática. Resultados: a análise de conteúdo revelou sentimentos diante do vírus desconhecido, medo de se infectar, medo de perder a vida e os aspectos assistenciais diante do fenômeno COVID-19. Conclusão: a enfermagem apresentou sentimentos e conflitos, como insegurança e medo. O grupo construiu conhecimentos e habilidades para dar conta da realização deste cuidado na pandemia, incluindo aspectos criativos e de construção coletiva.

 

Descritores: Infecções por Coronavírus; Cuidados de Enfermagem; Equipe de Enfermagem.

 

INTRODUÇÃO

O ano de 2020 se apresentou, em seus primeiros meses, como um desafio à saúde pública mundial pelo surgimento do Novo Coronavírus (Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2 - SARS-CoV-2), causador da COVID-19 (do inglês coronavirus disease), que foi relatada em um primeiro momento na China. Em curto período de tempo, espalhou-se para todo o mundo, causando mortes, falências em sistemas de saúde e desafios para o processo de cuidado em saúde. Da pneumonia de causas desconhecidas localizada em um território, passou a ser considerada como uma emergência de Saúde Pública de importância Internacional e, por fim, em março de 2020, foi declarada como uma pandemia pela Organização Mundial da Saúde(1).

Além do acometimento físico e das sequelas oriundas da infecção ou das intervenções em saúde, não se tem ainda completa clareza do seu impacto na saúde mental em nível mundial. Do mesmo modo, as consequências sociais, comunitárias, econômicas e ambientais ainda estão em processo de análise e de compreensão, constituindo-se como um grande desafio. O fato de ser uma infecção transmitida diretamente entre os humanos com maior incidência através da via respiratória explica sua fácil disseminação e difícil contenção.

Como consequência, a rápida disseminação acarreta pacientes sintomáticos e assintomáticos, com variação de sua incidência nas populações humanas. A situação se torna ainda mais complexa quando se considera que não existem terapias que demonstrem eficácia, e o processo de vacinação está aquém do que seria necessário para o seu enfrentamento(2). Uma de suas características é a diversidade de manifestações clínicas, sendo em muitos casos com evolução rápida e grave, exigindo assistência em unidades de terapia intensiva.

Diante deste quadro, torna-se importante voltar o olhar para o cotidiano assistencial das unidades de terapia intensiva, assim como buscar compreender o impacto assistencial, tecnológico, técnico, humano, administrativo e interpessoal em função do processo de acolhimento e de cuidado aos primeiros casos da infecção. O desafio do novo, a necessidade de desenvolver novos conhecimentos e habilidades, a insegurança profissional, os sentimentos diante da possibilidade de adoecimento, o uso de equipamentos de proteção individual de maneira mais constante e imprescindível e o drama da possibilidade de ser o vetor de transmissão da infecção para o seio familiar e social são algumas das questões que podem ser elencadas.

É necessário destacar o desafio da pressão psicológica sobre os profissionais de saúde no contexto pandêmico, assim como a realidade de maiores turnos de trabalho, a exaustão física e emocional, a elevada possibilidade de transmissão no meio hospitalar e a necessidade de decisões para as situações inesperadas que podem ocorrer(3). Para a equipe de enfermagem, que está sempre muito próxima ao paciente e mantém o seu cotidiano orgânico e psíquico mais próximo possível do normal, a COVID-19 é um complexo biológico, simbólico, biomédico, humano e profissional como poucos no último século.

A partir dos primeiros casos, em diferentes partes do mundo, considera-se que é crescente o número de contaminados, de óbitos e de casos suspeitos entre os profissionais de saúde no Brasil(4). Em abril de 2021, o Conselho Federal de Enfermagem apontou que 776 enfermeiros perderam suas vidas em função da COVID-19 desde o início da pandemia, sendo os meses de abril e maio de 2020 e março de 2021 os que apresentaram maiores ocorrências de morte. O mês de abril de 2021, no entanto, apresentou queda de mais de 70% no número de óbitos, possivelmente em função do avanço da vacinação na categoria, além de outros fatores secundários(5).

Frente a este contexto, definiu-se como objetivos deste estudo analisar os sentimentos e os conflitos experienciados pelos profissionais de enfermagem no cuidado aos pacientes com COVID-19 e analisar a implementação do cuidado de enfermagem aos primeiros pacientes com COVID-19 em uma unidade de terapia intensiva na cidade do Rio de Janeiro.

