CARTA AO EDITOR

 

O necessário debate sobre a Prática Avançada em Enfermagem no Brasil

 

Ricardo de Mattos Russo Rafael1, Sonia Acioli1, Livia Angeli Silva2

 

1Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

2Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA, Brasil

 

Compreendendo que a publicação de um manuscrito tem por objetivo circular o pensamento acerca de um temário, expondo contradições e constrangimentos próprios da parcialidade investigativa do ser humano. E, ao torná-lo público, outros elementos se somam ao debate. Consequentemente, o objeto, por vezes, insuficiente do ponto de vista teórico ou metodológico, se robustece e toma nova forma. No caso de um editorial de periódico científico, incorpora-se um elemento a mais enquanto reflete sínteses de produções, posições e política editorial.

Nessa toada, esta carta tem por objetivo traçar ponderações ao editorial intitulado Mais avanços que retrocessos na implementação da Prática Avançada de Enfermagem no Brasil(1). Longe de apontar contra-argumentações para cada ponto do texto, o que se pretende aqui é aprofundar o debate sobre dois grandes tópicos delineados no editorial.

A bem da verdade, é absolutamente indiscutível os esforços e acúmulos relacionados às Práticas Avançadas em Enfermagem (PAE) nos últimos anos. As autoras são precisas em descortinar os fóruns de debates e os avanços regulatórios deste campo. Por outro lado, há de se ponderar que, ainda que tenhamos perseguido um horizonte no exercício profissional, ao que parece, ainda estamos distantes de um consenso teórico sobre este tópico. Um ponto de encontro para esta reflexão se concentra justamente na Atenção Primária à Saúde (APS), uma vez que tem sido a área de atuação prioritária para o desenvolvimento da EPA na América Latina e Caribe. Os anos de acúmulo e de avanços na APS brasileira vêm de antes do debate das PAE se assentarem no Brasil e, consequentemente, exige cautela na incorporação de modelos internacionais.

As práticas de prescrição de medicamentos e de solicitação de exames de apoio diagnóstico, por exemplo, quando comparadas a outros países, representam uma ampliação no escopo de prática e vêm sendo associadas à Enfermeira de Prática Avançada (EPA). Por outro lado, no Brasil, estas práticas estão amparadas, há décadas, pela lei de exercício profissional da(o) enfermeira(o)(2) e têm se consolidado pelo modelo de APS instituído no país. Aliás, apesar da importância de tais práticas compartilhadas com outros profissionais, elas não correspondem à magnitude das ações realizadas durante as visitas domiciliares, consultas de enfermagem, avaliação e controle de riscos e tantas outras ações especialmente complexas desenvolvidas pelas(os) enfermeiras(os) da APS.

O manuscrito Substitution of doctors by nurses in primary care, citado no editorial, em livre tradução, diz: "Embora a substituição de médicos por enfermeiros tenha o potencial de reduzir a carga de trabalho dos médicos e os custos diretos de saúde, alcançar tais reduções depende do contexto específico de cuidado"(3:2); reforçando a ideia da desvalorização econômica da força de trabalho em enfermagem e de modelos segmentados de atenção à saúde. Ainda que sejam apresentados argumentos de uma aparente melhoria do acesso e qualidade da atenção à saúde por meio da PAE(4), as perguntas que subjazem a  discussão são: avançar no escopo de práticas da enfermagem brasileira estaria relacionada apenas a um maior compartilhamento de práticas com o profissional médico, no sentido de reduzir a carga do mesmo e baratear a força de trabalho? Não seria mais oportuno utilizar todo o conhecimento que historicamente vem sendo produzido pela Enfermagem para consolidar e, também, desenvolver novas práticas que visem contribuir com a equipe multiprofissional com igualdade de reconhecimento entre as profissões?

