ORIGINAL

 

Construção e avaliação de um guia técnico para gestão de casos de sífilis: estudo metodológico

 

Fernanda Vaz Dorneles1, Mariana Xavier da Silva1, Amanda Curtinaz de Oliveira1, Guilherme Machado Silva1, Daniela Barbosa Behrends2, Adriana Aparecida Paz1

 

1Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre, Porto Alegre, RS, Brasil

2Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil

 

RESUMO

Objetivo: Elaborar e avaliar um guia técnico como recurso instrucional e didático para auxiliar profissionais de saúde na gestão de casos de sífilis adquirida e sífilis gestacional. Método: Estudo metodológico, com abordagem quantitativa, que elaborou o guia técnico e submeteu à avaliação de um Comitê de Especialistas. As respostas foram analisadas pela concordância dos critérios de no mínimo 80% e estatística descritiva. Resultados: O “Guia Técnico para Gestão de Casos de Sífilis Adquirida e Sífilis Gestacional” foi elaborado no editor Power Point, contendo 150 páginas, disponibilizado como Portable Document Format (PDF). Ele foi estruturado em seções que incluem a abordagem da identificação, assistência, notificação e monitoramento da sífilis adquirida e gestacional, além de conter dois casos clínicos fictícios para praticar o conhecimento. O Comitê de Especialistas foi composto por 5 (83,3%) enfermeiros e 1 (16,7%) médico, todos atuando no Rio Grande do Sul, prevalecendo o sexo feminino 5 (83,3%), a idade média de 45,83±7,22 anos e a mediana de 7,3(3,8-17) anos de trabalho. A concordância foi plena (100%) em todos os critérios avaliados. Conclusão: O guia revelou-se um importante recurso instrucional e didático para consulta rápida e objetiva dos profissionais de saúde.

 

Descritores: Sífilis; Gravidez; Pessoal de Saúde; Guia Informativo; Estudo de Avaliação.

 

INTRODUÇÃO

A sífilis é uma doença infecciosa transmitida principalmente por meio de relações sexuais, classificada como Infecção Sexualmente Transmissível (IST), com consequências tanto a nível individual quanto coletivo. Seu agente etiológico é a bactéria Treponema pallidum e, além da via sexual, também pode ser transmitida verticalmente da mãe para o feto durante a gestação. A doença apresenta diferentes formas, incluindo a adquirida, a gestacional e a congênita, todas exigindo notificação compulsória(1).

A maioria dos casos é assintomático, o que contribui para a propagação da transmissão. Além disso, se não tratada, a sífilis pode evoluir para complicações sistêmicas graves após vários anos desde a infecção inicial. Durante a gravidez, as repercussões podem ser ainda mais preocupantes, incluindo aborto, parto prematuro, baixo peso ao nascer e natimortalidade(2).

A sífilis é classificada em estágios, compreendendo sífilis recente (englobando as fases primária, secundária e latente recente - até um ano de evolução) e sífilis tardia (que inclui as fases latente tardia - mais de um ano de evolução - e terciária)(2). Cada estágio requer abordagens e recomendações específicas para identificação, assistência, registro de notificação e monitoramento adequado dos casos. Essa diferenciação é essencial para garantir um cuidado efetivo aos pacientes afetados pela sífilis e possibilitar a adoção de medidas preventivas e terapêuticas adequadas em cada etapa da doença(3).

O diagnóstico da sífilis requer a correlação entre uma anamnese detalhada, atenção aos sinais clínicos, exames laboratoriais, histórico de infecções anteriores e investigação de exposição recente. Tanto o diagnóstico quanto o tratamento são oferecidos gratuitamente nos serviços públicos de saúde no Brasil, demandando profissionais capacitados para conduzir adequadamente o processo até a cura(3).

A epidemia de sífilis é um evento mundial e, de acordo com o último Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde publicado em 2022, o Brasil alcançou em 2021 as maiores taxas de detecção de sífilis adquirida e sífilis em gestantes dos últimos dez anos, chegando a 78,5 casos por 100.000 habitantes e 27,1 casos por 1.000 nascidos vivos, respectivamente(4).