 

MÉTODO

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, descritiva e exploratória. Procurou-se trabalhar este tipo de pesquisa a partir de algumas de suas bases teóricas, como (1) a construção de significados e sentidos à realidade social, (2) a necessidade de colocar em evidência o caráter processual e reflexivo da realidade, (3) a concretude da vida cotidiana que ganha importância e contornos a partir dos significados subjetivos e (4) a realidade de comunicabilidade da realidade social que permite compartilhar esta mesma realidade, bem como sua construção coletiva(6).

Este artigo faz parte de um projeto guarda-chuva, sendo que os dados usados para a sua confecção foram coletados com 71 profissionais, sendo 33 enfermeiros e 38 técnicos de enfermagem, que desenvolvem suas atividades laborais com as vítimas da COVID-19 desde os primeiros momentos da pandemia até a atualidade, em uma unidade de terapia intensiva de um hospital privado da cidade do Rio de Janeiro. A coleta de dados ocorreu através de um formulário do Google armazenado virtualmente em seu vínculo com o e-mail do Grupo de Pesquisa. O período de coleta de dados foi de 15 a 25 de maio de 2021.

O formulário de coleta de dados se constituiu de duas partes, o de caracterização dos participantes e a resposta a uma pergunta aberta. Na primeira parte foram coletadas as seguintes variáveis: profissão, escolaridade e sexo. Na segunda parte, solicitou-se que os participantes respondessem à seguinte pergunta: Para você, como foram os primeiros momentos cuidando de pessoas com a COVID-19? Os participantes demoraram, em média, 10 minutos para responderem, e os dados foram salvos em um arquivo tipo Microsoft Excel for Windows®, com todas as respostas fornecidas.

A análise dos dados de caracterização do grupo foi realizada por meio da análise estatística simples e descritiva, de modo a se entender quem são os participantes do estudo. Quanto à pergunta aberta, adotou-se a análise de conteúdo temática(7), com o propósito de acessar os conteúdos presentes na discursividade exposta no formulário virtual. A análise de conteúdo pode ser definida como “um conjunto de técnicas de análise das comunicações”(7), trabalhando a palavra, as condições de sua produção e a prática da língua dos emissores. Para isso, lança mão da semântica e da lexicologia, de modo a decodificar com coerência os signos, significantes e significados presentes(7).

Destaca-se que qualquer material, escrito ou falado, é susceptível a sofrer análise de conteúdo. Nesse processo, releva-se o número de pessoas envolvidas, a natureza do código, o suporte da mensagem, a influência e o contexto social e psicológico do produtor da mensagem e do seu receptor(7). Adotou-se, como unidade de registro, o menor trecho discursivo que apresentasse qualquer conteúdo relativo aos objetivos do estudo, e cada um destes trechos foi relacionado a um participante específico, identificado pelo sistema alfanumérico (P. 1 refere-se ao participante 1 e assim sucessivamente).

Em seguida, as diferentes unidades de registro foram agrupadas em função de suas afinidades e semelhanças temáticas, gerando as quatro categorias que compuseram o estudo e que serão aprofundadas a seguir. Durante todo o processo de operacionalização da pesquisa, os autores cumpriram as normas e critérios de rigor da qualidade, ao guiarem-se pelas diretrizes do Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research (COREQ). O projeto sofreu análise do comitê de ética e foi aprovado sob o CAAE número 31169120.1.0000.5282 e parecer número 4.021.453. Todos os pressupostos éticos da Resolução 466/2012 do Ministério da Saúde foram adotados e devidamente obedecidos.

 

RESULTADOS

A caracterização dos participantes apontou que 81% (58) deles são mulheres, 46% (33) são enfermeiros e 54% (38), técnicos de enfermagem. Do total de participantes, 39% (28) possuem, como maior nível de escolaridade, a especialização; 27% (9), a graduação e 33% (12), o ensino médio.

A análise de conteúdo se estruturou a partir de 238 unidades de registro que foram agrupadas em quatro categorias que serão aprofundadas a seguir: (1) os sentimentos diante da possibilidade de atendimento aos primeiros casos de COVID-19, (2) o enfrentamento do desconhecido e os novos conhecimentos para realizá-lo, (3) a possibilidade de se infectar, infectar os familiares e de perder a vida no processo de cuidado e, por fim, (4) os aspectos assistenciais diante do fenômeno COVID-19.