Assim, ao vincular o escopo das práticas de enfermeiros da APS brasileira à EPA sem considerar o contexto do sistema de saúde e o modelo de formação em enfermagem no país, pode-se incorrer no esvaziamento político e teórico do que viria a ser PAE no Brasil(5). Ademais, esta vinculação, caso não seja cautelosa, tende a fragilizar conquistas de décadas no que tange à conformação de modelos de equipes multiprofissionais e de atuação generalista, ao reproduzir um modelo internacional sob a lógica de "especialidade" - aspecto incondizente ao defendido pela APS brasileira. Nesse caso, o Brasil estaria retrocedendo ao tentar especializar aquilo que já é considerado como parte do exercício generalista.

A APS brasileira, citada em documentos globais, é referência para diversos sistemas de saúde(6). Como consequência, inverter o mérito dos avanços, substituindo a evolução da APS e das(os) enfermeiras(os) da APS por uma estratégia internacional sem as devidas ponderações é, no mínimo, perigoso. Aliás, a PAE é introduzida no Brasil no contexto do debate internacional sobre a cobertura e o acesso universal à saúde, termos equivocadamente tratados como equivalentes, mas que, na verdade, trazem riscos importantes ao Sistema Único de Saúde (SUS).

Cobertura universal não é sinônimo de acesso universal, e a APS brasileira, por princípios doutrinários do SUS, atua na defesa e no exercício intransigente do Acesso Universal à Saúde(7). Assim, uma importação inadvertida de modelos de EPA sem as adaptações transculturais necessárias poderia colocar em risco a genuína visibilidade, eficiência e prática de anos de trabalho da(o) enfermeira(o) na APS brasileira. Assim, apesar do elevado volume de publicações sobre a PAE, há muito o que construir sobre o que poderia vir a ser a EPA no Brasil, uma vez que as próprias diretrizes do International Council of Nurses (ICN) preconizam que deve ser levado em conta o contexto no qual as práticas são desenvolvidas(8).

O segundo ponto aqui ponderado é a premissa de que a negativa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) aos novos cursos voltados à formação de EPA ocorre pela falta de acúmulos sobre a regulamentação deste processo a nível nacional. Embora isto pudesse ser um motivo suficiente para a não recomendação das propostas, a realidade não pode ser considerada apenas de modo circunstancial e limitado por crenças, sob o risco de, após quatro anos de ataques a esta agência estatal, voltarmos a um passado ainda não completamente resolvido.

As notas taquigráficas de uma audiência pública realizada em 2021 mostram os riscos imputados ao Sistema Nacional de Pós-Graduação (SNPG) quando um grupo, pensando de forma pública (o que é condizente com o modo de pensar na ciência), baseou-se em premissas equivocadas para sugerir mudanças no sistema avaliativo dos programas de Pós-Graduação. O resumo deste longo conflito foi a paralisação, a judicialização e a criação de impactos negativos no processo avaliativo nacional(9). Atualmente, o SNPG está se reerguendo politicamente, e é necessário ter cautela ao simplificar um processo avaliativo robusto às crenças e ideias de um grupo restrito.

O “bloqueio” pela “não recomendação” dos mestrados em práticas avançadas atribuídos à coordenação da área de Enfermagem na CAPES, além de questionar a posição de profissionais que hoje buscam recuperar assentos em conselhos superiores da agência, não considera os quatro quesitos e cerca de 40 indicadores avaliados durante a Aplicação de Propostas de Cursos Novos (APCN)(10). A afirmativa do editorial também parece não considerar um princípio que vem servindo de farol do SNPG: a redução das assimetrias regionais na oferta dos cursos de Pós-Graduação no país. Sem conhecer a fundo as propostas examinadas pelo comitê julgador e, especialmente, a totalidade do conteúdo dos respectivos pareceres, é improvável chegar a um ponto de conclusão sobre o tema. Caberia, assim, uma divulgação do seu inteiro teor para que a comunidade acadêmica, a partir destas referências, pudesse melhor escrutinar este objeto e, por conseguinte, as afirmativas do editorial. Este, por certo, é um caminho a ser pensado em futuras APCN, avançando-se no debate público dos novos programas de Pós-Graduação stricto sensu.

