ORIGINAL

 

Sofrimento psíquico de trabalhadores de saúde mental em contexto pandêmico e os fatores associados: estudo transversal

 

Ana Luisa Camachi Stander1, Márcia Aparecida Ferreira de Oliveira2, Heloísa Garcia Claro3, Gabriella de Andrade Boska4, Júlia Carolina de Mattos Cerioni Silva2, Guilherme Correa Barbosa1

 

1Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Botucatu, SP, Brasil

2Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil

3Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil

4Universidade Estadual do Centro-Oeste, Guarapuava, PR, Brasil

 

RESUMO

Objetivo: Analisar o sofrimento psíquico de trabalhadores dos serviços de saúde mental em contexto pandêmico e identificar os fatores associados. Método: Pesquisa transversal, com 108 trabalhadores de quatro serviços de saúde mental de um município do interior paulista. Coleta de dados realizada on-line entre outubro e dezembro de 2020 por meio de questionário sociodemográfico e Escala Self Report Questionnaire-20 (SRQ-20). Os dados foram analisados por estatística descritiva e por regressão linear múltipla de mínimos quadrados ordinários, na intenção de analisar os fatores associados para a variação no escore da escala. Resultados: Os trabalhadores apresentaram média elevada na escala SRQ-20 (15,07), o que indica grande sofrimento psíquico. Fazer acompanhamento psicológico e/ou psiquiátrico durante a pandemia de covid-19 esteve associado à minimização deste sofrimento, com redução de, em média, três dos sintomas avaliados pela escala. Conclusão: O acompanhamento em saúde mental para os trabalhadores no contexto pandêmico pode ser uma importante estratégia de enfrentamento associada à redução do sofrimento psíquico.

 

Descritores: Pandemias; Saúde Mental; Pessoal de Saúde.

 

INTRODUÇÃO

A pandemia da Sars-CoV-2 (covid-19) foi decretada oficialmente pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em março de 2020, criando demandas para a adoção de medidas emergenciais de saúde pública por todos os países(1). No Brasil, até meados de agosto de 2023, 704 mil óbitos foram atribuídos à covid-19(1-2). Neste contexto, somam-se o estado de distanciamento social e a disseminação de notícias falsas sobre a doença, o que torna mais comuns e evidentes os sentimentos de insegurança, pânico e medo, prejudicando a saúde mental de diversos grupos da população(1).

Considerando esta situação, foram identificados alguns grupos sociais mais vulneráveis a desenvolver problemas relacionados à saúde mental neste cenário mundial: profissionais da saúde, idosos, pessoas com antecedentes psiquiátricos, jovens, mulheres, pessoas infectadas pela covid-19 e seus familiares(3).

 Sendo os profissionais de saúde  incluídos no grupo de mais propensos ao sofrimento psíquico no período de pandemia, os sintomas mais encontrados entre eles foram aumento nos níveis de ansiedade, depressão, fadiga crônica e estresse(3). Em relação aos motivos para tais ocorrências, encontram-se: preocupação em contaminar familiares, falta de apoio; ausência de capacitações e treinamentos com a equipe para o cuidado; ausência de promoção de apoio psicológico e falta de Equipamentos de Proteção Individual (EPI´s), além da sobrecarga profissional(4-5). Diante das diversas esferas impactadas pela pandemia aos profissionais da saúde, é possível perceber as reverberações em sua saúde de forma geral.

Pesquisas realizadas com profissionais da saúde na linha de frente na pandemia da covid-19 no ano de 2020 apresentam incidência de 23,1% a 39,4% para ansiedade, e 27,4% a 31,3% para depressão, com destaque maior em mulheres e em enfermeiros, sendo que mulheres possuem um risco de desenvolvimento de ansiedade 16,6 vezes maior do que entre os homens(6-7).

Um estudo realizado para verificar o impacto psicológico e mental da pandemia da covid-19 entre população em geral, trabalhadores da saúde e usuários de serviços de saúde com maior risco de covid-19 aponta que a prevalência combinada de ansiedade e depressão é de 33% e 28%, respectivamente, e que os fatores de risco comuns são: ser mulheres, ser enfermeiras, ter menor nível socioeconômico, ter alto risco de contrair covid-19 e isolamento social. No entanto, os fatores de proteção são: informações atualizadas e precisas, recursos médicos suficientes e  adoção de medidas preventivas(7).