Os profissionais de saúde, especialmente os enfermeiros, desempenham um papel fundamental no cuidado da sífilis. No entanto, estudos mostram que, apesar dos diversos documentos oferecidos pelo Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis (DCCI), o despreparo dos profissionais em relação ao tema persiste(5). Além disso, outro estudo aponta que há um obstáculo no manejo da sífilis devido à falta de capacitação dos enfermeiros em identificar os testes de triagem e confirmatórios para o diagnóstico, as fases da sífilis recente, a droga de escolha para o tratamento em gestantes, além da dificuldade em reconhecer a sífilis como uma doença de notificação compulsória(6).

Diante desse problema, o objetivo deste trabalho foi elaborar e avaliar um guia técnico como recurso instrucional e didático para auxiliar os profissionais de saúde na gestão de casos de sífilis adquirida e sífilis gestacional.

 

MÉTODO

Trata-se de um estudo metodológico com uma abordagem quantitativa, cujo objetivo é fornecer informações claras e robustas sobre as técnicas de aquisição e organização de dados para o desenvolvimento, validação e avaliação de instrumentos de pesquisa eficazes, visando sua futura utilização pelo usuário(7). O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa sob o parecer de número 4.398.536.

Os conteúdos presentes no guia foram desenvolvidos com base nos referenciais do Ministério da Saúde, Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), Secretaria Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul, Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre, Rio Grande do Sul (RS) e também na literatura científica atualizada. Para a elaboração do guia, foram utilizadas ferramentas de edição de texto, como o Word, e de apresentação, como o PowerPoint, ambos da Microsoft. Os símbolos e figuras foram obtidos de diversos sites eletrônicos acessíveis e de uso livre, como o Flaticon e o Rawpixel. Além disso, uma paleta de cores foi escolhida para proporcionar uma identidade visual consistente, coerente e agradável aos produtos gerados por este estudo.

A coleta de dados ocorreu entre julho e agosto de 2021. Para a seleção do Comitê de Especialistas que avaliou o guia, foram enviados convites para dez profissionais da saúde (médicos e enfermeiros) que anteriormente participaram de um estudo avaliando as facilidades e dificuldades dos profissionais na identificação, assistência, notificação e monitoramento de casos de sífilis adquirida e gestacional. Esses profissionais manifestaram interesse em participar das demais etapas da pesquisa. O instrumento aplicado continha 74 questões e foi respondido por 20 profissionais, sendo 17 (85%) enfermeiros e 3 (15%) médicos que atuavam na Atenção Primária à Saúde (APS) ou nos Serviços Especializados em Infecções Sexualmente Transmissíveis (SEIST).

Para garantir a representatividade das diferentes categorias e atuações dos profissionais, foram incluídos automaticamente quatro indivíduos que trabalhavam no SEIST, sendo dois médicos e dois enfermeiros, juntamente com um médico que atuava na APS. Os demais participantes eram todos enfermeiros que realizavam seu trabalho na APS. Posteriormente, um sorteio numérico de cinco enfermeiros foi realizado por meio do aplicativo “Sorteador” (http://sorteador.com), com o objetivo de representar a categoria na APS.

O primeiro sorteio ocorreu em julho de 2021, selecionando cinco enfermeiros da APS, e os convites foram enviados por e-mail, com um prazo de 15 dias para resposta. Neste momento, três enfermeiros confirmaram participação na avaliação do guia, entretanto, o mínimo necessário eram seis especialistas. Portanto, foi realizado um segundo sorteio, 20 dias após o anterior, com as mesmas condições, e mais três profissionais aceitaram participar, totalizando seis especialistas que realizaram a avaliação do guia.

