ORIGINAL

 

Vivências de estudantes de enfermagem no início da pandemia da Covid-19: abordagem qualitativa

 

Helder de Pádua Lima1, Nathan Aratani1, Guilherme Oliveira de Arruda1, Mateus Fernandes Antonio1, Heliete Feitosa Matos1, Bianca Cristina Ciccone Giacon-Arruda1, Luciana Contrera1, Andreia Insabralde de Queiroz Cardoso1

 

1 Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, MS, Brasil

 

RESUMO

Objetivo: Compreender a vivência de estudantes de enfermagem no início da pandemia da Covid-19. Método: Estudo exploratório, com abordagem qualitativa, realizado com 36 estudantes de enfermagem, matriculados em universidade pública brasileira. Dados coletados por videoconferência e entrevista semiestruturada, submetidos à análise de conteúdo. Resultados: Emergiram duas categorias: “Ser estudante de enfermagem em tempos de pandemia da Covid-19 e ensino remoto de emergência” e “Transformações no cotidiano dos estudantes no início da pandemia”. A vivência dos estudantes se revelou exaustiva e estressante, interferindo na saúde e no bem-estar. O cotidiano dos participantes foi marcado por mudanças, sobretudo, na experiência com o ensino remoto de emergência, que exigiu o desenvolvimento de estratégias adaptativas. Conclusão: O planejamento e o uso de estratégias de promoção da saúde e apoio contínuo aos estudantes que vivenciaram o contexto da pandemia, pelos cursos de enfermagem, tornam-se importantes.

 

Descritores: Estudantes de Enfermagem; Pandemias; Saúde Mental.

 

INTRODUÇÃO

A pandemia da Covid-19 trouxe consigo a necessidade de cumprir medidas de contenção comunitária da doença (distanciamento e isolamento social), como estratégia para mitigar a velocidade de progressão e evitar a sobrecarga de sistemas de saúde. Essa determinação tem repercutido no desenvolvimento de atividades em diversos setores, como é o caso da educação(1).

Ao considerar o ensino presencial como cenário potencial para transmissão do vírus, a suspensão das aulas e a manutenção das atividades de forma remota, não presencial, com uso de Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC), foram algumas das opções encontradas pelas instituições de ensino. Entretanto, esse panorama, marcado por mudanças, trouxe desafios de diversas ordens aos atores envolvidos(1,2).

Dentre os desafios enfrentados na utilização do ensino remoto, destacam-se: o acesso à internet e outros recursos tecnológicos e materiais; a capacitação dos atores envolvidos para o uso de recursos tecnológicos e TIC; a interação entre docentes e discentes durante o processo formativo; a disponibilidade docente, almejando o aprendizado em colaboração com o estudante; e o cuidado com o outro, mediante o aprendizado integrado e cooperativo(3).

Esses aspectos inerentes ao ensino, durante a pandemia, implicaram aos estudantes dificuldades adaptativas e alterações no estado emocional. No contexto do ensino superior, a vivência das restrições e alterações impostas pela pandemia da Covid-19 trouxe impacto psicológico e na saúde mental dos estudantes, com presença de sintomas de ansiedade, depressão e estresse(4,5).

Na área da enfermagem, estudos apontam que o processo formativo, por si só, representa experiência permeada por estresse, traumas, exposição a riscos, com a constante proximidade do estudante com situações como adoecimento e morte, além das condições questionáveis dos serviços de saúde, nos quais, muitas vezes, atuam. Somado a essa realidade, a pandemia da Covid-19 tem potencializado essas vulnerabilidades relacionadas à saúde mental desses sujeitos(6,7).

Em Israel, durante o período pandêmico, estudantes de enfermagem se depararam com inédita realidade de incertezas econômicas, medo de adoecer, atrasos nas atividades acadêmicas, desafios com as mudanças na modalidade de ensino e escassez de equipamentos de proteção individual em aulas práticas(6,7).

Na Arábia Saudita, pesquisa evidenciou que 43,3%, 37,2% e 30,9% dos discentes de enfermagem manifestaram, respectivamente, algum grau de depressão, ansiedade e estresse. Além disso, o risco percebido de infecção pela Covid-19 se configurou como preditor para vivências de medo(8).