O adoecimento mental na população geral e em profissionais da saúde tem sido estudado em países como a China, Itália, Espanha, Índia, Iraque, Turquia dentre outros países(1). Porém, observa-se uma lacuna nas publicações quando especificamos os profissionais em trabalhadores que atuam nos serviços de saúde mental.

Diante do aumento na demanda por serviços de saúde mental, os estabelecimentos ficaram sobrecarregados, não havendo funcionários o suficiente para suprir o aumento da procura por atendimento, fragilizando a qualidade do serviço e aumentando o risco de gerar uma sociedade mentalmente doente(8).

Este cenário é motivador para refletir sobre como a saúde psíquica dos profissionais que atuam em atendimentos de saúde mental foi afetada na pandemia. O presente estudo espera trazer contributos à identificação dos fatores envolvidos e propiciar discussões que beneficiem a saúde destes trabalhadores.

Com isso, esta pesquisa objetiva analisar o sofrimento psíquico de trabalhadores dos serviços de saúde mental em contexto pandêmico e identificar os fatores associados.

 

MÉTODO

Trata-se de um estudo transversal de abordagem quantitativa, que buscou analisar o sofrimento psíquico de trabalhadores dos serviços de saúde mental durante o primeiro ano de pandemia de covid-19. Por ser um estudo observacional em epidemiologia, utilizou-se a ferramenta STROBE (Strengthening the Reporting of Observational Studies in Epidemiology) como referência.

O estudo ocorreu em um município do interior paulista com cerca de 130 mil habitantes. Quatro serviços de saúde mental compuseram este cenário, dentre eles: uma Unidade de Internação Psiquiátrica; um Serviço de Atenção e Referência em Álcool e outras Drogas; um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas II (CAPSad II), e um Centro de Atenção Psicossocial II (CAPS II).

O contato com os serviços se deu primeiramente pelo pesquisador, que se reuniu com as coordenações com a finalidade de apresentar o projeto e a proposta da pesquisa. Em seguida, o autor recolheu os contatos de e-mails dos trabalhadores. O convite foi enviado individualmente com uma carta explicando o objetivo do estudo juntamente com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Ao aceitar a participação, o trabalhador assinou digitalmente o TCLE e devolveu via e-mail ao pesquisador, sendo orientado a manter uma cópia. Após, o pesquisador enviou o instrumento de coleta de dados via formulário on-line (Google Forms), respeitando os procedimentos éticos.

A coleta de dados ocorreu entre outubro e dezembro de 2020. Todos os trabalhadores dos quatro serviços de saúde mental foram convidados a participar, o que totalizou uma população de 141.

Foram incluídos indivíduos com 18 anos ou mais, que faziam parte do quadro de trabalhadores dos serviços de saúde mental selecionados, possuindo  pelo menos seis meses de experiência prática, encontrando-se ativos no momento da pesquisa, ou seja, não estavam de férias ou de licença. Foram excluídos aqueles que não concluíram as respostas dos instrumentos após a assinatura do TCLE.

Dos 141 trabalhadores, 33 não preencheram os critérios de inclusão, portanto, a amostra final, definida por conveniência, foi de 108.

O instrumento foi elaborado pelos próprios pesquisadores e composto por um questionário sociodemográfico, dados sobre o contexto pandêmico e a Escala Self Report Questionnaire-20 (SRQ-20). As variáveis coletadas foram: local onde mora e com quem mora, idade, sexo, estado civil, raça/cor, maior grau de escolaridade, se possui pós-graduação, profissão, em qual unidade atua, há quanto tempo trabalha neste serviço, renda mensal, se houve diminuição da renda familiar em decorrência da pandemia, período de atuação, carga horária, se possui outro vínculo empregatício, tipo de vínculo empregatício, se o entrevistado faz parte do grupo de risco, se há pessoas do grupo de risco para covid-19 na casa em que mora, contato direto com casos suspeitos e/ou confirmados de covid-19, realização de acompanhamento psicológico passado e/ou atual, e como estão as atividades atualmente, com relação ao afastamento, função alterada, ou conservação do posto habitual.

Considerou-se como grupo de risco quem respondeu sim para um ou mais dos seguintes quesitos: pessoa acima de 60 anos, cardiopata, diabético, hipertenso e/ou com problemas respiratórios.