Para a coleta de dados, foi utilizada a ferramenta denominada “Validação do guia de conteúdo técnico-científico e casos clínicos”, elaborada no Google Forms. Essa ferramenta incluiu um total de 16 questões divididas em três âmbitos principais: A – Conteúdo técnico-científico; B – Casos clínicos de sífilis adquirida e gestacional; e C – Caracterização sociodemográfica e trabalhista dos especialistas.

As variáveis que compuseram o instrumento para avaliação do conteúdo, na primeira dimensão, foram: apresentação geral, conteúdo, linguagem, organização, aprendizado, objetividade na gestão de casos de sífilis adquirida e gestacional, e observações ou recomendações relacionadas ao conteúdo. Na avaliação dos casos clínicos, na segunda seção, considerou-se a condução de casos de sífilis adquirida e gestacional, bem como as recomendações relacionadas a esses casos clínicos. Para caracterizar os especialistas, foram coletadas as seguintes variáveis: categoria profissional, gênero, idade, município e unidade federativa, e tempo de atuação na APS ou SEIST.

Para avaliar a concordância, foi adotada uma escala de Likert com cinco graus, variando de um a cinco. Os parâmetros avaliativos estabelecidos foram: 5) concordo totalmente; 4) concordo parcialmente; 3) não concordo, nem discordo; 2) discordo parcialmente; e 1) discordo totalmente. Uma questão adicional foi incluída para considerações, observações ou dicas(7). A concordância foi calculada através do índice de validade de conteúdo (IVC), considerado aceitável quando atinge no mínimo 80%. O cálculo do IVC é realizado dividindo a soma das respostas 4 e 5 pela soma total de todas as respostas(8).

Os dados coletados foram registrados em uma planilha online do Google Sheets, disponível no Google Drive e organizados por nome e rótulos numéricos para identificação dos profissionais. Por exemplo, “E1” representa o primeiro enfermeiro, “E2” o segundo enfermeiro, “M1” o primeiro médico, e assim por diante. As informações obtidas foram apresentadas em formato textual e tabular, utilizando frequências absolutas e relativas para melhor visualização e compreensão dos resultados. A análise das informações incluiu uma codificação para identificação de inconsistências e incoerências, possibilitando a aplicação de testes estatísticos relevantes ao estudo(9-10).

 

RESULTADOS

O guia técnico (Figura 1) foi construído no programa de edição PowerPoint 2016, desenvolvido pela Microsoft, com formato Widescreen 16:9, contendo 150 páginas. Cada página possui o tamanho de 33,87 × 19,05 centímetros (cm), e o arquivo foi disponibilizado na extensão Portable Document Format (PDF) versão 1.7, com um tamanho total de 5,30 megabytes (MB).

O material é responsivo e adaptável, ajustando-se a diferentes tamanhos de telas de visualização. Seu design foi elaborado pelos autores, seguindo os princípios da colorimetria em RGB (red, green, blue), utilizando a paleta de cores do Adobe Color. Foram selecionadas cores principais, como roxo-claro, vermelho-cereja, azul-claro, verde-claro e amarelo-claro. Além disso, cores secundárias, como cinza, preto, branco, azul escuro e lilás, foram adicionadas para criar contraste com as cores principais.

Os ícones e imagens, obtidos por meio de sites eletrônicos de livre acesso, foram escolhidos com o intuito de ilustrar e enriquecer o conteúdo do guia, proporcionando uma melhor compreensão dos tópicos abordados.

 

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Figura 1 - Página inicial do Guia Técnico para Gestão de Casos de Sífilis Adquirida e Sífilis Gestacional. Porto Alegre, RS, Brasil, 2023

 

Ele foi estruturado em diferentes seções que incluem a abordagem da identificação, assistência, notificação e monitoramento dos casos de sífilis adquirida e sífilis gestacional. Além disso, inclui um capítulo de apresentação, casos clínicos, referências e créditos (Figura 2).