Corroborando esses achados, estudo desenvolvido no México apontou que estudantes de enfermagem apresentaram altos níveis de estresse e medo, além de baixo nível de conhecimento sobre Covid-19. A presença de alto nível de estresse e o baixo conhecimento entre os discentes prediziam medo em relação à doença(9).

Apesar das situações de exaustão e estresse durante a pandemia não terem afetado somente estudantes de enfermagem e da área da saúde, elas merecem atenção por parte dos pesquisadores, tanto por trazerem efeitos físicos e psicológicos à saúde dessa população quanto pelos riscos aos quais estão submetidos pacientes que se encontram sob os cuidados destes.

Diante dos achados sugestivos dos efeitos deletérios da pandemia da Covid-19 na saúde de estudantes de enfermagem, e podendo refletir no desempenho acadêmico, bem como os fatores envolvendo o uso de TIC nos cursos de saúde e no contexto socioeconômico dos estudantes brasileiros, a atenção sobre a experiência desses sujeitos, ao considerar os significados desse fenômeno para futuros enfermeiros, pode contribuir na elaboração de estratégias para minimizar as vulnerabilidades emergidas na saúde mental dos estudantes, com implicações no processo ensino-aprendizagem e na formação acadêmica.

Com base no exposto, este estudo questionou: como estudantes de enfermagem vivenciaram o início da pandemia da Covid-19? De modo a fornecer respostas para o problema proposto, o estudo objetivou compreender a vivência de estudantes de enfermagem no início da pandemia da Covid-19.

 

MÉTODO

Realizou-se estudo exploratório, com abordagem qualitativa. Seguiram-se os Critérios Consolidados para Relatos de Pesquisa Qualitativa (COREQ), de modo a garantir o rigor do estudo. Este é um checklist de 32 itens, utilizados para promover a qualidade na pesquisa qualitativa em saúde.

O estudo foi conduzido no curso de enfermagem de uma Universidade de caráter público e federal, localizada na Região Centro-Oeste brasileira. A referida instituição optou por não suspender as atividades de ensino durante a pandemia da Covid-19, manteve o calendário acadêmico previsto para o ano de 2020 e substituiu as atividades presenciais de ensino pelo Ensino Remoto de Emergência (ERE), com uso de TIC, desde março de 2020. Frente a isso, docentes e estudantes se reorganizaram para manutenção das atividades acadêmicas.

A população do estudo foi representada pelos 199 estudantes regularmente matriculados no Curso de Graduação em Enfermagem e a amostra por conveniência foi composta por 36 participantes. Utilizou-se do critério de saturação de respostas para definição da amostra.

Os critérios de inclusão no estudo foram: ter idade igual ou maior que 18 anos, cursar enfermagem por período mínimo de seis meses e apresentar condições cognitivas e emocionais para responder aos questionamentos propostos. Excluíram-se estudantes que realizaram trancamento de todas as disciplinas do semestre letivo em curso durante o período 2020.1.

A pesquisa foi previamente divulgada nas redes e mídias sociais (Facebook, Instagram e Whatsapp) do curso de enfermagem. Os estudantes manifestaram interesse em participar por meio de um formulário do Google Forms distribuído aos potenciais participantes. O período de inscrição durou sete dias, uma semana antes do início da coleta de dados.

A coleta de dados ocorreu em abril de 2020, decorridos trinta dias de substituição das atividades acadêmicas presenciais pelo ERE com uso de TIC, em virtude da pandemia da Covid-19. Os dados foram coletados por meio de entrevista individual, realizada por videoconferência Google Meet, guiada por roteiro semiestruturado que abordava aspectos sociodemográficos e acadêmicos (sexo, idade, com quem reside, período letivo em que se encontra matriculado, quantidade de disciplinas em curso no semestre letivo 2020.1, quantidade de disciplinas trancadas no semestre letivo 2020.1, recebimento de bolsa/auxílio estudantil durante a pandemia, e acesso à internet), além das questões norteadoras: Descreva sua rotina durante a pandemia da Covid-19; Fale sobre como tem sido sua vivência como aluno de enfermagem durante a pandemia da Covid-19; Na sua percepção, como tem sido sua experiência no ERE com TIC? Deseja comentar algo mais?

Cada entrevista teve duração em torno de cinquenta minutos. Antes de iniciar a entrevista com cada participante, o pesquisador responsável realizou a leitura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e enviou duas cópias dele, para que, em caso de aceite, o participante devolvesse uma delas assinada. As entrevistas foram gravadas e transcritas na íntegra e submetidas posteriormente à edição breve, eliminando-se vícios de linguagem, de modo a não prejudicar o sentido e o conteúdo destas.