A Escala Self Report Questionnaire-20 (SRQ-20) foi utilizada para verificar o sofrimento psíquico dos trabalhadores. Desenvolvida pela OMS como instrumento de rastreio, é composta por 20 itens autoaplicáveis que avaliam a manifestação de sintomas psiquiátricos. Cada item pode ser pontuado com escore zero ou um, em que o escore zero aponta que os sintomas estiveram ausentes nos últimos 30 dias, e o escore um indica presença do sintoma. A validação da SRQ-20 para o Brasil apontou especificidade de 0,80, e sensibilidade de 0,83, sendo  sete o ponto de corte. Escore maior que  sete  aponta a presença de sintomas psiquiátricos menores(9).

A análise dos dados foi realizada pelo programa estatístico SAS, versão 9.4. Para a análise descritiva e do escore da escala, adotaram-se medidas como média, mediana e desvio padrão, considerando intervalo de confiança de 95%. Para as variáveis categóricas e descrição dos indivíduos, calcularam-se as frequências relativa e absoluta.

O escore da escala SRQ-20 foi calculado considerando um ponto para as respostas “Sim” e zero pontos para as respostas “Não”, com pontuação máxima de 20. Os indivíduos que pontuaram acima de sete (nota de corte) foram considerados apresentadores de sofrimento psíquico, seguindo as orientações de Mari & Willians (1986)(9).

A análise inferencial foi realizada por regressão linear múltipla de mínimos quadrados ordinários, na intenção de identificar fatores associados à alteração no escore total da escala (SRQ-20). A análise objetivou encontrar um modelo, um conjunto de variáveis que explicite a variação variável dependente (escore total da escala SRQ-20). Considerou-se como valor de referência para diferença significante p 0,05.

A presente pesquisa foi aprovada pelo comitê de ética em pesquisa da Faculdade de Medicina de Botucatu da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, sob o nº 4.296.005 de 2020,  como preconiza a Resolução CONEP n° 466/12.

 

RESULTADOS

Dos 108 trabalhadores que participaram do estudo, 36,1% (39) estavam vinculados à Unidade de Internação Psiquiátrica; 27,8% (30), ao Serviço de Atenção e Referência em Álcool e Outras Drogas; 23,1% (25) ao CAPS II, e 13% (14) ao CAPSad II.

Com relação às características sociodemográficas, 83,3% (90) dos participantes eram do sexo feminino; 33,3% (36), com idade entre 38 e 47 anos; 81,5% (88) se autodeclararam brancos, e 52,8% (57) tinham uma relação estável ou casamento e viviam (57,7% - 62) com o cônjuge/companheiro(a). Quanto à escolaridade, 30,6% (33) possuíam pós-graduação; 23,4% (25) ensino superior, e 24,3% (25) formação técnica.

A maioria  indicou já ter realizado acompanhamento psicológico e/ou psiquiátrico antes da pesquisa, 52,3% (58), porém, no momento da pesquisa, apenas 21,6% (23) dos trabalhadores mantinham acompanhamento.

A categoria profissional mais prevalente foi da equipe de enfermagem, 63% (68), sendo 47,2% (51) técnicos ou auxiliares de enfermagem, e 16,6% (18) enfermeiros. As demais categorias foram auxiliar de serviços de saúde, 11,1% (12); médico, 6,5% (7); assistente social, 5,6% (6); psicólogo, 4,6% (5); terapeuta ocupacional, 3,7% (4); farmacêutico, 0,9% (1); profissional de educação física, 0,9% (1); fisioterapeuta, 0,9% (1); coordenador de serviço, 0,9% (1); recepcionista, 0,9% (1), e outros 4,6%.

O tempo de atuação no serviço era de  cinco e sete anos para 39,6% (42) dos trabalhadores, com jornada de trabalho de 30 horas semanais, 78,4% (84), e sem outro vínculo empregatício, 74,8% (80).

Com relação à exposição dos trabalhadores de saúde mental à covid-19, apresentado na Tabela 1, 45% (48) moravam com uma pessoa que fazia parte do grupo de risco; 79,3% (85) atuavam em contato direto com casos suspeitos e/ou confirmados de covid-19, e 95,5% (103) continuaram atuando em sua função durante a pandemia.

 

Tabela 1 - Dados sobre a exposição de trabalhadores de saúde mental à covid-19. Botucatu, SP, Brasil, 2020 (n=108)

Variáveis

N

%

 

 

 

 

Mora com quem?

Cônjuge/companheiro

62

57,7

Filhos

61

56,8

Sozinho

16

15,3

Pai/mãe

14

13,5

Netos

5

5,4

Amigos

1

1,8

Na casa onde mora, há pessoas do grupo de risco para a covid-19?

Não

59

55

Faz parte de grupo de risco?