 

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Figura 2 - Página inicial de cada capítulo do guia técnico. Porto Alegre, RS, Brasil, 2023

 

O guia técnico possui um primeiro eixo intitulado “Apresentação”, que aborda temas relacionados ao sexo seguro e à prevenção combinada. Neste eixo, são fornecidas informações sobre o rastreamento da sífilis e outras ISTs, como abordar o tópico da sexualidade com um indivíduo, conceitos de sexo seguro e adoção de medidas de proteção adequadas, além do desenvolvimento de habilidades de comunicação para realizar a avaliação de riscos de um paciente.

O segundo tópico é intitulado “Identificação” e foi subdividido em duas partes: “Síndrome da Úlcera Genital” e “Sífilis”. No subtema “Síndrome da Úlcera Genital”, são abordados aspectos relacionados à definição desta síndrome, que engloba diferentes condições que apresentam úlceras genitais como sintoma. No subtema “Sífilis”, são discutidos diversos aspectos da doença, desde a sua definição e classificação clínica até informações sobre transmissão, suscetibilidade, vulnerabilidade, imunidade, diagnóstico e particularidades em populações especiais.

No item “Assistência”, são apresentadas as diretrizes e orientações para o tratamento da sífilis adquirida e da sífilis gestacional. O foco está na abordagem terapêutica adequada e individualizada, considerando as necessidades específicas de cada paciente atendido pelos profissionais de saúde. Aspectos relacionados à utilização da Penicilina Benzatina G (BGP) são discutidos, incluindo sua administração e a ocorrência da reação de Jarisch-Herxheimer, bem como a segurança e eficácia deste medicamento. O guia também explora a importância do teste de sensibilidade para a penicilina, a realização do tratamento em gestantes, o tratamento das parcerias sexuais e a promoção de estratégias de prevenção combinada.

O tópico “Registro de Notificação” aborda a importância de realizar uma notificação adequada para a compreensão dos cenários epidemiológicos da sífilis. Ele é estruturado em quatro pontos principais: definição de critérios de notificação dos casos de sífilis adquirida, gestacional e congênita; objetivos de realizar a vigilância epidemiológica; notificação compulsória da sífilis; e estratégias de prevenção e controle da doença.

No eixo “Monitoramento”, são abordados aspectos relacionados ao acompanhamento e monitoramento dos casos de sífilis. Ele é composto por quatro pontos principais: resposta imunológica do indivíduo ao tratamento da sífilis; título e diluição das amostras; critérios de retratamento: reativação ou reinfecção; e definição, tratamento e monitoramento da neurossífilis.

Por fim, no eixo “Casos Clínicos”, são apresentados exemplos práticos de casos clínicos de sífilis adquirida e sífilis gestacional. Esses casos são fictícios, mas foram elaborados com base em situações reais que podem ser encontradas no dia a dia dos serviços de saúde, tanto na APS quanto no SEIST. Ao final do guia técnico, é disponibilizado um gabarito com feedback, que possibilita a revisão e a verificação das respostas dadas, bem como o esclarecimento de dúvidas.

É importante ressaltar que o guia foi desenvolvido com botões clicáveis no formato PDF, permitindo ao profissional acessar rapidamente os tópicos de interesse, garantindo uma navegação mais intuitiva e facilitada. Dessa forma, é possível avançar para a próxima página, voltar à página anterior ou retornar ao sumário para selecionar outro tópico.

Quanto à avaliação do guia técnico, o Comitê de Especialistas foi composto por seis profissionais, sendo 5 (83,3%) enfermeiros e 1 (16,7%) médico. O gênero predominante foi o feminino, representando 5 (83,3%) dos especialistas, e a média de idade observada foi de 45,83 ± 7,22 anos. Todos os participantes do comitê atuavam em serviços localizados no estado do Rio Grande do Sul, sendo metade proveniente da cidade de Porto Alegre e a outra metade de Canoas, Viamão e Uruguaiana. O tempo médio de serviço foi observado em uma mediana de 7,33 (3,87-17) anos.

O guia obteve concordância plena (IVC = 1,00) dos especialistas em relação a todos os itens avaliados, incluindo o conteúdo técnico-científico, os casos fictícios utilizados e a avaliação global, conforme a Tabela 1. Além disso, os especialistas puderam utilizar o material para a simulação dos casos clínicos de sífilis.