A fim de obter acesso às percepções expressas pelos participantes, o material foi submetido à análise de conteúdo, modalidade temática, o que permitiu atribuir importância às palavras e aos significados, a partir de temas em distintas situações. A pré-análise envolveu leitura flutuante que favoreceu o aprofundamento no conteúdo dos relatos. Na sequência, explorou-se, minuciosamente, o material, procedendo-se à codificação das falas com a utilização de códigos nominais e à constituição do corpus de análise, que correspondeu ao material que efetivamente gerou inferências. Os trechos dos relatos foram agrupados conforme os códigos atribuídos, por similitude ou aproximação temática, em núcleos de sentido(10).

Em seguida, procedeu-se à etapa de categorização que foi realizada condensando-se os núcleos de sentido em títulos representativos dos principais temas encontrados nas falas, e foram realizadas inferências a partir dos trechos selecionados. Como suporte para o percurso analítico e discussão dos resultados, recorreu-se à literatura científica que aborda a temática em estudo.

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, de acordo com o parecer número 4.047.265. Para garantir o sigilo quanto à identidade dos participantes, utilizou-se do termo “Participante”, seguido de número correspondente à ordem em que a entrevista foi concedida (exemplo: “Participante 1”), como referência a cada um deles.

 

RESULTADOS

Entre os participantes da investigação, 30 eram mulheres, 21 tinham idades entre 20 e 24 anos, e 26 residiam com familiares. Quanto aos aspectos acadêmicos, 23 estudantes cursavam o sétimo período letivo; 25 estavam matriculados em cinco ou mais disciplinas; 35 não tinham realizado trancamento de disciplina durante a pandemia da Covid-19; 23 recebiam bolsa e/ou auxílio estudantil; 30 tinham acesso à internet no domicílio e seis, apenas, na Universidade.

Os relatos dos participantes foram organizados nas categorias: Ser estudante de enfermagem em tempos de pandemia da Covid-19 e ensino remoto de emergência e Transformações no cotidiano dos estudantes no início da pandemia, apresentadas a seguir.

 

Ser estudante de enfermagem em tempos de pandemia da Covid-19 e ensino remoto de emergência

Na perspectiva dos participantes do estudo, ser estudante de enfermagem no contexto do início da pandemia da Covid-19 foi uma experiência “cansativa”, “esgotante”, “estressante” e “exaustiva”. Esses sentidos emergiram, à medida que os participantes traziam nas falas alusões à superposição de situações novas vivenciadas abruptamente no referido período: isolamento social, inserção no ERE, experiência com novas tecnologias, sobrecarga de atividades acadêmicas e esgotamento psicológico. Os trechos a seguir exemplificam os achados:

 

Tem sido pesado por conta da demanda (de atividades acadêmicas). Tem sido estressante, dificultosa e me deixado bem sobrecarregado. A experiência está contribuindo para minha aprendizagem. Porém, as aulas práticas, que para minha turma sempre foram limitadas, estão ainda mais prejudicadas. Estou estressado, pouco comunicativo e ansioso. (Participante 1)

 

Exaustiva, muito cansativa. Temos muitas atividades para fazer com pouco tempo para entrega, passamos o dia todo fazendo tarefas e isso demanda tempo para resolver. Alguns professores passam mais de uma atividade para fazer, o que também é ruim, pois não estamos com muito tempo disponível. É cansativo ficar o dia todo trancado em um quarto na frente do computador com a pressão de ter tantas atividades para fazer: artigos enormes para ler, um projeto de TCC (Trabalho de Conclusão de Curso) em andamento. Não estamos dando conta da demanda. (Participante 7)

 

Diante da impossibilidade da realização de aulas presenciais no início da pandemia, o ERE significava importante fator gerador de estresse e, com base nos relatos, não parecia representar modalidade de ensino que promovia o protagonismo e a autonomia estudantil no percurso formativo. Queixas e insatisfações referentes à vivência com cenário de ensino virtualizado, além da adaptação à nova estratégia de ensino, da necessidade de desenvolvimento de habilidades com TIC no processo formativo e ambiente doméstico que, por vezes, funcionava como distrator para o aprendizado, emergiram como elementos que dificultavam o cursar enfermagem:

 

Ter que aprender a mexer em um sistema virtual que não se tem o hábito é complicado. São muitas atividades para realizar. Não sei mais o que é um final de semana de descanso, todos os dias têm uma atividade nova e, o mais complicado, conseguir conciliar tudo isso com casa e filhos que também merecem a atenção. (Participante 12)

 

Fica ruim aprender assim, às vezes, temos dúvidas e, mesmo elas sendo respondidas pelo professor, ainda fico com dúvida. Já tenho dificuldade em aprender, imagina a distância. Alguns professores, não todos, acham que precisam nos encher de atividades e compromissos, esquecendo que aqui fora também temos vida, outras disciplinas e compromissos. Ainda não aprendi a lidar muito bem. (Participante 32)

 

As falas também indicaram que alguns fatores interferiram nessa vivência, como a falta de familiaridade/conhecimento ou resistência ao ERE, o quantitativo de atividades acadêmicas a realizar, o acesso à internet de qualidade, a disponibilidade prévia do material didático em formato eletrônico/digital, o relacionamento e a comunicação com docentes, e o ambiente domiciliar adequado para os estudos.

Os participantes ressaltaram as contribuições (maior aporte teórico nas disciplinas, contato com novas metodologias e desenvolvimento de novas habilidades) e os prejuízos (queda no desempenho acadêmico e impossibilidade de realização de aulas práticas presenciais em laboratórios e serviços de saúde) que a substituição das aulas presenciais pelo ERE com TIC trouxe para o processo formativo:

 

Minha experiência está sendo um pouco ruim, pois tenho muita dificuldade com informática e, devido à grande quantidade de tarefas através desse meio, sinto que meu rendimento caiu em relação às aulas presenciais. Venho encontrando dificuldades com esse método de estudo, é necessária uma internet boa e o sinal cai com frequência, o que me faz perder a continuidade do assunto. A internet ruim e a falta de costume com esse meio de estudo dificultam. O que facilita é a disponibilidade e a facilidade de marcar horário para tirar dúvidas com os professores. (Participante 3)

 

As disciplinas que têm prática exigem muito. A interrupção das aulas presenciais foi ruim. Os estudos de casos até contribuem para o aprendizado, mas, no meu caso, não consigo estudar e aprender de uma forma eficaz. Sinto que não estou produzindo e sim decorando o conteúdo, sinto falta da desenvoltura que realizava em estágios. Não estou aprendendo o que realmente vai me acrescentar no futuro da profissão. (Participante 14)

 

O ser estudante de enfermagem no início da pandemia da Covid-19 foi uma experiência também marcada por repercussões na saúde e no bem-estar. Destacaram-se o pouco tempo disponível para a prática do autocuidado e as vivências frequentes de dor, irritabilidade, fadiga, problemas de atenção e de sono, alterações de humor, angústia, ansiedade, medo, frustração, sofrimento psíquico e piora em quadros prévios de adoecimento mental:

 

Minha coluna dói por ficar sentado por três períodos por dia e meus olhos estão sempre irritados, por ficar muito tempo na frente da tela do notebook. Comecei a perceber sinais e sintomas que nunca havia apresentado antes, como, por exemplo: insônia, tremores, angústia, medo. (Participante 1)

 

Não conseguir momentos para mim me deixa frustrada e cansada, os episódios de crise de ansiedade aumentam no decorrer da semana. Tenho crises quase todas as noites e dificuldade para dormir. No outro dia, tenho coisas a serem feitas, é um ciclo doloroso todos os dias. O médico passou um medicamento, porém não faz efeito. Estou procurando me adaptar com relaxamento e exercícios físicos. Tem dias mais difíceis que outros. Estou tendo episódios de pânico, procuro evitar ler ou assistir qualquer tipo de notícias sobre a Covid–19, isso me apavora e não sei lidar muito bem. (Participante 9)

 

Os achados insinuam que a pandemia da Covid-19 e as consequências tornaram o ser estudante de enfermagem uma experiência que repercutia na saúde e no bem-estar, além de trazer desafios para o protagonismo e a autonomia discente no percurso formativo.