Não

73

68,5

Atua em contato direto com casos suspeitos e/ou confirmados de covid-19?

Sim

85

79,3

 

 

Atividades atuais

Atua na área de formação profissional.

104

95,5

Afastado por ser grupo de risco.

3

2,7

Função alterada para atender as demandas da pandemia.

1

1,8

 

Ao analisar a escala SRQ-20, como mostra a Tabela 2, as respostas dos participantes tiveram média de 15 pontos e mediana de 16, ambas consideravelmente acima do ponto de corte sete da escala, indicando sofrimento psíquico por 98,1% dos participantes.

A menor pontuação encontrada foi seis, estando apenas um ponto abaixo da nota de corte, e a maior pontuação mostrou-se sendo o máximo possível de se atingir na aplicação do questionário, 20 pontos.

Devido ao grande intervalo numérico encontrado, o valor de média pode não refletir corretamente o cenário pesquisado. Neste caso, o valor da mediana embasa a interpretação, visto que é condizente com a informação sugerida no valor da média. A credibilidade dos dados é indicada pelo desvio padrão de, aproximadamente,  quatro pontos e pelos valores superiores e inferiores do intervalo de confiança de 95%, estando próximos entre si.

 

Tabela 2 - Medidas descritivas dos escores da escala SRQ-20. Botucatu, SP, Brasil, 2020 (n=108)

 

Média

Mediana

IC95% limite inferior

IC95% limite superior

Desvio Padrão

Mínimo

Máximo

Escore SRQ-20

15,07

16,00

14,26

15,87

4,21

6,00

20,00

 

Frequências

 

 

 

 

 

 

N

%

 

 

 

 

 

De 0 a 6

2

1,9

 

 

 

 

 

De 7 a 10

21

19,4

 

 

 

 

 

De 11 a 15

26

24,1

 

 

 

 

 

De 16 a 20

59

54,6

 

 

 

 

 

Total

108

100

 

 

 

 

 

IC – Intervalo de Confiança.

 

A Tabela 3 apresenta as medidas descritivas de todos os itens da escala SRQ – 20 e as proporções de respostas para “Sim” e “Não”. Com exceção da pergunta: “Sente-se nervoso (a), tenso (a) ou preocupado (a)?”, todas as respostas apresentaram maior porcentagem de respostas “Sim”, contribuindo para explicar a alta média de pontuação encontrada. Apenas um trabalhador não apresentou pensamentos de suicídio.

 

Tabela 3 - Medidas descritivas dos itens da escala SRQ-20. Botucatu, SP, Brasil 2020 (n=108)

Itens da escala SRQ-20

S

N

%

1-Você tem dor de cabeça frequente?

Sim

67

62,0

2-Tem falta de apetite?

Sim

101

93,5

3-Dorme mal?

Sim

66

61,1

4-Assusta-se com facilidade?

Sim

86

79,6

5-Tem tremores nas mãos?

Sim

98

90,7

6-Sente-se nervoso (a), tenso (a), ou preocupado (a)?

Não

58

53,7

7-Tem má digestão?

Sim

76

70,4

8-Tem dificuldades de pensar com clareza?

Sim

82

75,9

9- Tem se sentido triste ultimamente?

Sim

66

61,1

10-Tem chorado mais do que de costume?

Sim

88

81,5

11-Encontra dificuldades para realizar com satisfação suas atividades diárias?

Sim

76

70,4

12- Tem dificuldades para tomar decisões?

Sim

78

72,2

13-Tem dificuldades no serviço (seu trabalho é penoso, causa-lhe sofrimento)?

Sim

91

84,3

14-É incapaz de desempenhar um papel útil em sua vida?

Sim

102

94,4

15-Tem perdido o interesse pelas coisas?

Sim

79

73,1

16-Você se sente uma pessoa inútil, sem préstimo?

Sim

103

95,4

17-Tem tido pensamentos de suicídio?

Sim

107

99,1

18-Sente-se cansado (a) o tempo todo?

Sim

71

65,7

19-Você se cansa com facilidade?

Sim

62

57,4

20-Tem sensações desagradáveis no estômago?

Sim

79

73,1

 

Na análise inferencial apresentada na Tabela 4, foi encontrada relação inversamente proporcional com a variável acompanhamento atual com psicólogo e/ou psiquiatra, associada a menores escores de sofrimento psíquico (coeficiente negativo e p<0,05).