 

Tabela 1 - Índice de validação de conteúdo do Guia Técnico para Gestão de Casos de Sífilis Adquirida e Sífilis Gestacional. Porto Alegre, RS, Brasil, 2023 (n=6)

Variáveis

IVC

Apresentação geral contribui para a prática qualificada

1

Conteúdos esclarecem dúvidas e proporcionam reflexão

1

A linguagem dos conteúdos está adequada

1

Conteúdos estão apresentados em uma sequência lógica, objetiva e adequada

1

Conteúdos despertam o interesse, estimulam o aprendizado e contribui para o conhecimento

1

A identificação, assistência, registro de notificação e monitoramentos eram claros e objetivos

 

Sífilis adquirida

1

Sífilis gestacional

1

A simulação de caso clínico ofereceu informação necessária para a tomada de decisão de forma clara e objetiva, em consonância com a sua prática diária

 

Sífilis adquirida

1

Sífilis gestacional

1

Índice de validação do conteúdo global

1

 

Foi destacado pelos especialistas que “as alternativas de retorno minimizam as demais alternativas” (E3) e sugeriram “diminuir a quantidade de texto, substituindo por mapas mentais ou algoritmos” (E5). Ainda, uma das especialistas descreveu o conteúdo como “um material excelente, de leitura e compreensão fácil. Muito bom!” (E5). Apesar dessas sugestões, foi decidido manter o formato de texto, considerando que o acesso por certos dispositivos móveis ou a impressão física do material demandaria uma redução na escala de design, prejudicando a apresentação ao exigir barras de rolagem ou a omissão de informações importantes. Além disso, o acesso do produto por meio de dispositivos móveis foi planejado levando em consideração a sua elaboração no formato Widescreen (horizontal).

O guia técnico para gestão de casos de sífilis adquirida e gestacional foi oficialmente registrado na Câmara Brasileira de Livros e recebeu o International Standard Book Number (ISBN) 978-65-00-32462-4, além de um código de barras correspondente. O direito autoral também foi registrado sob o número DA-2021-014428 e o guia é licenciado sob a Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional CC BY-NC-AS. Essa licença permite que outras pessoas distribuam, adaptem e criem com base no material, em qualquer meio ou formato, desde que seja para fins não comerciais e que a atribuição ao autor seja fornecida.

O guia pode ser acessado pelo endereço eletrônico https://bit.ly/GuiaTrateSifilis ou na Biblioteca Virtual da Atenção Primária à Saúde de Porto Alegre. Atualmente, a performance do acesso ao guia ultrapassou 300 acessos pela Internet.

 

DISCUSSÃO

Para o enfrentamento da epidemia de sífilis, os profissionais de saúde necessitam manter uma suspeita clínica elevada para o diagnóstico, realizando testes em pacientes assintomáticos e proporcionando tratamento e monitoramento a todos os casos, incluindo seus parceiros sexuais. No entanto, estudos demonstram que os serviços de saúde enfrentam dificuldades em relação à triagem, rastreio e diagnóstico da sífilis. Essa situação pode ocorrer devido à falta de solicitação dos testes necessários ou ao início tardio do pré-natal por parte das gestantes, bem como ao tratamento inadequado ou reinfecção por parte dos parceiros. Em conjunto, essas fragilidades contribuem para as elevadas taxas de reinfecção e transmissão vertical da sífilis(11).

A identificação das fases da sífilis também representa um desafio para os profissionais, conforme apontado por um artigo em que 58,7% dos participantes não conseguiram definir corretamente suas diferenças. A distinção entre os estágios é de extrema importância, visto que o tratamento varia de acordo com cada fase da doença. Além disso, o mesmo estudo revelou que uma parcela dos profissionais entrevistados não foi capaz de diferenciar os testes treponêmicos (que detectam anticorpos específicos contra os antígenos da Treponema pallidum) dos não treponêmicos (que detectam anticorpos não específicos para a bactéria) que são preconizados pelo Ministério da Saúde(12).