 

Transformações no cotidiano dos estudantes no início da pandemia

Os relatos denotaram o modo como a pandemia da Covid-19 afetou o cotidiano dos participantes, ocasionando mudanças em virtude da necessidade de adoção de cuidados para evitar a disseminação da Covid-19. Entre as alterações, emergiram aquelas que diziam respeito à restrição de liberdade; diminuição do convívio social, da frequência em espaços comunitários e realização de atividades de lazer; e aumento do tempo de permanência no domicílio. As falas sugeriram que essas mudanças trouxeram insegurança e incerteza quanto ao futuro e geravam apreensão, medo, ansiedade e estresse. Os trechos a seguir são ilustrativos dos achados:

 

O isolamento repercutiu de uma forma negativa na minha rotina. Costumava frequentar a academia diariamente, caminhar com minha cachorra na avenida, sair para comer em lanchonetes e sorveterias. Era uma forma de aliviar a tensão e diminuir o estresse e a ansiedade da carga de informações que o curso de enfermagem oferece. (Participante 5)

 

Sinto falta da minha rotina de antes: acordar, ir para faculdade, levar meus filhos para a creche e a escola. Me sinto apreensiva por não saber o que ainda está por vir. Sinto falta da tranquilidade de antes, de poder ir e vir, sem medo de tocar nos objetos e pessoas. Estou sentindo falta de conviver entre amigos e familiares, de levar meus filhos para passear na praça e nos parquinhos. (Participante 14)

 

Outros excertos de relatos dos participantes foram alusivos às mudanças relacionadas à inserção em um novo processo de aprendizagem, profundamente marcado pela dependência de internet, ambientes virtuais e plataformas de aulas remotas:

 

Minha rotina hoje se baseia 90% em fazer as tarefas da faculdade. Passo o dia todo na frente do computador, paro apenas para almoçar, jantar, tomar banho e dormir. Quase não tenho tempo para mais nada. Às vezes, ficamos até 23 horas para dar tempo de entregar a atividade na data. (Participante 7)

 

Em meio à nova rotina imposta pela pandemia, os participantes revelaram tentativas de adaptação que incluíam a reorganização dos horários de estudo e a prática de técnicas de relaxamento e atividades físicas. As falas a seguir exemplificam essa afirmação:

 

Para a academia eu vou, três vezes na semana, às 6 horas da manhã para que não atrapalhe a realização das atividades (acadêmicas). De manhã, tiro para leituras solicitadas e/ou realização de trabalho em grupo. Às 13 (horas) e 30 (minutos), normalmente, iniciam as aulas virtuais e a maioria vai até 18 horas. Fins de semana são para leitura e sempre tiro ou o sábado à tarde ou domingo para não utilizar celular nem computador. (Participante 2)

 

Não tenho saído de casa, exceto quando meus avós precisam de algo do mercado. Como eles não podem frequentar, por serem do grupo de risco, eu faço as compras que eles precisam. Em casa, minha rotina se baseia em tentar acompanhar as aulas, não tenho muito o que fazer e me falta ânimo para buscar outros entretenimentos. Meu rendimento (acadêmico) tem sido muito abaixo do normal. (Participante 19)

 

A vivência dos estudantes no início da pandemia também pareceu ter deflagrado questionamentos sobre a qualidade do ensino de enfermagem nesse cenário e reflexões sobre valorização da vida, saúde coletiva, desempenho acadêmico e formação profissional:

 

Ultimamente, me pego muito pensativo na realidade que estamos. As pessoas que estão lá fora achando que todo esse movimento de necessidade de ficar em casa é besteira. Sei que tem pessoas em situações piores que a minha. Aprendi a dar mais valor à vida. (Participante 1)

 

Encontro muita dificuldade com esse meio de ensino, vejo que meu rendimento (acadêmico) caiu em relação às aulas presencias. Por algumas vezes, pensei em trancar a faculdade, estou com muita dificuldade de acompanhar meus colegas em trabalhos em grupo. Tenho preocupação com o tipo de profissional que estou me tornando, ao mesmo tempo, sinto medo de aumentar mais um ano na graduação e eu ter que continuar longe da minha família. É um misto de sentimentos, sinto que as aulas não deveriam ter continuado desta maneira e, ao mesmo tempo, não quero ficar mais tempo na faculdade. (Participante 22)

 

Em síntese, os achados sugerem que o início da pandemia modificou o cotidiano dos estudantes de enfermagem, sobretudo, na vivência das relações interpessoais e do processo de aprendizagem. Essa transformação acarretava sentimentos de medo e ansiedade, percebida como evento estressor. Diante das mudanças ocorridas no cotidiano, os estudantes de enfermagem passaram a tentar desenvolver estratégias de adaptação.