Com relação aos sentimentos diante da possibilidade de atendimento aos primeiros casos da COVID-19, destacam-se aqueles relacionados às incertezas, insegurança, medo, sofrimento, desespero, impotência, tristeza e inutilidade, como demonstram os trechos discursivos citados a seguir:

 

Um momento muito difícil, cheio de incertezas, insegurança, medo e sofrimento. (P. 2)

Foi assustador, uma mistura de sentimentos, medo, incertezas. (P.5)

Medo do contágio, medo da morte, desespero, insegurança. A cada alta, uma motivação pra prosseguir; os óbitos muito sentidos; a sensação de que aquilo ali não acabaria. Impotência diante das mortes, das manifestações do vírus. Sensação de inutilidade junto ao alento pelos que salvamos! (P.25)

Foi um momento de desespero ver tantas pessoas doentes. (P.34)

Foram momentos de medo e tristeza. (P.68)

 

Com relação à segunda categoria, o enfrentamento do desconhecido e os novos conhecimentos para realizá-lo, mostra-se a realidade de lidar com uma infecção nova e diferente, ameaçadora, contagiosa e que desafiava os conhecimentos e as habilidades manuais dos profissionais:

 

Tenso. O medo era muito grande! Muito se falava sobre a doença, mas ninguém sabia de fato o que poderia acontecer! Na realidade, tínhamos pacientes graves, que a cada hora apresentavam características novas, sinais e sintomas desafiadores. (P.18)

Muito medo do desconhecido, espantado com número de mortes e pela rapidez do agravamento dos pacientes. (P.20)

Desesperador. Medo do novo, dos riscos. Muito difícil. (P.31)

Sombrio e conflituoso. Afinal, não tínhamos a certeza de como lidar com a doença. (P.57)

Foram momentos de insegurança, de não saber o que estava tratando, de não saber o que era de fato a COVID-19. (P.63)

Cansativo, difícil, estava aprendendo a cuidar de uma doença nova, que não tinha nenhum conhecimento, desbravando caminho para o futuro. (P.32)

 

A terceira categoria diz respeito à possibilidade de se infectar, infectar os familiares e de perder a vida no processo de cuidado; caracteriza-se por estar na base das anteriores e ganhar maior concretude neste momento. Há, neste caso, o enfrentamento da possibilidade de se infectar no exercício do cuidado de enfermagem e, como complicador, infectar outras pessoas ou apresentar agravamento da situação, com a morte como um cenário possível.

 

Tive medo, medo da morte, medo de contaminar os outros, medo da solidão. Tive muito medo de continuar fazendo o que tanto amo. (P.16)

Tive muito medo de pegar a doença e levar pra minha família. (P.17)

Foi muito difícil. Medo de me contaminar, de contaminar minha família. Além disso, nunca vimos tantos pacientes graves ao mesmo tempo. Pessoas de todas as idades e muitas vezes evoluindo a óbito mesmo com todo o cuidado prestado. (P.26)

Entrei em pânico, pensei que iria morrer e deixar minha filha! (P.29)

Saber que eu estava colocando a minha vida em risco em prol de salvar vidas. (P.9)

 

A quarta categoria, referente aos aspectos assistenciais diante do fenômeno da COVID-19, aborda os desafios da equipe de enfermagem na implementação do cuidado a pacientes graves no contexto de uma doença desconhecida e ameaçadora. Destacam-se aspectos como o início da carreira profissional no enfrentamento da pandemia; a tensão entre a oferta do conforto e o equilíbrio afetivo e psicológico dos profissionais; as mudanças constantes das indicações terapêuticas e a necessidade de uso da paramentação como uma das principais tecnologias de proteção, mas diferente de tudo que se tinha até então:

 

Uma responsabilidade enorme; minha primeira experiência na Enfermagem foi no início da pandemia. Me sentia um pouco perdido por ser tudo novo, mas conseguia levar porque havia uma equipe excepcional ao meu lado para me ajudar. (P.11)