É crucial reforçar que os profissionais de saúde devem estar adequadamente capacitados para realizar o acolhimento e a escuta qualificada dos pacientes, criando um vínculo com os usuários. Esse vínculo, quando estabelecido de forma efetiva, desempenha um papel estratégico poderoso na transformação das práticas de saúde cotidianas(13). Uma abordagem inadequada das necessidades, subjetividades e vulnerabilidades de cada indivíduo dificulta tanto a compreensão da magnitude do tratamento da sífilis quanto a adesão ao tratamento(14-15).

Outro fator relevante é a subnotificação, que é recorrente no Brasil. A falta de notificação, combinada com a qualidade insatisfatória dos registros que são realizados, dificulta a criação de estratégias eficazes para o controle da doença, uma vez que não se tem conhecimento da verdadeira gravidade do problema(5). Uma pesquisa demonstrou que entre os profissionais de saúde participantes, 4,7% não reconheceram a sífilis congênita como uma doença que requer notificação. Esse achado é preocupante, visto que ela está incluída, desde 1986, na Lista Nacional de Notificação Compulsória de Doenças, Agravos e Eventos de Saúde Pública e, ainda assim, há profissionais que não possuem conhecimento sobre essa obrigatoriedade, o que favorece a subnotificação da doença(12).

Nessa mesma perspectiva, uma pesquisa sobre o conhecimento do manejo da sífilis pelos profissionais que realizam pré-natal na APS verificou que eles ainda têm condutas que contradizem os protocolos, como tratamento inadequado, o que contribui para a transmissão contínua da infecção. Assim, a educação em saúde desempenha um papel fundamental e imprescindível na prestação do cuidado, à medida que a disponibilização de informações relevantes, a identificação e busca ativa dos parceiros sexuais e a adoção de intervenções para a prevenção são estratégias essenciais que, atreladas à corresponsabilização do paciente, podem contribuir para a redução da sífilis(12).

Dessa forma, ferramentas para o aprimoramento profissional, como guias técnicos, se destacam pela oportunidade de contribuir para a educação continuada dos profissionais de saúde no manejo da sífilis. Um trabalho desenvolvido em Goiânia evidenciou resultados positivos após uma ação de educação permanente junto aos profissionais, a respeito do seu entendimento da doença, possibilitando a transformação de suas práticas assistenciais para a resposta rápida à sífilis e um cuidado mais qualificado na prevenção, assistência, vigilância e tratamento da doença(16).

Outros trabalhos que abordam a enfermagem acerca de sua formação na APS relacionada ao manejo da sífilis revelam um interesse e busca significativa por programas de especialização e atualização do conhecimento por parte dos profissionais. Esses estudos revelam, como resultados, a existência de um contingente de enfermeiros motivados e engajados em aprimorar e aprofundar sua prática profissional(17-18). Em um estudo realizado com equipes de uma Estratégia Saúde da Família (ESF), foi constatada boa adesão por parte da maioria dos profissionais quanto às ferramentas de aprimoramento e educação permanente em saúde. Além disso, mais de 95% dos participantes afirmaram já ter realizado capacitações e/ou treinamentos específicos sobre a identificação da sífilis gestacional nos últimos cinco anos(19).

Por fim, a partir dos resultados do atual estudo, o guia técnico foi submetido à etapa de avaliação por um comitê de especialistas para aprimoramento e valorização do recurso educativo. A avaliação de conteúdo em materiais educativos é uma etapa fundamental antes de sua implementação na assistência. Neste estudo, foram utilizados critérios pré-estabelecidos para avaliar a qualidade do guia, e obteve-se um IVC superior a 80%, resultado esse também encontrado em outros trabalhos que apresentam a qualidade de seus instrumentos educacionais como forma de suprir lacunas do seu exercício laboral(20-21).