 

DISCUSSÃO

A caracterização dos participantes do estudo aponta fatores sociodemográficos e acadêmicos que poderiam, de algum modo, interferir na experiência de ser estudante de enfermagem durante a pandemia. Supõe-se, por exemplo, que residir com familiares e receber bolsa/auxílio estudantil indicaria maior suporte social e financeiro frente às mudanças ocorridas no período pandêmico. Por outro lado, acredita-se que o fato de ter cursado a maior parte da formação acadêmica na modalidade de ensino presencial, estar matriculado em uma quantidade significativa de disciplinas e não ter acesso à internet no domicílio poderia dificultar a adaptação e a lida com as novas tecnologias, assim como produzir sobrecarga de atividades acadêmicas.

No Brasil, uma pesquisa sobre saúde mental de universitários no período pandêmico, evidenciou que o sexo, a renda, estudar em universidade pública, não professar nenhuma religião e não trabalhar associaram-se a sintomas de depressão(11).

Estudo realizado nos Estados Unidos, com intuito de identificar os principais estressores associados à pandemia da Covid-19 e compreender os efeitos destes na saúde mental de estudantes universitários, obteve que a maioria desses alunos (68%) referiu residir com familiares e que isso tornou o ambiente doméstico mais distrativo para execução de atividades acadêmicas. Morar com a família reduziu as interações pessoais, a movimentação física e a realização de outras atividades sociais, devido ao medo e à preocupação por si ou entes queridos na pandemia(12). Nessa linha de raciocínio, infere-se que a convivência com familiares poderia contribuir para o enfrentamento da pandemia e, consequentemente, favorecer a manutenção do estado emocional dos universitários.

Sobre a vivência de estudantes na pandemia, foco deste estudo, pesquisadores afirmam que esse período trouxe impactos e mudanças no cotidiano, com destaque para discentes da área da saúde. Os estudantes sofreram com a ausência ou precariedade nas condições de infraestrutura, necessária para aulas remotas adotadas nesse período, como adaptação às atividades, dificuldade para acesso à internet, familiares necessitando de atenção e singularidades cognitivas individuais(13).

Nessa lógica, a pandemia transformou de forma rápida e significativa o modo como o estudante de enfermagem percebia e vivenciava o processo formativo. Essa mudança gerou preocupação consigo, com os familiares, os pacientes, a comunidade e a prosperidade futura. Em geral, eventos como esse, que envolvem nível alto de estresse, costumam produzir medo, além de traumas, incertezas e ansiedade(6).

Os resultados de pesquisa desenvolvida em diferentes Escolas de Enfermagem nas Filipinas revelaram que níveis moderados a altos de medo da Covid-19 se fizeram presentes entre alunos matriculados em todos os períodos letivos, mas predominaram entre aqueles do primeiro ano de curso. Evidenciaram, ainda, que a experiência do medo afetava negativamente a qualidade do sono discente e se associava com irritabilidade e intenção de abandonar o curso. Esses achados corroboram, em parte, os encontrados na pesquisa(14).

Os relatos sugerem, também, que a experiência de ser estudante de enfermagem na pandemia da Covid-19 foi significativamente marcada pela inserção e lida com o ensino remoto, assim como evidenciado em estudo realizado em universidade paranaense. Na referida pesquisa, os discentes demonstraram dificuldade de entender e aceitar o ensino remoto como algo substitutivo e não como escolha metodológica diante da pandemia, desconforto com as adaptações promovidas pelo curso e preconceitos prévios com relação a essa modalidade de ensino, considerando-a inferior à educação presencial(15).

Esses mesmos autores identificaram que alguns discentes referiram insatisfação com as atividades do ERE, afirmando que os docentes não desenvolveram estratégias específicas para essa modalidade e apenas fizeram transposição. Além disso, mostram-se críticos e pareceram não entender as diferenças entre a educação remota e a educação presencial, desconsiderando elementos característicos do ensino remoto que demandam ajustes durante a pandemia(15).