O sentimento de medo tomou conta de mim, me senti muito vulnerável, fiz o meu melhor, tive empatia com o paciente, tive muito medo, chorei, tive fobia. Teve momentos que minha vida passou como um vídeo em minha mente, isso aconteceu no primeiro dia de plantão no setor de isolamento, no momento da primeira paramentação. Foi muito difícil; pedi a Deus pra me proteger. Aquele dia demorou tanto pra passar, senti meu coração acelerado. Quando enfim acabou o plantão, nem acreditei que eu, mesmo com medo, cuidei e chorei pelos meus pacientes, cuidei com carinho e com muito amor. (P.37)

Foi muito confuso no início, pois tínhamos condutas que mudavam a todo momento. (P.40)

Assustador; no início, todos tinham muito medo, e a paramentação era insuportável! (P.56)

Nunca vivi ou imaginei um cenário como o da covid; tive medo e chorei e pensei em nunca mais voltar no plantão. (P. 70)

O que mais me incomodou foram os EPIs. (P. 68)

 

 

Estas quatro categorias explicitam diferentes facetas dos sentimentos e conflitos experienciados pelos profissionais de enfermagem, bem como do processo do cuidado de enfermagem e do enfrentamento aos primeiros casos de COVID-19 no contexto de uma unidade de terapia intensiva.

 

DISCUSSÃO

O enfrentamento da realidade da COVID-19 e o cuidado aos pacientes que se apresentaram no início da pandemia se configuram, para os profissionais, um continuum que vai da reação afetiva ao contato que terá com os pacientes às demandas práticas da implementação do cuidado de enfermagem. Perpassam também pelo processo de enfrentar o desconhecido, construir novos conhecimentos para tal empreitada e considerar a possibilidade de se infectar com o vírus, infectar as pessoas que se ama e até mesmo falecer em função do cuidado realizado. O risco de contaminação e o desafio do bem-estar psicológico neste contexto são alguns dos elementos presentes em achados de outros estudos desenvolvidos no contexto da pandemia(8-9).

Neste sentido, considera-se que o mundo do trabalho, sua organização e seu desenvolvimento cotidiano se apresentam, neste momento de atendimento às pessoas com COVID-19, como sendo um “complexo monstruoso”(2) para os profissionais de enfermagem, constituindo-se como um desafio a ser integrado nas práticas cotidianas e superado com técnica, tecnologia, ciência, relações humanas de apoio, acolhimento e criatividade. Esta complexidade pode se apresentar de maneira ainda mais aguda na unidade de terapia intensiva, o que termina por gerar um quadro com tendência à gravidade considerável para os profissionais de enfermagem que atuam em seu contexto(3).

Com relação aos sentimentos diante da pandemia e do trabalho desenvolvido em seu contexto, destaca-se que todo este conjunto, que pode ser descrito como em ebulição, relaciona-se com a possibilidade de se contagiar, de adoecer e morrer, de levar a doença para o seio familiar e o grupo social e com os desafios constantes do cotidiano assistencial, inclusive com a possibilidade, de modo iminente e constante, da falência do sistema de saúde(8). Como consequência, tem-se, nos profissionais de saúde em geral e nos de enfermagem em particular, elevada ansiedade, agressão à saúde mental, depressão e estresse(2,10).

Algumas das causas desses sentimentos se relacionam à exaustão física e emocional, às pressões do mundo do trabalho, às construções simbólicas da pandemia nas mídias, à quantidade de pacientes nas unidades de saúde, ao enfrentamento constante de mortes, inclusive de companheiros laborais e à necessidade de afastamento da família(2,11). Uma questão interessante é a relação ambígua que os grupos sociais de convivência possuem com os profissionais: se, por um lado, eles os tem em alta estima e respeito; por outro, relatam um afastamento físico e concreto como fruto do medo de contaminação(2).

Um estudo desenvolvido na China(12) revelou que mais da metade dos profissionais de saúde apresentou problemas psicológicos gerais, e que os enfermeiros foram os profissionais com um percentual maior de comprometimentos. Ao mesmo tempo, esse estudo demonstrou que os profissionais que estiveram na linha de frente de atendimento à COVID-19 apresentaram maiores riscos para ansiedade, insônia e distúrbios gerais. Um estudo nacional, corroborando com esses achados, relatou alta presença de ansiedade e depressão entre enfermeiros e técnicos que atuam nos cenários de média e alta complexidade durante a pandemia de COVID-19(3).