Nenhuma outra variável apresentou valor de p superior a 5% e foram as variáveis mantidas no modelo como controles, dessa forma, entendemos que o acompanhamento psicológico e/ou psiquiátrico possui associação protetora, em contexto pandêmico, independente da idade, gênero, raça/cor, estado civil, escolaridade, renda, carga horária semanal, vínculo empregatício, pessoas da família em situação de risco, pertencer ao grupo de risco, se atuou diretamente com pacientes com covid-19 e como está exercendo as suas atividades no momento.

O valor de beta (coeficiente de regressão) para esta variável foi de quase três pontos, o que significa que estar em tratamento psicológico e/ou psiquiátrico, naquele momento, associou-se a uma redução de três pontos na média da escala SRQ-20, quando comparado a quem não está em tratamento. Considerando que cada ponto do SRQ-20 corresponde a um sofrimento vivenciado, este resultado é expressivo da sintomatologia desta amostra.

O coeficiente R2 foi de 25,4%, o que significa que o conjunto de variáveis independentes escolhido explica cerca de 25% da variação no escore de sofrimento psíquico medido pelo SRQ-20.

 

Tabela 4 – Análise da múltipla das variáveis socioeconômicas em relação à Escala SRQ-20 dos trabalhadores em saúde mental. Botucatu, SP, Brasil, 2020 (n=108)

Variáveis

β

T

Valor de p

Idade 48 ou mais

0,11

1,15

0,25

Sexo masculino

-0,08

-0,84

0,40

Etnia negra

0,10

1,06

0,29

Com companheiro

0,16

1,66

0,09

Escolaridade

-0,09

-0,92

0,35

Qual sua carga horária semanal?

0,14

1,42

0,15

Diminuiu a renda?

-0,13

-1,42

0,15

Você tem outro vínculo empregatício?

-0,01

-0,13

0,89

Na casa onde mora, há pessoas do grupo de risco para a covid-19?

-0,07

-0,74

0,45

Grupo de risco

-0,09

-0,96

0,33

Atualmente você está realizando algum tipo de acompanhamento psiquiátrico e/ou psicológico?

-0,27

-2,66

0,00*

Em seu local de trabalho, você atua em contato direto com casos suspeitos e/ou confirmados de covid-19?

-0,06

-0,66

0,51

Atualmente como estão suas atividades?

-0,03

-0,40

0,68

R square: coeficiente de determinação - 0,254; *p<0,05.

 

DISCUSSÃO

Os resultados da escala SRQ-20 expõe, de maneira alarmante, níveis elevados de sofrimento psíquico entre trabalhadores de saúde mental do interior paulista, no contexto pandêmico. Foi possível estabelecer uma relação deste estudo com publicações recentes sobre saúde mental no período da pandemia, sobretudo aquelas realizadas com a equipe de enfermagem(10-13).

A exaustão emocional e o sofrimento psíquico desta categoria profissional já foram constatados no período de pandemia a nível nacional e internacional em diferentes cenários(4,11-13), porém, poucos estudos utilizaram a escala SRQ-20 como instrumento de coleta de dados, e a maioria foi conduzido em apenas um serviço de saúde, o que difere do presente estudo que foi realizado em uma rede de serviços de saúde mental.

Uma pesquisa realizada com profissionais da saúde que prestavam cuidados a pessoas com covid-19 em um hospital da rede pública de saúde, utilizando a escala SRQ-10, apontou que 40% dos entrevistados apresentaram pontuação compatível com sofrimento psíquico(14), em comparação com 98,1% encontrados nesta pesquisa.

Um estudo realizado com enfermeiros portugueses durante a pandemia, apesar de também encontrar níveis de sofrimento mental, constatou que a especialidade em saúde mental estava menos associada ao aparecimento de sintomas ansiosos, depressivos e de estresse(15).

Apesar do fator protetivo associado a ser um profissional de saúde mental quando comparado a outras categorias descritas na literatura, é visível o elevado nível de pressão ocupacional enfrentado por esses trabalhadores, principalmente em razão do aumento no número de atendimentos e recursos limitados de profissionais nessa área(8,13). Observamos, em nossos dados, o intenso sofrimento psíquico desta categoria é descrito na literatura como relacionado a sentir-se impotente para suprir a nova e crescente demanda por acolhimento e acompanhamento(8,13-14).