Este estudo apresentou algumas limitações, relacionadas principalmente à discrepância entre a amostra estimada e a amostra efetivamente envolvida, devido ao número de participantes ter sido inferior ao planejado inicialmente. Essa situação pode ter sido causada pela pandemia de COVID-19, que levou a uma exaustão física e emocional dos profissionais de saúde. Além disso, o estudo não contou com a participação de profissionais dentistas para elucidar suas demandas particulares em relação ao cuidado ao usuário com sífilis. Também não é possível generalizar os resultados deste estudo, visto que não se obteve uma representatividade geográfica dos profissionais do país, e o local do estudo concentrou-se predominantemente na região sul do Brasil.

 

CONCLUSÃO

O presente estudo possibilitou o desenvolvimento e avaliação de um guia técnico para gestão de casos de sífilis adquirida e sífilis gestacional, fundamentado em referências de órgãos públicos e literatura atualizada. Dessa forma, os resultados encontrados demonstram claramente que a capacitação e atualização dos profissionais por meio da educação continuada e permanente em saúde desempenham um papel fundamental no combate à disseminação da sífilis.

É fundamental a conscientização dos profissionais de saúde sobre suas facilidades e dificuldades, para que possam refletir sobre sua prática profissional. Essa reflexão possibilita a identificação das necessidades de aprimoramento e informações que ainda carecem de entendimento pelos profissionais, visando à prestação de uma assistência de qualidade aos indivíduos com sífilis adquirida ou gestacional.

O uso de recursos como o guia construído neste estudo tem o potencial de contribuir para o aprimoramento e a atualização técnico-científica dos profissionais de saúde, estimulando o desenvolvimento de habilidades na gestão da sífilis. O guia fornece uma base adequada para realizar um atendimento apropriado ao usuário com sífilis, registrar informações completas e de qualidade no prontuário do paciente, preencher corretamente a ficha de notificação e realizar um monitoramento eficiente dos casos ativos. Dessa forma, seu uso colabora para o conhecimento das condições epidemiológicas reais da sífilis, auxiliando na adoção de ações mais efetivas para alcançar o controle e cura da doença.

A utilização prática do guia pelo comitê de especialistas nas atividades de identificação, assistência, registro de notificação e monitoramento dos casos clínicos permitiu que os profissionais o aplicassem de forma direta e concreta. Essa experiência realça a eficácia e relevância do guia como uma ferramenta de apoio para os profissionais de saúde lidarem com casos de sífilis em sua rotina de trabalho.

Com base no IVC atingido, o guia obteve excelentes resultados em todos os itens avaliados pelos especialistas. Portanto, ele reflete sua qualidade como uma ferramenta instrucional e didática que oferece uma consulta rápida e prática para auxiliar os profissionais de saúde no atendimento dos usuários com sífilis adquirida ou gestacional.

 

*Artigo extraído da dissertação de mestrado “Protótipo de aplicação móvel para gestão de casos de sífilis adquirida e gestacional”, apresentada à Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre, Porto Alegre, RS, Brasil.

 

CONFLITO DE INTERESSES

Os autores declaram não haver conflito de interesses.

 

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Submissão: 15/06/2023

Aprovado: 21/07/2023

 

CONTRIBUIÇÃO DE AUTORIA

Concepção do projeto: Dorneles FV, Silva MX, Silva GM, Paz AA

Obtenção de dados: Dorneles FV, Silva MX, Silva GM, Paz AA

Análise e interpretação dos dados: Dorneles FV, Silva MX, Silva GM, Paz AA

Redação textual e/ou revisão crítica do conteúdo intelectual: Dorneles FV, Silva MX, Oliveira AC, Silva GM, Behrends DB, Paz AA

Aprovação final do texto a ser publicada: Dorneles FV, Silva MX, Oliveira AC, Silva GM, Behrends DB, Paz AA

Responsabilidade pelo texto na garantia da exatidão e integridade de qualquer parte da obra: Dorneles FV, Silva GM, Paz AA

 

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