Semelhante ao modo como foi identificado entre os participantes do presente estudo, pesquisa brasileira revelou que somadas às transformações ocorridas durante a pandemia, estudantes de enfermagem precisaram se adaptar a uma rotina que incluía afazeres domésticos, presença de filhos em tempo integral e familiares que também passaram a desenvolver atividades de trabalho e ensino de forma remota. Esses elementos funcionavam como distratores para o aprendizado e dificultavam a participação discente nas atividades virtuais(16).

Assim como na modalidade de ensino presencial, em circunstâncias normais, o ERE, no cenário pandêmico, tem apresentado desafios e potencialidades. As queixas, o desconforto e a desmotivação frequentes dos estudantes podem refletir, em parte, o comprometimento discente com a própria aprendizagem e histórico de subutilização das tecnologias digitais. A pandemia da Covid-19 colocou em evidência a necessidade de refletir sobre a valorização do protagonismo e da autonomia do estudante para o sucesso na formação, independente da forma de ensino a ser adotada. Esse comprometimento acadêmico que, por vezes, não é assumido pelo discente, desenvolve-se através de ações conjuntas que envolvem discentes, docentes e instituições de ensino, levando cada um desses a assumir os respectivos papéis no processo educativo(17).

Em tempos complexos e adversos, como na pandemia da Covid-19, é possível que as aprendizagens continuem remotamente. Faz-se necessário encontrar alternativas para atender aos diversos contextos e públicos, de modo que possam reinventar-se e aprender, inseridos em um ensino consolidado, híbrido. Novas experiências e espaços para interatividade, diálogos, trocas e apropriação do conhecimento científico poderão surgir, provocando ações reflexivas, emancipadoras, autônomas e críticas(18).

As potencialidades do presente estudo são as de evidenciar necessidades existentes durante o processo de ensino-aprendizagem na graduação em enfermagem, abordar a realidade do contexto brasileiro e contribuir para o planejamento e fortalecimento de estratégias de apoio ao processo formativo durante e no período pós-pandemia da Covid-19.

Enquanto limitação, acredita-se que o uso da videoconferência, em alguns casos, limitou a percepção de expressões não verbais do sujeito, fazendo com que o uso de conteúdos expressos pela prática de observação fosse reduzido. Por outro lado, considera-se que a referida estratégia foi bastante usual, visto que permitiu a coleta de dados, em momento permeado por medidas rígidas de distanciamento social, e possibilitou que a vivência dos estudantes fosse captada, justamente, em ocasião crítica e peculiar do período pandêmico.

 

CONCLUSÃO

A vivência de estudantes de enfermagem no início da pandemia se revelou exaustiva e estressante, produzindo repercussões na saúde e no bem-estar desses sujeitos. O cotidiano dos participantes foi marcado por significativas mudanças, com destaque para inserção e lida com o ERE, fato que exigia o desenvolvimento de estratégias adaptativas. O estudo contribui para que cursos de enfermagem planejem e fortaleçam estratégias de promoção à saúde e apoio à continuidade do processo formativo, no transcorrer da pandemia da Covid-19 e após esse período.

 

CONFLITO DE INTERESSES

Os autores declaram não haver conflito de interesses.

 

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Submissão: 15/08/2021

Aprovado: 21/06/2022

 

CONTRIBUIÇÃO DE AUTORIA

Concepção do projeto: Lima HP, Aratani N, Arruda GO, Antonio MF, Matos HF, Giacon-Arruda BCC, Contrera L, Cardoso AIQ

Obtenção de dados: Lima HP, Aratani N, Arruda GO, Antonio MF, Matos HF, Giacon-Arruda BCC, Contrera L, Cardoso AIQ

Análise e interpretação dos dados: Lima HP, Aratani N, Arruda GO, Antonio MF, Matos HF, Giacon-Arruda BCC, Contrera L, Cardoso AIQ

Redação textual e/ou revisão crítica do conteúdo intelectual: Lima HP, Aratani N, Arruda GO, Antonio MF, Matos HF, Giacon-Arruda BCC, Contrera L, Cardoso AIQ

Aprovação final do texto a ser publicada: Lima HP, Aratani N, Arruda GO, Antonio MF, Matos HF, Giacon-Arruda BCC, Contrera L, Cardoso AIQ

Responsabilidade pelo texto na garantia da exatidão e integridade de qualquer parte da obra: Lima HP, Aratani N, Arruda GO, Antonio MF, Matos HF, Giacon-Arruda BCC, Contrera L, Cardoso AIQ  

 

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