Na mesma direção, não parece ser justo que linhas de financiamento sejam guias para a aprovação de propostas, ainda que o fomento possa ser indutor de agendas de pesquisa. Tomá-lo como indutor de aprovações de novos cursos é abrir a agência ao poder do capital, fadando, muitas vezes, as instituições públicas de diversas áreas a frustrações, especialmente em períodos de crise, tal como experimentados no crítico período da ciência, tecnologia e inovação brasileira, a saber: de 2016 a 2022. Realmente é do desejo da comunidade científica que seja o capital a ditar as áreas de formação de pesquisadores no país? Do mesmo modo, chamamos atenção à necessidade de análise de contexto do sistema de saúde e, também, do sistema de formação no nível de Pós-Graduação em cada nação, assim, não corremos o risco de cairmos em importação de modelos internacionais que contradizem os avanços já consolidados no Brasil.

Assim, surgem as questões: por que a modalidade de mestrado profissional brasileira (comum para todas as áreas de conhecimento), com mais de 20 anos de existência autônoma e soberana, cuja intenção é formar profissionais para o desenvolvimento de pesquisas emergentes da realidade concreta, deve ser modificada para atender supostas diretrizes internacionais da EPA? Esta questão se baseia, sobretudo, mas não exclusivamente, nos diferentes significados que os países atribuem à formação ao nível de mestrado. O foco desta modalidade de formação brasileira é a produção de conhecimento por meio de pesquisa, diferindo do exercício de uma carga horária prática recomendada para a formação da EPA. Em outras palavras, ainda que as recomendações do ICN possam servir de horizonte no Brasil, não necessariamente elas devem reconfigurar uma modalidade de formação já estruturada há décadas.

Estaríamos realmente sendo estratégicos ao vincular a PAE ao mestrado profissional, desconsiderando outros processos formativos existentes e que têm, historicamente, ampliado o escopo de prática da enfermeira(o) brasileira(o)? Por que não focar nas residências e outras especializações, que, sim, possuem possibilidade de prática nos serviços de saúde? Estas são escolhas políticas, mas que merecem fundamentação consistente e, por consequência, profundo acúmulo antes de definirmos a PAE como a área de formação especializada mais proeminente do país, ou mesmo da precipitação de um julgamento sobre os responsáveis pelo bloqueio de um suposto avanço da prática da enfermeira(o) brasileira(o).

Tais acúmulos são especialmente necessários para que propostas sejam aprovadas nos comitês julgadores da área na CAPES, se assim for considerado possível e, mesmo que não tenha sido citado no editorial, no Conselho Técnico-Científico da Educação Superior (CTC-ES). Cabe definir que o CTC-ES é uma instância colegiada composta por várias áreas da CAPES e que, quando um resultado de APCN ou de avaliação quadrienal é emitido pelos comitês de área, ele é, obrigatoriamente, avaliado e homologado pela instância antes de se tornar público. Ou seja, é um equívoco personificar a não recomendação de propostas a um conjunto restrito de pessoas da coordenação de área.

Como agência do Estado, o julgamento realizado na CAPES, que, por claro, é sempre imperfeito e digno de debate público por melhorias, não se dá por mero desejo individual. A avaliação ocorre por métricas coletivamente construídas e amplamente disseminadas à comunidade científica. Assim, seria mais prudente considerar que um colegiado de cerca de 18 áreas não recomendou a aprovação dos programas, bem como, considerados os pareceres das fases de avaliação e recursos, ressignificar cada um dos tópicos apontados pelos pares (consultores ad hoc) e aprimorar as propostas para futuras APCN. Este é o saudável sentido buscado pela Pós-Graduação brasileira no âmbito das avaliações periódicas. Portanto, não parece justo ultrapassar esta discussão para além da via institucional previamente divulgada e já consolidada em décadas de existência do SNPG. Não de modo personalizado. Que façamos um debate público do que vem a ser a avaliação e os objetivos dela. Esta talvez seja uma direção viável e interessante para contribuir com o Sistema.