Outra questão recorrente em diferentes estudos(8,13) é o alto risco de se contaminar no exercício laboral; como consequência, a possibilidade de se ver no lugar dos pacientes cuidados e de enfrentar o sofrimento físico, espiritual, pessoal e social que os profissionais tentam dar conta em seu cotidiano. Mas esse peso e esse “complexo monstruoso” adquire contornos ainda mais difíceis quando se considera a possibilidade de transmissão para a família e o círculo social, como se percebe de modo recorrente também nesta mesma discussão(14).

Esta questão do contato social com familiares e outras pessoas próximas pode se configurar como ambígua para os profissionais de saúde, uma vez que conviver com eles pode gerar ansiedade e outros desdobramentos em função do risco possível e silencioso de infectá-los, ao passo que a não convivência gera isolamento, solidão, falta de sentido e sentimentos ligados ao sofrimento mental. Um estudo desenvolvido no Brasil(3) apontou que profissionais que moram com familiares neste momento da pandemia possuem maior tendência à depressão.

Além do exposto, outros fatores apresentados como estressores para os profissionais de saúde foram trabalhar no cenário com agentes patogênicos de transmissão direta entre humanos, cuidar de pacientes graves e limitação de recursos e de leitos para cuidado(3). Aponta-se, em paralelo, que o perfil profissional da equipe de enfermagem em ser assistencial e trabalhar em unidades de atendimento crítico está relacionado a maior nível de ansiedade no desempenho das atividades(15).

Outros fatores estressores para os profissionais de saúde, apontados em outro estudo, mostraram, dentre estes, a necessidade de desempenhar novos papéis profissionais, de adotar novos protocolos e de desenvolver novas práticas em meio ao contexto tumultuado da pandemia no cuidado a pacientes graves; a necessidade de desenvolver cargas horárias expandidas para dar conta do momento, e a impossibilidade de ou limitação no acesso aos serviços de saúde mental para dar conta do sofrimento mental e psicológico(16).

Em função disso, torna-se fundamental e urgente o estabelecimento de cuidados à saúde mental, em diferentes modalidades e dimensões, para os profissionais da enfermagem que atuam na linha de frente de atendimento às pessoas com COVID-19(9). O cuidado de enfermagem, englobando aquele prestado em contexto de sofrimento, perdas e morte, necessita ser considerado como um espaço-tempo com potencial para gerar desgaste físico e psicológico, sofrimento subjetivo e espiritual e outros quadros mais complexos naqueles que os enfrentam(2).

Diante dessa situação, deve-se destacar a importância do resgate da discussão acerca da fadiga por compaixão no contexto da pandemia da COVID-19(17), uma vez que pode ser um evento comum e passar despercebido por sua não discussão. Fadiga por compaixão é uma síndrome que se caracteriza por um quadro de exaustão nas dimensões biológica, psicológica e social que acometem pessoas e profissionais que usam energia psíquica com atividades em forma de compaixão a outros seres humanos sem se sentirem recompensados por este processo de desgaste(18).

Essa compreensão ganha destaque importante para a equipe de enfermagem no contexto da pandemia, em função do seu esforço em promover um cuidado humano e de qualidade(9) e do seu exercício profissional que está atravessado de exigências multifacetadas. Esses atravessamentos podem ser a presença da dor, do sofrimento, de mortes, de diferentes perdas, das considerações desfavoráveis acerca do seu trabalho, a baixa remuneração e a sobrecarga de atividades no menor tempo possível(2).

A pandemia, além de todas as demandas técnicas, tecnológicas e administrativas-gerenciais, requer da equipe de enfermagem o desafio de estabelecer relações humanas e empáticas com os pacientes e suas famílias(8), de modo, inclusive, inovador, como, por exemplo, o uso do aparelho telefônico portátil do próprio profissional para que se realize contato visual e sonoro entre o paciente e seus familiares. Como desdobramento, há maiores chances de desenvolvimento de relações entre os profissionais e os familiares, criação de vínculos mais estreitos e duradouros e, como consequência, também de sofrimento emocional e psíquico.

Outro aspecto ainda a ser considerado, mesmo que os dados não o abordem de maneira importante, é o uso dos equipamentos de proteção individual por parte dos profissionais, o que é tido como um desafio, tanto em função de sua disponibilidade, quanto ao seu uso correto no cuidado e ao manuseio adequado na paramentação e na desparamentação(19). No contexto da pandemia, além do exposto e das características dos equipamentos utilizados, tornou-se necessário o desenvolvimento de tecnologias leves no cuidado de enfermagem para detecção de expressão facial do profissional por parte dos pacientes, para identificação do próprio profissional e de sua categoria pela equipe e para a diminuição do desconforto e do estresse presentes por usá-los em contextos tão particulares.