No atual estudo, sentimentos de inutilidade foram referidos por mais de 90% dos trabalhadores, e pensamento sobre suicídio por quase 100%, o que indica que a própria especificidade do cuidado em saúde mental demanda de atenção. Evidenciamos, de forma clara, que os profissionais de saúde mental, que, no momento da coleta de dados, alegaram estar realizando acompanhamento psicológico e/ou psiquiátrico, apresentaram índices menores de sofrimento psíquico, com uma redução em média de 2,78 pontos no escore do SRQ-20. Este resultado indica expressivo efeito estatístico e é possível afirmar que o cuidado em saúde mental para os profissionais aqui entrevistados deve ser estimulado, protegido e possibilitado pelos gestores, municípios etc.

Ao mesmo tempo, outro estudo realizado com trabalhadores da mesma rede de saúde mental identificou que realizar acompanhamento psicológico/psiquiátrico durante a pandemia foi preditor de maior sobrecarga no trabalho, provavelmente relacionado a necessidades prévias de cuidado. Destacamos a diferença no objeto de análise entre as duas pesquisas, mas vale ressaltar a importância de estudos que se aprofundem nesta variável(16).

O que as pesquisas apresentam em comum, corraborando os achados do presente estudo, é o perfil dos profissionais formado principalmente por pessoas do sexo feminino(10,17), normalmente associado ao fato da maioria dos entrevistados compor a equipe de enfermagem(18).

Em relação ao estado civil e composição familiar, um pouco mais da maioria dos entrevistados é casado ou possui companheiro, fato contraditório com um estudo americano, que constatou menor tendência de uniões estáveis na pandemia(19-20). Grande parte também alegou não morar sozinha, fator este que diminui as chances de apresentar sintomas associados ao estresse, ansiedade, insônia, pânico e demais características associadas a transtornos mentais(18,20).

Também foi observada formação técnica, superior ou em nível de pós-graduação completo na maioria dos entrevistados. Sendo profissionais da área da saúde, a grande parcela dos entrevistados detém conhecimento científico sobre a covid–19, fator que, em um estudo, foi associado à diminuição das sensações de medo e ansiedade, causadas pela pandemia(21), mas que, na presente análise, não apresentou diferença.

Notamos grande discrepância entre os profissionais que se declararam grupo de risco e os que estão afastados de seus trabalhos regulares por este motivo, além da maioria ter relatado possuir contato direto com casos suspeitos e/ou confirmados de covid-19. Estas informações sugerem que o funcionamento dos serviços em saúde mental incluídos nesta pesquisa não conseguiu atender às recomendações da Portaria Conjunta n°20/2020, de priorizar a permanência em casa e o trabalho à distância para trabalhadores que sejam do grupo de risco(22). Além disso, outro estudo identificou que ser do grupo de risco e manter contato direto com casos positivos de covid-19 pode predizer sobrecarga no trabalho(16).

De acordo com uma revisão de literatura que procurou analisar os mecanismos de resiliência para esses trabalhadores, demais estratégias para preservar a saúde mental dos profissionais de saúde durante períodos de pandemia ou crises sanitárias ainda são escassas, porém, grupos de apoio mútuo durante o horário de trabalho e supervisão técnica para discussão de casos, em que há divisão da sobrecarga afetiva, emocional e técnica que os casos impõem, podem contribuir para a melhoria da saúde mental(23-24).

Em serviços em que o suporte por pares é estimulado e quando os profissionais são preparados para detectar entre si o sofrimento psíquico e acolher a seus colegas, há impacto positivo na saúde mental dos trabalhadores, percebido pela redução de faltas no trabalho, admissão em serviços de saúde, entre outros(24).

 

CONCLUSÃO

Ao analisar o sofrimento psíquico dos trabalhadores de saúde mental de um município do interior paulista por meio do SRQ-20, evidenciamos que aqueles que estavam em acompanhamento psicológico e/ou psiquiátrico tiveram menores escores de sofrimento.

O achado reforça a necessidade de um olhar mais atento aos trabalhadores da saúde, buscando medidas eficazes de promoção e prevenção a saúde, sendo que o acompanhamento em saúde mental no contexto pandêmico pode ser importante estratégia de enfrentamento associada à redução do sofrimento psíquico.

Estudos que analisam o sofrimento psíquico de trabalhadores são bons indicadores de rastreamento da saúde dos profissionais, auxiliando na identificação de fatores de proteção e na reflexão sobre estratégias de enfrentamento.

O estudo tem por limitações a abordagem de somente um município e o não desenvolvimento de estratégias para o problema identificado. Desse modo, tornam-se importantes novas pesquisas que abordem o mesmo conceito de sofrimento psíquico de trabalhadores de serviços de saúde mental para comparação em outros contextos. Esperamos que o estudo sirva como premissa para que formas de enfrentamento sejam identificadas a fim de prezar pela saúde mental e emocional  dos profissionais de saúde.