Invocando um lema antigo, quem viveu a agência ainda deve tê-lo no horizonte: "a CAPES somos nós"! Assim, a discordância é bem-vinda e deve servir de força motriz para as mudanças que a democracia e o nosso juízo participativo nos convidarem a exercer, mas sempre com a evolução coletiva da área no horizonte. Sapere aude.

 

REFERÊNCIAS

 

1. Toso BRG de O, Peres EM. Mais avanços que retrocessos na implementação da Prática Avançada de Enfermagem no Brasil. Online Braz J Nurs. 2023;22 Suppl 2:e20236694. https://doi.org/10.17665/1676-4285.20236694

 

2. Brasil. Presidência da República. Lei N° 7.498, de 25 de junho de 1986. Dispõe sobre a regulamentação do exercício da enfermagem, e dá outras providências [Internet]. Brasília (DF): Presidência da República; 1986 [citado 2024 Jan 08]. Disponível em: https://legislacao.presidencia.gov.br/atos/?tipo=LEI&numero=7498&ano=1986&ato=b30ITQE5UMBpWTbd9

 

3. Laurant M, Reeves D, Hermens R, Braspenning J, Grol R, et al. Substitution of doctors by nurses in primary care. Cochrane Database of Systematic Reviews. 2005. https://doi.org/10.1002/14651858.cd001271.pub2

 

4. Toso BRG de O, Filippon J, Giovanella L. Atuação do enfermeiro na Atenção Primária no Serviço Nacional de Saúde da Inglaterra. Rev Bras Enferm. 2016;69(1):182–191. https://doi.org/10.1590/0034-7167.2016690124i

 

5. Angeli-Silva L, Leitão T de S, David HMSL, Mascarenhas NB, Acioli S, Silva TPC. Estado da arte sobre Práticas Avançadas em Enfermagem: reflexões para a agenda no Brasil. Rev Bras Enferm. 2022;75(5). https://doi.org/10.1590/0034-7167-2022-0151pt

 

6. Wadge H, Bhatti Y, Carter A, Harris M, Parson G, Darzi A. Brazil’s family health strategy: using community health workers to Provide Primary Care. [New York (NY)]: Commonwealth Fund; 2016 [citado 2024 Jan 08]. Disponível em: http://resource.nlm.nih.gov/101712722

 

7. Giovanella L, Mendoza-Ruiz A, Pilar A de CA, Rosa MC da, Martins GB, Santos IS, et al. Sistema universal de saúde e cobertura universal: desvendando pressupostos e estratégias. Cien Saúde Colet. 2018;23(6):1763–76. https://doi.org/10.1590/1413-81232018236.05562018  

 

8. Schober M, Lehwaldt D, Rogers M, Steinke M, Turale S, Pulcin J, et al. Advanced Practice Nursing Guidelines 2020 [Internet]. Geneva: International Council of Nurses; 2020 [citado 2024 Jan 08]. Disponível em: https://www.icn.ch/resources/publications-and-reports/guidelines-advanced-practice-nursing-2020

 

9. Câmara dos Deputados (BR); Departamento de Taquigrafia, Revisão e Redação. 3ª Sessão Legislativa Ordinária da 56ª Legislatura. Comissão de Educação - Audiência Pública Extraordinária (Semipresencial) [Internet]. Brasília (DF): Câmara dos Deputados; 2021 [citado 2024 Jan 08]. Disponível em: https://escriba.camara.leg.br/escriba-servicosweb/html/63586

 

10. Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Documento Orientador de APCN - Área 20: Enfermagem [Internet]. Brasília (DF): CAPES; 2019 [citado 2024 Jan 08]. Disponível em: https://www.gov.br/capes/pt-br/centrais-de-conteudo/documentos/avaliacao/ENFERMAGEM_APCN_21.pdf

 

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