Como exemplos dessas ações de cuidado ao paciente e à equipe, pode-se citar o uso de crachás com fotos em tamanhos grandes e com rostos que expressassem alegria, que mostrassem seus filhos ou expusessem seus animais de estimação. Também foram usados cartazes presos aos EPI em que se escrevia o nome do profissional e se mostravam cenas de filmes ou fotos de artistas famosos.

Neste cenário, percebe-se a importante participação da enfermagem para o seu enfrentamento, como também ocorreu em outros momentos ao longo da história, em outras pandemias e momentos de instabilidade social, como as guerras, por exemplo(9).

De modo simultâneo, ao visitar unidades de terapias intensivas que cuidam de pessoas com COVID-19 ou ao conversar com enfermeiros que nelas trabalham, percebe-se a importância do resgate das proposições teóricas de Florence Nightingale, em especial o cuidado com o ambiente, o ar e sua circulação mais especificamente, e a necessidade de oferecer o suporte necessário para que o organismo se recupere da melhor maneira possível(20).

Apresenta-se como imprescindível o equilíbrio entre o cuidado aos pacientes e o cuidado de si em meio ao enfrentamento da pandemia, bem como o desafio das gerências das unidades de saúde em cuidar deste binômio, de modo que se tenham melhores resultados, maior conforto e elevação da qualidade de vida. Os enfermeiros e suas equipes são seres humanos que estão expostos ao maior desafio sanitário e epidemiológico dos últimos cem anos, o que requer um olhar específico e diferentes estudos ao longo do tempo a partir do início da pandemia para melhor se compreender seus efeitos e suas demandas.

O acolhimento aos profissionais, a criação de espaços para verbalização dos afetos, dos medos e dos desejos, o reconhecimento de alguns limites pessoais na realização do trabalho neste contexto específico, o apoio psicológico por parte da instituição e a criação de redes de solidariedade entre os profissionais são alguns dos exemplos de ações que podem ser adotadas no cotidiano institucional.

Pode se configurar, como importante, a proposição de estimular a automotivação dos profissionais em meio à pandemia, assim como em investir no bem-estar no local de trabalho. Deve-se também realizar o acolhimento às demandas que se apresentarem ao longo do tempo(8). A lembrança do enfrentamento da pandemia como uma resposta aos desafios pungentes do tempo em que se vive é outra dimensão que pode ser abordada, não para domesticar os trabalhadores, mas para refletir em conjunto com eles e propiciar a elaboração conjunta de propostas de formas de cuidado do outro e de si de modo eficaz e seguro, moderno e humano.

 

CONCLUSÃO

Este estudo analisou sentimentos e conflitos pessoais e subjetivos vividos pelos integrantes da equipe de enfermagem nos primeiros momentos da pandemia da COVID-19, aprofundando sua complexidade prática, suas contradições humanas e humanitárias, como o surgimento de sentimentos ambíguos determinados pela vontade de cuidar e pelo medo de ser contaminado por um agravo pouco conhecido. Outrossim, ao analisarmos a implementação do cuidado de enfermagem, viu-se que o enfrentamento do desconhecido requereu novas possibilidades de demandas de cuidado integral, ofertadas ao conjunto dos atores sociais envolvidos, como a inclusão de técnicas e tecnologias em um contexto assistencial e emergencial, assim como o imperativo de manter-se digno e permitir a dignidade como imprescindível para o existir, o continuar a existir ou o morrer em uma unidade de terapia intensiva.

Englobaram-se os sentimentos dos profissionais e suas atitudes diante do quadro sanitário que surgiu, o modo de reconhecer o novo ameaçador e incluí-lo como uma exigência para a prática cotidiana, o risco sempre presente de se infectar e infectar os demais com os quais se convive e os desafios assistenciais presentes no cuidado a esta clientela específica. Neste percurso de vivência da pandemia, o estudo revelou que a enfermagem construiu conhecimentos próprios para dar conta desta realidade não familiar, o que incluiu criatividade, conhecimentos científicos acumulados, habilidades práticas adquiridas e consolidadas e possibilidade institucional para realizá-lo.