 

CONFLITO DE INTERESSES

Os autores declaram não haver conflito de interesses.

 

REFERÊNCIAS

1. Moreira WC, Sousa AR, Nóbrega MPSS. Adoecimento mental na população geral e em profissionais de saúde durante a COVID-19: scoping review. Texto Contexto Enferm. 2020;29:e20200215. https://doi.org/10.1590/1980-265X-TCE-2020-0215

 

2. World Health Organization. Number of COVID-19 cases reported to WHO [Internet]. Geneva: WHO; c2023 [citado 2023 ago 8]. Disponível em: https://covid19.who.int/region/amro/country/br

 

3. Pavani FM, Silva AB, Olschowsky A, Wetzel C, Nunes CK, Souza LB. Covid-19 e as repercussões na saúde mental: estudo de revisão narrativa de literatura. Rev Gaúcha Enferm. 2021;42(esp):e20200188. https://doi.org/10.1590/1983-1447.2021.20200188

 

4. Heitzman J. Impact of COVID-19 pandemic on mental health. Psychiatr Pol. 2020;54(2):187-198.  https://doi.org/10.12740/PP/120373

 

5. Santos LG, Menegon FHA, Knoblauch MVA, Andrade GB, Erdmann Al. Strategies for coping with the COVID-19 pandemic in university hospitals: a descriptive study. Online Braz J Nurs. 2022;21 Suppl 2:e20226568.  https://doi.org/10.17665/1676-4285.20226568

 

6. Huang JZ, Han MF, Luo TD, Ren AK, Zhou XP. Mental health survey of medical staff in a tertiary infectious disease hospital for COVID-19. Zhonghua Lao Dong Wei Sheng Zhi Ye Bing Za Zhi. 2020;38(3):192-195.  https://doi.org/10.3760/cma.j.cn121094-20200219-00063

 

7. Luo M, Guo L, Yu M, Jiang W, Wang H. The psychological and mental impact of coronavirus disease 2019 (COVID-19) on medical staff and general public – A systematic review and meta-analysis. Psychiatry Research. 2020;291:113190. https://doi.org/10.1016/j.psychres.2020.113190

 

8. Ćosić K, Popović S, Šarlija M, Kesedžić I. Impact of Human Disasters and COVID-19 Pandemic on Mental Health: Potential of Digital Psychiatry. Psychiatr Danub. 2020;32(1):25-31. https://doi.org/10.24869/psyd.2020.25

 

9. Mari JJ, Willians P. A validity study of a psychiatric screening questionnaire (SRQ-20) in primary care in the city of São Paulo. Br J Psychiatry. 1986;148:23-6.  https://doi.org/10.1192/bjp.148.1.23

 

10. Oliveira WJ, Silva MS, Miguéis GS, Maier SRO, Oliveira WS, Araújo RAF, et al. Implications of Covid-19 on the working conditions of nursing professionals: a descriptive study. Online Braz. J. Nurs. 2022;21 Suppl2:e20226597. https://doi.org/10.17665/1676-4285.20226597

 

11. Santos KM, Galvão MH, Gomes SM, Souza TA, Medeiros AA, Barbosa IR. Depressão e ansiedade em profissionais de enfermagem durante a pandemia da covid-19. Esc Anna Nery. 2021;25(spe). https://doi.org/10.1590/2177-9465-EAN-2020-0370

 

12. Duarte ML, Silva DG, Bargatini MM. Nursing and mental health: a reflection in the midst of the coronavirus pandemic. Rev Gaúcha de Enfermagem. 2021;42(spe). https://doi.org/10.1590/1983-1447.2021.20200140

 

13. Gomes NMR, Pereira MO, Silva DLG, Rodrigues RAF, Abrão AB, Reinaldo AMS. Work process in a mental health service during the Covid-19 pandemic: a qualitative study. Online Braz J Nurs. 2021;20Suppl 1:e20216522. https://doi.org/10.17665/1676-4285.20216522

 

14. Horta RL, Camargo EG, Barbosa ML, Lantin PJ, Sette TJ, Lucini TC, Silveira AF, Zanini L, Lutzky BA. O estresse e a saúde mental de profissionais da linha de frente da COVID-19 em hospital geral. J Bras Psiquiatr. 2021;70(1). https://doi.org/10.1590/0047-2085000000316

 