Dentre as limitações deste estudo, destaca-se a sua realização em apenas uma unidade com um número limitado de profissionais. No entanto, acredita-se que seus resultados apontam uma importante discussão que ainda requer mais aprofundamentos, com novos estudos de diferentes tipologias. Ele indica que a enfermagem segue enfrentando o desafio de ser e de se reinventar diante dos acontecimentos do mundo e da vida frente às novas demandas de cuidado das pessoas, comunidades e populações.

 

CONFLITO DE INTERESSE

Os autores declaram não haver conflito de interesse.

 

SUPORTE FINANCEIRO

Bolsa de produtividade em pesquisa CNPQ nível 1d processo número 311631/2020-7; bolsa pós doutorado nota 10 FAPERJ processo número e-26/202.429/2019 (246805); bolsa procientista FAPERJ/UERJ.

 

REFERÊNCIAS

 

1. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Recomendações de proteção aos trabalhadores dos serviços de saúde no atendimento de Covid-19 e outras síndromes gripais [Internet]. Brasília, DF: COE/SVS/MS; 2020 [citado 2021 maio 30]. Disponível em: https://www.saude.go.gov.br/files/banner_coronavirus/GuiaMS-Recomendacoesdeprotecaotrabalhadores-COVID-19.pdf

 

2. Humerez DC, Ohl RIB, Silva MCN. Mental health of Brazilian nursing professionals in the context of the COVID-19 pandemic: action of the nursing federal council. Cogit Enferm [Internet]. 2020 [citado 2021 maio 29];25:e74115. Disponível em: https://dx.doi.org/10.5380/ce.v25i0.74115

 

3. Santos KMR, Galvão MHR, Gomes SM, Souza TA, Medeiros AA, Barbosa IR. Depression and anxiety in nursing professionals during the covid-19 pandemic. Rev Esc Anna Nery. 2021;25:e20200370. http://dx.doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2020-0370.

 

4. Barros ALBL, Silva VM, Santana RF, Cavalcante AMRZ, Vitor AF, Lucena AF, et al. Brazilian nursing process research network contributions for assistance in the COVID-19 pandemic. Rev Bras Enferm. 2020;73(Suppl 2):e20200798. http://dx.doi.org/10.1590/0034-7167-2020-0798. PMid:33111783.

 

5. Conselho Federal de Enfermagem (COFEN). Mortes entre profissionais de Enfermagem por Covid-19 cai 71% em abril [Internet]. Brasília, DF: COFEN; 2021 [citado 2021 maio 29]. Disponível em: http://www.cofen.gov.br/mortes-entre-profissionais-de-enfermagem-por-covid-19-cai-71-em-abril_86775.

 

6. Patias ND, Hohendorff J. Quality criteria for qualitative research articles. Psicol Estud [Internet]. 2019 [citado 2021 maio 29];24:e43536. Disponível em: https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/PsicolEstud/article/view/43536/751375148997

 

7. Bardin L. Análise de conteúdo. 3. ed. São Paulo: edições 70; 2016.

 

8. Amestoy SC. Inteligência emocional: habilidade relacional para o enfermeiro-líder na linha de frente contra o novo coronavírus. J Nurs Health [Internet]. 2020 [citado 2021 maio 28];10(n. esp.):e20104016. Disponível em: https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/enfermagem/article/view/18993/11578.

 

9. Paixão GLS, Freitas MI, Cardoso LCC, Carvalho AR, Fonseca GG, Andrade AFSM, et al. Strategies and challenges of nursing care in the face of covid-19 pandemic. Braz J Develop. 2021;7(2):19125-39. http://dx.doi.org/10.34117/bjdv7n2-521.

 

10. World Health Organization (WHO). COVID-19 strategy update [Internet]. Geneva: WHO; 2020 [citado 2021 maio 29]. Disponível em: https://www.who.int/publications/m/item/covid-19-strategy-update

 

11. Barra e Lopes EA. Vivências de sofrimento e adoecimento em ambiente de trabalho: uma análise do cotidiano profissional de enfermeiras e enfermeiros num contexto pandêmico em dois centros de referência no atendimento a pacientes de Covid-19. Cad Psicol Soc Trab Internet. 2020;23(2):218- 35. http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-0490.v23i2p218-235.