15. Santos CPJM dos, Silva RP. Impacte da pandemia por covid-19 nos enfermeiros de reabilitação portugueses. Rev Port Enf Reab. 2020;3(2):102-7.  https://doi.org/10.33194/rper.2020.v3.s2.15.5842

 

16. Mombelli JMR, Barbosa GC, Claro HG, Boska G de A, Oliveira MAF de. Predictors burden in mental health workers during the COVID-19 pandemic. Rev Bras Enferm. 2022;75:e20210762. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2021-0762

 
17. Kar SK, Singh A. Mental health of mental health professionals during COVID-19 pandemic: Who cares for it?
Asian J Psychiatr. 2020;53:102385.  https://doi.org/10.1016/j.ajp.2020.102385

 

18. Silva MCN, Machado MH. Sistema de Saúde e Trabalho: desafios para a Enfermagem no Brasil. Cien Saúde Coletiva. 2020;25(1):7-13.  https://doi.org/10.1590/1413-81232020251.27572019

 

19. Wagner BG, Choi KH, Cohen PN. Decline in Marriage Associated with the COVID-19 Pandemic in the United States. Socius: Sociological Research for a Dynamic World. 2020;6(spe).  https://doi.org/10.1177/2378023120980328

 

20. Pereira, MD, Oliveira, LC, Costa, CFT, Bezerra, CMO, Pereira, MD, Santos, CKA, Dantas EHM. The COVID-19 pandemic, social isolation, consequences on mental health and coping strategies: an integrative review Research, Society and Development. 2020;9(7):e652974548.  http://dx.doi.org/10.33448/rsd-v9i7.4548

 

21. Eder SJ, Steyrl D, Stefanczyk MM, Pieniak M, Martínez Molina J, Pešout O, et al. Predicting fear and perceived health during the COVID-19 pandemic using machine learning: A cross-national longitudinal study. PLoS One. 2021;16(3):e0247997.  https://doi.org/10.1371/journal.pone.0247997

 

22. Ministério da Saúde (BR). Portaria Conjunta n° 20 de 18 de junho de 2020. Estabelece as medidas a serem observadas visando à prevenção, controle e mitigação dos riscos de transmissão da COVID-19 nos ambientes de trabalho (orientações gerais). Diário Oficial União [Internet]. 2020 [citado 2023 ago 08];Seção1:14. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-conjunta-n-20-de-18-de-junho-de-2020-262408085

 

23. Pollock A, Campbell P, Cheyne J, Cowie J, Davis B, McCallum J, McGill K, Elders A, Hagen S, McClurg D, Torrens C, Maxwell M. Interventions to support the resilience and mental health of frontline health and social care professionals during and after a disease outbreak, epidemic or pandemic: a mixed methods systematic review. Cochrane Database Syst Rev. 2020;11(11):CD013779.  https://doi.org/10.1002/14651858.CD013779

 

24. Gillard S, Foster R, White S, Barlow S, Bhattacharya R, Binfield P, Eborall R, Faulkner A, Gibson S, Goldsmith LP, Simpson A, Lucock M, Marks J, Morshead R, Patel S, Priebe S, Julie Repper, Rinaldi M, Ussher M, Worner J. The impact of working as a peer worker in mental health services: a longitudinal mixed methods study. BMC Psychiatry. 2022;22(373). https://doi.org/10.1186/s12888-022-03999-9

 

Submissão: 28-Set-2022

Aprovado: 07-Ago-2023

 

CONTRIBUIÇÃO DE AUTORIA

Concepção do projeto: Stander ALC, Oliveira MAF de, Claro HG, Boska G de A, Silva JC de MC, Barbosa GC

Obtenção de dados: Stander ALC, Oliveira MAF de, Claro HG, Boska G de A, Silva JC de MC, Barbosa GC

Análise e interpretação dos dados: Stander ALC, Oliveira MAF de, Claro HG, Boska G de A, Silva JC de MC, Barbosa GC

Redação textual e/ou revisão crítica do conteúdo intelectual: Stander ALC, Oliveira MAF de, Claro HG, Boska G de A, Silva JC de MC, Barbosa GC

Aprovação final do texto a ser publicada: Stander ALC, Oliveira MAF de, Claro HG, Boska G de A, Silva JC de MC, Barbosa GC

Responsabilidade pelo texto na garantia da exatidão e integridade de qualquer parte da obra: Stander ALC, Oliveira MAF de, Claro HG, Boska G de A, Silva JC de MC, Barbosa GC

 

image1.jpg