 

12. Jianyu Q, Le S, Jiahui D, Jiajia L, Li Z, Suying W, et al. Psychological impact of the COVID-19 pandemic on healthcare workers: a cross-sectional study in China. Gen Psychiatr. 2020;33(3):e100259. http://dx.doi.org/10.1136/gpsych-2020-100259. PMid:32596640.

 

13. Labegalini CMG, Stevanato KP, Nogueira IS, Christinelli HCB, Silva VL, Costa MAR. The process of coping with the COVID-19 pandemic from the perspective of nursing professionals. Res Soc Develop. 2021;10(1):e5410111252. http://dx.doi.org/10.33448/rsd-v10i1.11252

 

14. Portugal JKA, Reis MHS, Barão EJS, Souza TTG, Guimarães RS, Almeida LS, et al. Percepção do impacto emocional da equipe de enfermagem diante da pandemia de COVID-19: relato de experiência. Rev Eletr Acerv Saúde. 2020;46(46):e3794. http://dx.doi.org/10.25248/reas.e3794.2020.

 

15. Dal’Bosco EB, Floriano LSM, Skupien SV, Arcaro G, Martins AR, Anselmo ACC. Mental health of nursing in coping with COVID-19 at a regional university hospital. Rev Bras Enferm. 2020;73(Suppl 2):e20200434. http://dx.doi.org/10.1590/0034-7167-2020-0434. PMid:32667576.

 

16. Ayanian JZ. Mental health needs of health care workers providing frontline COVID-19 care. JAMA Health Forum [Internet]. 2020 [citado 2021 maio 30];1(4):e200397. Disponível em: https://jamanetwork.com/journals/jama-health-forum/fullarticle/2764228

 

17. Gomes AMT, Yarid SD, Silva AE, Nogueira VPF, França LCM. O cuidado em saúde e COVID-19: cuidados paliativos, espiritualidade/religiosidade e fadiga por compaixão de profissionais de saúde. In: Carneiro EM, Silva SCCG, Ribeiro LTF, editors. Apontamentos de pesquisa: a pandemia COVID-19: teologia, ciência e arte em conversas [Internet]. 1. ed. Curitiba, PR: Brazil Publishing; 2020 [citado 2021 maio 30]. p. 202-13. Disponível em: https://doi.org/10.31012/978-65-5861-033-5.

 

18. Borges EMN, Fonseca CINS, Baptista PCP, Queirós CML, Baldonedo-Mosteiro M, Mosteiro-Diaz MP. Fadiga por compaixão em enfermeiros de urgência e emergência hospitalar de adultos. Rev Lat Am Enfermagem. 2019;27:e3175. http://dx.doi.org/10.1590/1518-8345.2973.3175. PMid:31596410.

 

19. Gandra EC, Silva MF, Silva EST, Regly ICV, Silva CMR. Assistance risk factors related to contamination of nursing professionals by Covid-19: a literature review. Braz J Develop. 2020;6(7):53348-60. http://dx.doi.org/10.34117/bjdv6n7-833.

 

20. Fernandes AGO, Silva TCR. War against the COVID-19 pandemic: reflection in light of Florence Nightingale’s nursing theory. Rev Bras Enferm. 2020;73(Suppl 5):e20200371. http://dx.doi.org/10.1590/0034-7167-2020-0371. PMid:33338172.

 

 

Submissão: 01/06/2021

Aprovado: 22/11/2021

 

CONTRIBUIÇÃO DE AUTORIA

Concepção do projeto: Gomes AMT, Castellões TMFW, Nogueira VPF

Obtenção de dados: Gomes AMT, Castellões TMFW

Análise e interpretação dos dados: Gomes AMT, Castellões TMFW, Nogueira VPF, Marques SC, Couto PLS, Mercês MC, Coelho MMF, Araújo MAM

Redação textual e/ou revisão crítica do conteúdo intelectual: Gomes AMT, Nogueira VPF, Marques SC, Couto PLS, Mercês MC, Coelho MMF, Araújo MAM

Aprovação final do texto a ser publicada: Gomes AMT, Marques SC, Couto PLS, Mercês MC, Coelho MMF, Araújo MAM

Responsabilidade pelo texto na garantia da exatidão e integridade de qualquer parte da obra: Gomes AMT

 

Imagem 1